Peccavi Domino
Davi, exposto à luz de sua própria insegurança,
manifesta contrição e arrependimento. De fato, enquanto imaginamos que estamos
alheios à notoriedade da escuridão de nossas faltas, a onisciência divina
acende o farol de sua indiscrição sobre as nossas ações vergonhas. Quando não,
Deus mesmo envia um mensageiro para despertar-nos do torpor espiritual que nos
arranca do choque inevitável da publicidade de nossas fraquezas.
Ao imaginarmos faltas e pecados,
defeitos e vícios, geralmente, sempre tentamos apontar alguém, cuja desonra
humilhante foi descoberta. Ou seja, dificilmente, somos levados a pensar que a
vergonha do outro é a nossa vergonha. Que o pecado do outro é o nosso pecado.
Que a queda do outro é a nossa queda. Que a humilhação do outro é a nossa
humilhação. Que a prostração do outro é a nossa prostração. Enfim, não somos
muito solidários com as fraquezas alheias, e até corremos o risco de zombar dos
nossos irmãos. Não aprendemos a chorar com os que choram (Rm 12,15). E mesmo se
isso não é manifestado exteriormente, com maledicências e fofocas peçonhentas e
mortíferas, no fundo do coração cochila, prestes a despertar, o sorriso
satânico de nosso contentamento e desprezo pelo outro. Então, gritamos,
euforicamente, a possibilidade de nossos atos insuspeitos: “Quem fez isso é
digno de morte!” (2Sm 12,5). Sim, quantas de nossas maledicências já fizeram
outros morrerem, por nos considerarmos melhores que os demais!
Davi faz a amarga experiência de
reconhecer que está no centro do ardiloso e intencional apólogo de Natã, em que
Betsabeia aparece como metáfora no pano de fundo do enredo: “Havia dois homens
na mesma cidade, um rico e outro pobre. O rico possuía ovelhas e vacas em
grande número. O pobre nada tinha senão uma ovelha, só uma pequena ovelha que
ele havia comprado. Ele a criara e ela cresceu com ele e com seus filhos,
comendo do mesmo pão, bebendo na sua taça, dormindo no seu colo: era como sua
filha. Um hóspede veio à casa do homem rico, que não quis tirar uma das suas
ovelhas ou de suas vacas para servir ao viajante que o visitava. Ele tomou a
ovelha do homem pobre e a preparou para a sua visita” (2Sm 12,1-4). E o texto
sagrado continua: “Davi se encolerizou conta esse homem e disse a Natã: ‘Pela
vida de Iahweh, quem fez isso é digno de morte! Devolverá quatro vezes o valor
da ovelha por ter cometido tal ato e não ter tido piedade’. Natã disse a Davi:
‘Esse homem és tu! Assim diz Iahweh, Deus de Israel: Eu te ungi rei de Israel,
eu te salvei das mãos de Saul, eu te dei a casa de teu senhor, eu coloquei nos
teus braços as mulheres do teu senhor, e te dei a casa de Israel e de Judá, e
se isso não é suficiente, eu te darei qualquer coisa. Por que desprezaste Iahweh
e fizeste o que lhe desagrada? Tu feriste à espada Urias, o heteu; sua mulher,
tomaste-a por tua mulher, e a ele mataste com a espada dos amonitas’. [...]
Davi disse a Natã: ‘Pequei contra o Iahweh!’ [Peccavi Domino!]” (2Sm 12,5-13).
O trágico acontecimento trazido a lume
na consciência de Davi, conclui-se com a palavra do profeta Natã que garante o
perdão divino e deixa o coração de Davi aberto às vicissitudes da conversão.
Com efeito, Deus concede o perdão aos que se arrependem de suas faltas, pois a oração
penitencial insiste no fato de que Ele não despreza um coração arrependido. Na
verdade, “sacrifício a Deus é espírito contrito, coração contrito e esmagado, ó
Deus, tu não desprezas” (Sl 50,19). Deus não se deixa vencer pela insistência
de seu amor. O que lhe importa, acima de tudo, é o resgate do pecador, que
rejeita o pecado, como Deus o faz, rejeitando-o, e se arrepende. No caso de
Davi, que é o retrato vivo de cada pessoa que vem a este mundo, prevalece a
misericórdia, depois da contrição e do arrependimento, acompanhados dos bons
propósitos em mudar de vida.
