sábado, 21 de março de 2015

Kyrie Eleison

Kyrie Eleison



O Novo Testamento é o testemunho fiel da luminosidade envolvente da oração do “Kyrie Eleison” – “Senhor, tende piedade de nós”, uma espécie de tradução e síntese da oração do publicano no templo: “Meu Deus, tem piedade de mim, pecador” (Lc 18,13) – que a tradição da Igreja coloca no início da celebração da Ceia do Senhor. Não podemos nos aproximar da grandiosidade de Deus sem esse gesto desejoso de reconciliação pela confissão de nossas faltas. Contudo, não é o temor ou o medo que deve invadir o coração pela insuficiência de nossa resposta ao projeto amoroso de Deus, mas a simplicidade despretensiosa que reconhece n’Ele todo amor, todo perdão. Somente Ele é a fonte da reconciliação, e a Ele nos dirigimos para alcançar misericórdia. Cada um, do mais profundo do coração e do seu desejo de intimidade com Ele, percorre os desvãos da memória, buscando reatar os espaços perdidos ou desencontrados pela rebeldia da desobediência. A desobediência é a síntese remota e próxima do quanto fomos e somos desagradáveis a Deus. Ela é a ponte por onde passam todos os nossos pecados. Ela é o desequilíbrio que precipita nossa harmonia interior no abismo do distanciamento de Deus. É por isso que o novo Adão veio para ser a obediência por excelência, a obediência perfeita em relação à vontade do Pai: “Eis-me aqui, eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade” (Hb 10,7). Assim, participando de nossa natureza humana, ele se fez obediente até a morte, e morte de Cruz (Ef 2,8). A literatura paulina é muito rica quanto ao tema da obediência no confronto entre o antigo e o novo Adão, Cristo Jesus: “Se pela falta de um só todos morreram, com quanto maior profusão a graça de Deus e o dom gratuito de um só homem, Jesus Cristo, se derramaram sobre todos. Também não acontece com o dom como aconteceu com o pecado de um só que pecou: porque o julgamento de um resultou em condenação, ao passo que a graça, a partir de numerosas faltas, resultou em justificação. Se, com efeito, pela falta de um só a morte imperou através deste único homem, muito mais os que receberam a abundância da graça e do dom da justiça reinarão na vida por meio de um só, Jesus Cristo. [...] De modo que, como pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores, assim, pela obediência de um só, todos se tornarão justos” (Rm 5,15-19).
Na concepção teológica de Fitzmyer, São Paulo olha a história humana enquanto condicionada e determinada pela situação de Adão. Assim, São Paulo confronta Adão, o progenitor, com Cristo, cabeça da nova humanidade. Através desse “confronto”, São Paulo se serve para esclarecer o que lhe interessa, de maneira mais significativa, sobre a nova vida que emana de Cristo, sobre a libertação do pecado e a da morte. Ou seja, como diria Nygren, se Adão é o cabeça do velho tempo, a era da morte, Cristo é o cabeça do novo tempo, a era da vida. Portanto, São Paulo esclarece, de modo definitivo, quais são os fundamentos verdadeiros da esperança cristã (Rm 5,5). Se de algum modo, o pecado de Adão provocou consequências devastadoras em toda a humanidade histórica, também a justificação trazida por Cristo teve efeitos salvíficos universais. Com efeito, Cristo, o novo Adão e o novo cabeça da humanidade foi, incomparavelmente, mais benéfico para o homem do quanto o que Adão fez foi maléfico. Estabelecendo o paralelismo entre Adão e Cristo, São Paulo ainda considera que a condição mortal da humanidade deve-se não somente ao pecado de Adão, mas também à causa dos pecados de todos os homens ao longo da história. A expressão “todos pecaram” (Rm 5,12) faz eco ao que foi dito em Rm 3,19 e 23. Consequentemente, na visão de São Paulo, a condição mortal do homem possui duas vertentes causais: Adão e os pecados dos homens na sua singularidade. Certamente – considera o autor aqui já referido, Fitzmyer – São Paulo deve ter em mente a passagem de Gn 2,4b-3,24, que trata do relato jahvista da criação de Adão e Eva, e da “transgressão” de Adão (Rm 5,15.17) e sua “desobediência” (Rm 5,19), prescindindo dos detalhes cênicos e dramáticos, a fim de colher a verdade teológica de que todos os homens se tornaram escravos do pecado e da morte. Num breve comentário a respeito do versículo 12, que afirma que “o pecado entrou no mundo [cosmo]”, Fitzmyer traduz o sentido teológico do alcance do “pecado”, considerando-o uma força maléfica personificada, o Pecado com o “P” maiúsculo, hostil a Deus e que aliena o homem de sua presença. Sua primeira aparição teve lugar na cena da história humana com a transgressão de Adão (Rm 6,12-14; 7,7-23; 1Cor 15,56), e desde então dominou “todos os homens”. Contudo, não é pecado ou a morte quem tem a última palavra, mas a vitória gloriosa da Ressurreição do Senhor, Jesus Cristo.
Longe de qualquer arrogância ou insubordinação, o Filho de Deus ensina-nos pelo sofrimento o valor perene da obediência. De fato: “E embora fosse Filho, aprendeu, contudo, a obediência pelo sofrimento; e, levado à perfeição, se tornou para todos os que lhe obedecem princípio de salvação eterna, tendo recebido de Deus o título de sumo sacerdote, segundo a ordem de Melquisedec” (Hb 10,8-10). Ou seja, fomos salvos pela obediência do Filho de Deus. Contemplando seu sofrimento, ao experimentar a mais profunda exigência radical de nossa humanidade, ferida pelo pecado, Ele nos abriu as portas do céu, como fizera ao “Bom Ladrão”, o primeiro a receber a absolvição no próprio ato litúrgico da nossa Redenção: “Hodie mecum eris in Paradiso” – “Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43). Do alto da Cruz, ouvindo as palavras de Dimas que o interpela, o Senhor dirige o seu olhar ao panorama consolador e apaixonante da Redenção. Está valendo a pena o seu sacrifício! Como reafirma São Tiago: “Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tg 4,6). A humildade do Bom Ladrão escancara-lhe as portas do Reino eterno, que Cristo instaurou com sua imolação oferente. Portanto, no esforço espiritual de abertura à plenitude da graça redentora, devemos fazer o nosso exame de consciência com mais profundidade, com mais claridade interior. Tantos são os apelos do mundo moderno a uma vida incoerente e dissonante no que concerne o chamado divino à santidade – “Portanto, deveis ser prefeitos [“santos”] como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48) – que temos dificuldade, inclusive, de reconhecer os pecados que, quotidianamente, deixam-nos mergulhados na esterilidade de uma vida vazia de Deus e preenchida pelos entulhos putrescentes do mundo.
Tudo isso para dizer que temos necessidade de reconhecer os nossos pecados. Temos necessidade de conversão verdadeira. O testemunho de Davi é um exemplo salutar. Ele é um exemplo penitencial para nossa conversão. Na verdade, sua história pessoal atravessa os problemas existenciais dos homens de todos os tempos, suas cabeçadas na vida, suas infidelidades, enfim, seu desejo profundo de bênção e libertação total.