O rei Davi
Como sabemos pela História bíblica, Davi
foi o maior dos reis de Israel, eleito e ungido porque agia e se comportava
segundo a visibilidade de Deus, que perscruta os corações, sem se deter nas aparências
da pessoa: “Não te impressione a aparência nem a sua elevada estatura: eu o
rejeitei [afirma o Senhor sobre a pretensa escolha de Eliab]. Deus vê não como
o homem vê, porque o homem toma em consideração a aparência, mas Iahweh vê o
coração” (1Sm 16,7). Com a rejeição de Saul como rei de Israel, Deus mesmo se
encarregou de ungir Davi por meio de Samuel (1Sm 16,1-13). Eis a palavra de Samuel
dirigida a Saul, quando rejeitado por Deus: “Agiste como insensato! Tu não
guardaste o mandamento que Iahweh teu Deus te prescrevera. Se lhe tivesses
obedecido, Iahweh teria firmado o seu reino para sempre sobre Israel, mas
agora, o teu reino não subsistirá: Iahweh já achou um homem conforme ao seu
coração, e o instituiu para chefe de seu povo, porque tu não observaste o que
Iahweh te tinha ordenado” (1Sm 13,13-14).
Por sua vez, Davi reinou durante
quarenta anos: sete em Hebron e, trinta e três, em Jerusalém (1Rs 2,10-11).
Segundo Virgulin, Filho de Jessé, da
Tribo de Judá, Davi se tornou o fundador do mais vasto império israelita e da
dinastia que, por quatro séculos, reinou em Jerusalém. À sua pessoa está ligada
a promessa de um reino messiânico. Conforme as informações desse autor, Davi
foi um homem de uma personalidade excepcional sob vários pontos de vista. Foi
um valente e indômito guerreiro, um conquistador afortunado, um astuto político
que soube desfrutar das situações do momento, um sábio organizador do estado,
de modo especial, no primeiro período do reinado e foi, também, um équo
organizador da justiça. De ânimo generoso, foi fiel com os amigos até a
ternura, como demonstrou o seu comportamento com o filho de Jônatas e com o
próprio Jônatas, quando ele morreu. Com os filhos, demonstrou ser
condescendente até a fraqueza; não soube punir Amon, perdoou o fratricídio de
Absalão, sem tomar as devidas precauções. Davi foi cruel com os opositores,
fazendo desaparecer a descendência de Saul, dizimando os moabitas e provocando
a morte de Urias. Foi um homem religioso, segundo o modelo de sua época; de
sincera piedade, recorria à oração e aos conselhos dos homens de Deus, como Gad
e Natan. Chegou, inclusive, a aceitar ser expulso do trono com temor de opor-se
à vontade divina (2Sm 15,25s). Fez penitência pelos seus pecados, aceitando as
sugestões do profeta (2Sm 12,15-25). De igual modo, também, demonstrou-se
penitente por ocasião do recenseamento (2Sm 24,17). Finalmente, conclui
Virgulin, não é de se excluir o fato de que Davi tenha composto muitos Salmos
para o Senhor. Com o passar do tempo, os pecados de Davi foram esquecidos e ele
se tornou o rei ideal de Israel, profundamente humano e totalmente dedicado ao
serviço de Deus, consoante a sua figura vem apresentada pelo livro das Crônicas
e por Sirácida (Sir 47,1-11). Sua trajetória de abandono das leis divinas recrudesceu,
quando, “na época em que os reis costumavam fazer guerra, Davi enviou Joab e
com ele a sua guarda e todo o Israel, e eles massacraram os amonitas e sitiaram
Rabá. Mas Davi ficou em Jerusalém” (2Sm 11,1). Sua permanência em Jerusalém foi
a porta aberta da indiscrição para uma sucessiva cadeia de atropelos e pecados
que não cessou enquanto ele não caiu em si mesmo, dizendo: “Peccavi Domino!” – “Pequei contra
Iahweh” (2Sm 12,13). O teodrama que se desenrola e se desenvolve no contexto
inteiro do conhecido “pecado de Davi”, merece a apreciação do leitor no seu
conjunto, o que não será possível ser apresentado aqui. Portanto, deixo a
citação do texto integral para análise, pelo menos, dentro dos limites do que
nos interessa agora: 2Sm 11-12.
Depois da habitual sesta, o rei Davi se
levantou da cama e começou a passear pelo terraço, de onde avistou uma mulher
que tomava banho. “E era bonita a mulher” (2Sm 11,2). Procurou “saber” de quem
se tratava e descobriu que era a mulher de Urias, o oficial de seu exército.
Considerando-o oportuno, pediu aos emissários que a trouxessem até ele.
Deitou-se com ela, que ficou grávida, e para se desfazer do desembaraço em que
se havia metido, fez de tudo para que Urias dormisse com sua esposa, talvez, no
intento de justificar a gravidez de Betsabeia. Mas Urias recusou-se, não
julgando honesto de sua parte, deitar-se em seu leito confortável, enquanto
Joab e a guarda do exército do rei acampavam “em campo raso”, isto é, ao
relento, sem proteção nem privilégio algum. Derrotado em suas investidas contra
Urias, a solução que o rei encontrou foi a mais trágica possível, pedindo que
Joab favorecesse que o esposo de Betsabeia, Urias, fosse vitimado,
intencionalmente, na guerra, de modo que, de uma vez por todas, a luz vermelha
de sua culpa interior parasse o intermitente “acende e apaga” – o “pisca-pisca”
– da consciência doída pela inquietação do seu mau e desagradável comportamento
aos olhos de Deus. Urias carregou em suas mãos a própria sentença de morte:
“Coloca Urias no ponto mais perigoso da batalha e retirem-se, deixando-o só,
para que seja ferido e venha a morrer” (2Sm 11,15). Mas nada permanece oculto
diante do Deus de Israel, daquele que não dorme nem cochila porque ele vigia,
ininterruptamente, “as nações para que os rebeldes não se exaltem” (Sl 66,7).
Se Davi pensou encontrar alguma exaltação pela artimanha de sua letal e
assassina atitude, os fatos vão demonstrar o contrário, porque os olhos de Deus
permeiam o invisível e chagam aos porões inimagináveis de nossas suspeitas mais
recônditas ou escondidas.
Circundado por pessoas muito próximas,
alguém levou secretamente ao rei Davi o recado de Betsabeia: “Estou grávida!”.
O texto sagrado deixa à nossa imaginação o intuir a razão do silêncio sobre
esse personagem. Assim, lendo as páginas da Bíblia, muitas vezes, esquecemo-nos
do verdadeiro autor da História que, não por acaso, é onipresente. É verdade
que somos os protagonistas dos enredos malfadados de nossas escolhas. Todavia,
também é verdade que nada escapa à visão penetrante daquele que vai costurando,
“com fios de ouro”, na direção de sua pedagogia salvífica, todos os eventos da vida
do homem, à espera de que ele se abra ao projeto final de sua total e plena
realização.