Davi é perdoado, mas “a espada não mais
se apartará da tua casa” (2Sm 12,10). Na reflexão de Bruna Costacurta, Deus
entra em cena, e como protagonista revela a verdade sobre o pecado de Davi, e
todas as suas consequências inevitáveis. A acusação vem por meio do profeta
Natã, que foi enviado ao rei. Então, Davi percorre seu difícil caminho de
tomada de consciência. Mas é uma estrada que deve conduzi-lo a colher o perdão
divino e a sua consolação. A denúncia profética coloca diante do culpado a
insensatez de seu mal, de maneira que, uma vez consciente, o pecador confesse e
se deixe perdoar. A parábola contata por Natã a Davi, é o retrato de um mundo
dividido entre ricos e pobres. Entre a ganância de uns poucos e a privação de uma
grande maioria de necessitados. A riqueza pode fechar o coração humano a Deus e
aos irmãos.
Segundo a sobredita professora Bruna
Costacurta, para quem não tem muitos meios de sobrevivência, a ovelha
conquistada pode representar toda a sua riqueza. E sobre ela vem derramada sua
capacidade de acolhimento e de dom, através de uma relação toda particular.
Afeiçoando-se ao animal com a uma pessoa, faz com que ele cresça em meio aos
seus filhos, aumentando o círculo dos afetos, condividindo o pouco que tem, e
ensinando a fazer o mesmo. Trata-se, pois, de uma pobreza vivida na dignidade,
na mansidão e na abertura do coração. Inversamente, o rico tem o coração
fechado. E, quando, inesperadamente, surge um hóspede, não é capaz de conceder
nem um pouco de comida. Com efeito, o repasto preparado ao visitante serve para
exprimir os sentimentos de acolhimento sincero. Manifesta alegria em abrir a
casa, colocando à disposição do outro o que se tem. A divisão do alimento
implica comunhão e amizade, demonstrando-se um dos modos mais significativos
para dar as boas vindas àquele que se recebe como hóspede agradável. Quanto ao
caso de Davi, há uma mentira monstruosa em relação à preparação da mesa para
acolher quem chegou. A refeição que o rico oferece ao viajante de passagem não
lhe pertence, foi tirada de um pobre. A condivisão da vida, entre o opulento
possuidor e o hóspede, é expressa tolhendo do pobre sua única ovelha. Ainda
segundo Bruna Costacurta, com a entonação de sua parábola, o profeta Natã queria
consentir ao rei de sair de sua mentira e abrir-se à verdade, provocando-lhe a
consciência da gravidade do pecado cometido e fazendo emergir o seu senso de
justiça. Por conseguinte, a historieta serve para ajudar o outro a dar-se conta
da própria realidade e a confrontar-se com ela. Portanto, superando a
resistência inevitável de quem tem dificuldade em reconhecer-se em culpa e
abatendo o esquema de suas pretensas justificativas, o conto profético atinge a
consciência do pecador que, desconhecendo que o que está ouvindo diz respeito a
si mesmo, reage conforme a verdade e, condenando o mal dos outros, condena-se a
si mesmo. Finalmente, o intento da parábola de Natã alcança seu objetivo. Davi
indigna-se, e isso o crucifica. A aplicação do profeta à sua história pessoal
não deixa mais dúvida: “Esse homem és tu!”.
O reconhecimento de sua falta, levando-o
à humilhação e à penitência, abre espaço para a reconciliação e o perdão
gratuito de Deus, que, de braços abertos, sempre espera os filhos que tornam a
casa, tendo perdido o dom precioso da paternidade por terras estrangeiras e
distantes do carinho do Pai amoroso. Conscientes ou não, todos nós temos
necessidade do retorno à consolação e à segurança do aconchego do colo divino.