Raça de víboras
Nos primeiros
capítulos do Evangelho de São Mateus, encontramos uma palavra muito dura,
dirigida por João Batista aos fariseus e saduceus: “Como visse muitos fariseus
e saduceus que vinham ao batismo, disse-lhes: ‘Raça de víboras, quem vos
ensinou a fugir da ira que está para vir? Produzi, então, fruto digno de
arrependimento e não penseis que basta dizer: ‘Temos por pai Abraão’. Pois eu
vos digo que mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos de Abraão. O machado
já está posto à raiz das árvores e toda árvore que não produzir bom fruto será
cortada e lançada ao fogo” (Mt 3,7-10).
Tirado do contexto
da perícope, interessa-nos, particularmente, a expressão exortativa de João Batista ao seu seletivo auditório: “Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento”
(v. 8). Todo o resto serve, sem dúvida, para emoldurar a censura desferida pelo
Mestre aos que estavam fechados na autossuficiência de suas presunções.
Conforme Angélico Poppi, durante muitos séculos, a orientação profética
enfatizara, de maneira muito insistente e decisiva, a necessidade de que o povo
de Israel tinha de conversão, de mudança de vida, de metanoia, enfim, de mudança de mentalidade diante dos imperativos divinos,
que anunciavam a iminência da chegada de um novo tempo. Portanto, de igual
maneira, o Precursor do Messias, João Batista, fez o mesmo convite, embora,
conferindo-lhe um tom de extrema urgência, pelo fato de que Deus estava para
realizar a inauguração de seu reino, o qual seria precedido por um juízo muito
severo, conforme a previsão escatológica preanunciada pelos profetas de Deus.
Portanto, a necessidade de uma conversão imediata favorecia a possibilidade da
não exclusão do reino divino, prestes a ser instaurado no seio da comunidade
dos crentes.
Hoje, o mesmo apelo
de conversão é dirigido a todos nós, de modo coletivo, mas, também, e,
particularmente, a cada indivíduo presente no mundo. As gerações passadas, que
se abriram ou se fecharam ao chamado divino da conversão, como todos os da
época de Jesus, já receberam a sua recompensa (Mt 6,2.5). Agora, no tempo
oportuno da graça que nos é manifestada em Cristo, o convite é feito à
consciência de nosso coração desejoso e saudoso de Deus, mesmo se inconscientemente.
E a Quarta-feira de Cinzas, abrindo as portas da Igreja e da nossa alma para
esse tempo de penitência e conversão, já é a grande provocação de Deus,
instigando-nos a uma revisão de vida coerente, a fim de que possamos, na
concretude dos fatos de nossa existência, demonstrar que, na verdade, estamos
dispostos a produzir frutos digno de arrependimento (Mt 3,8). Por isso,
“[...] a todos é
pedida uma grande vigilância para não se deixar contagiar pela atitude
farisaica que pretende eliminar a consciência da própria limitação e do próprio
pecado, e que hoje se exprime particularmente na tentativa de adaptar a norma
moral às próprias capacidades e interesses, e até na rejeição do conceito mesmo
de norma [isto é, de lei]” (Ssão João Paulo II).
Certamente, o Papa
tem razão quando afirma que todos corremos o risco de acomodar-nos à mesmice do
“todo mundo faz”, como se isso fosse o critério ou a regra do autêntico agir,
diminuindo na errônea concepção da liberdade dos atos humanos a própria gravidade
do pecado.
Ainda segundo Angélico Poppi, para obter
a salvação é preciso “produzir” um fruto digno da conversão, isto é, conforme
uma metanoia profunda, autêntica,
exigindo, portanto, um novo e sincero relacionamento com Deus. Não basta a
observância exterior e formalista da Lei; é preciso uma reviravolta radical no
espírito, uma nova conduta de vida, uma mudança radical no coração. Tudo isso,
porquanto o fato de pertencer ao povo eleito não era suficiente para que alguém
fosse preservado da ira punitiva do dia do juízo. Ou seja: Deus permanece
sempre fiel às suas promessas, mas, se não encontrar a correspondência e o
devido retorno – a devida resposta – pelo caminho da obediência humana, Ele
pode suscitar filhos de Abraão das inumeráveis pedras que povoam o deserto em
seu derredor. Não por acaso, os profetas haviam repreendido os israelitas por
conta de seu orgulho, de seu fechamento, de sua infidelidade à aliança
sinaítica, e tinham predito que o dia do juízo do Senhor não seria para eles
uma benção, mas um dia de cólera e de castigo (cf. Am 5,18; Is 2,6ss; Jr
30,5-7; Sf 1,15; Ez 22,24). Assim, a iminência da hora escatológica e, por
conseguinte, da urgência da conversão, são evidenciadas pela expressão de São
Mateus: “Está posto o machado à raiz das árvores”, para significar
a exigência de que toda a pessoa – corpo, alma, mente e inteligência, espírito,
vontade, liberdade – abra-se sinceramente ao amor e à graça da salvação, sem
dubiedade nem hipocrisia.
Evidentemente, essa abertura só será possível se estivermos em condições de
reconhecer e conceber, no mais profundo de nossa consciência íntima, que, ao
contrário de Cristo, não somos agradáveis a Deus. O inimigo tentador desde o
princípio quer ver-nos prostrados, pois: “Na serpente tentadora rebaixada até o
chão, pretende-se indicar a humilhação (o termo dá bem a ideia porque evoca o
‘humus’ da terra) do ídolo reduzido ao nível do pó. O pecado é vergonha, é
arrastar-se na lama, é humilhação da dignidade do homem. O pecador ilude-se ao
julgar elevar-se acima dos céus, quando, na realidade, encontra-se mergulhado
no lodo de um pântano. Chamado a horizontes elevadíssimos, o homem encontra-se
aprisionado no ninho de víboras. A maldição divina contra a serpente alonga-se
na descrição de uma luta implacável” (Card. Gianfranco Ravasi).
Assim, enquanto permanecermos
mergulhados em nossos pecados e imobilizados na dormência espiritual de nossas
atitudes mesquinhas, longe do ideal de Cristo que deve ser “formado” em nós (Gl
4,19), nossa rebeldia interior mostrar-nos-á que ainda temos muito caminho a
percorrer na direção de Deus, que vem ao nosso encontro pela misericórdia do
Filho, nosso Único e definitivo Redentor. Sendo Cristo, a medida de nossa
perfeição interior, é também n’Ele que vamos encontrar o justo valor de todos
os nossos atos, a fim de combatermos a “cisão” – a divergência, o desacordo, ou
a dissensão – que existe dentro do nosso coração, consoante a expressão de São
Paulo: “Ora, se faço o que não quero, eu reconheço que a Lei é boa. Na
realidade, não sou mais eu que pratico a ação, mas o pecado que está em mim,
isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o
praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não
quero” (Rm 7,15-19).
Por conseguinte, dentro da evidência
psicológica de São Paulo está claro o dilema interior de desejar fazer uma
coisa – o bem – e concretizar mais facilmente outra – o mal – sem o querer
totalmente decidido pelo reto agir de sua consciência.