quinta-feira, 12 de março de 2015

Raça de Víboras






Raça de víboras

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Nos primeiros capítulos do Evangelho de São Mateus, encontramos uma palavra muito dura, dirigida por João Batista aos fariseus e saduceus: “Como visse muitos fariseus e saduceus que vinham ao batismo, disse-lhes: ‘Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? Produzi, então, fruto digno de arrependimento e não penseis que basta dizer: ‘Temos por pai Abraão’. Pois eu vos digo que mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos de Abraão. O machado já está posto à raiz das árvores e toda árvore que não produzir bom fruto será cortada e lançada ao fogo” (Mt 3,7-10).

Tirado do contexto da perícope, interessa-nos, particularmente, a expressão exortativa de João Batista ao seu seletivo auditório: “Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento” (v. 8). Todo o resto serve, sem dúvida, para emoldurar a censura desferida pelo Mestre aos que estavam fechados na autossuficiência de suas presunções. Conforme Angélico Poppi, durante muitos séculos, a orientação profética enfatizara, de maneira muito insistente e decisiva, a necessidade de que o povo de Israel tinha de conversão, de mudança de vida, de metanoia, enfim, de mudança de mentalidade diante dos imperativos divinos, que anunciavam a iminência da chegada de um novo tempo. Portanto, de igual maneira, o Precursor do Messias, João Batista, fez o mesmo convite, embora, conferindo-lhe um tom de extrema urgência, pelo fato de que Deus estava para realizar a inauguração de seu reino, o qual seria precedido por um juízo muito severo, conforme a previsão escatológica preanunciada pelos profetas de Deus. Portanto, a necessidade de uma conversão imediata favorecia a possibilidade da não exclusão do reino divino, prestes a ser instaurado no seio da comunidade dos crentes.

Hoje, o mesmo apelo de conversão é dirigido a todos nós, de modo coletivo, mas, também, e, particularmente, a cada indivíduo presente no mundo. As gerações passadas, que se abriram ou se fecharam ao chamado divino da conversão, como todos os da época de Jesus, já receberam a sua recompensa (Mt 6,2.5). Agora, no tempo oportuno da graça que nos é manifestada em Cristo, o convite é feito à consciência de nosso coração desejoso e saudoso de Deus, mesmo se inconscientemente. E a Quarta-feira de Cinzas, abrindo as portas da Igreja e da nossa alma para esse tempo de penitência e conversão, já é a grande provocação de Deus, instigando-nos a uma revisão de vida coerente, a fim de que possamos, na concretude dos fatos de nossa existência, demonstrar que, na verdade, estamos dispostos a produzir frutos digno de arrependimento (Mt 3,8). Por isso,

“[...] a todos é pedida uma grande vigilância para não se deixar contagiar pela atitude farisaica que pretende eliminar a consciência da própria limitação e do próprio pecado, e que hoje se exprime particularmente na tentativa de adaptar a norma moral às próprias capacidades e interesses, e até na rejeição do conceito mesmo de norma [isto é, de lei]” (Ssão João Paulo II).

Certamente, o Papa tem razão quando afirma que todos corremos o risco de acomodar-nos à mesmice do “todo mundo faz”, como se isso fosse o critério ou a regra do autêntico agir, diminuindo na errônea concepção da liberdade dos atos humanos a própria gravidade do pecado.

Ainda segundo Angélico Poppi, para obter a salvação é preciso “produzir” um fruto digno da conversão, isto é, conforme uma metanoia profunda, autêntica, exigindo, portanto, um novo e sincero relacionamento com Deus. Não basta a observância exterior e formalista da Lei; é preciso uma reviravolta radical no espírito, uma nova conduta de vida, uma mudança radical no coração. Tudo isso, porquanto o fato de pertencer ao povo eleito não era suficiente para que alguém fosse preservado da ira punitiva do dia do juízo. Ou seja: Deus permanece sempre fiel às suas promessas, mas, se não encontrar a correspondência e o devido retorno – a devida resposta – pelo caminho da obediência humana, Ele pode suscitar filhos de Abraão das inumeráveis pedras que povoam o deserto em seu derredor. Não por acaso, os profetas haviam repreendido os israelitas por conta de seu orgulho, de seu fechamento, de sua infidelidade à aliança sinaítica, e tinham predito que o dia do juízo do Senhor não seria para eles uma benção, mas um dia de cólera e de castigo (cf. Am 5,18; Is 2,6ss; Jr 30,5-7; Sf 1,15; Ez 22,24). Assim, a iminência da hora escatológica e, por conseguinte, da urgência da conversão, são evidenciadas pela expressão de São Mateus: “Está posto o machado à raiz das árvores”, para significar a exigência de que toda a pessoa – corpo, alma, mente e inteligência, espírito, vontade, liberdade – abra-se sinceramente ao amor e à graça da salvação, sem dubiedade nem hipocrisia. Evidentemente, essa abertura só será possível se estivermos em condições de reconhecer e conceber, no mais profundo de nossa consciência íntima, que, ao contrário de Cristo, não somos agradáveis a Deus. O inimigo tentador desde o princípio quer ver-nos prostrados, pois: “Na serpente tentadora rebaixada até o chão, pretende-se indicar a humilhação (o termo dá bem a ideia porque evoca o ‘humus’ da terra) do ídolo reduzido ao nível do pó. O pecado é vergonha, é arrastar-se na lama, é humilhação da dignidade do homem. O pecador ilude-se ao julgar elevar-se acima dos céus, quando, na realidade, encontra-se mergulhado no lodo de um pântano. Chamado a horizontes elevadíssimos, o homem encontra-se aprisionado no ninho de víboras. A maldição divina contra a serpente alonga-se na descrição de uma luta implacável” (Card. Gianfranco Ravasi).

Assim, enquanto permanecermos mergulhados em nossos pecados e imobilizados na dormência espiritual de nossas atitudes mesquinhas, longe do ideal de Cristo que deve ser “formado” em nós (Gl 4,19), nossa rebeldia interior mostrar-nos-á que ainda temos muito caminho a percorrer na direção de Deus, que vem ao nosso encontro pela misericórdia do Filho, nosso Único e definitivo Redentor. Sendo Cristo, a medida de nossa perfeição interior, é também n’Ele que vamos encontrar o justo valor de todos os nossos atos, a fim de combatermos a “cisão” – a divergência, o desacordo, ou a dissensão – que existe dentro do nosso coração, consoante a expressão de São Paulo: “Ora, se faço o que não quero, eu reconheço que a Lei é boa. Na realidade, não sou mais eu que pratico a ação, mas o pecado que está em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero” (Rm 7,15-19).

Por conseguinte, dentro da evidência psicológica de São Paulo está claro o dilema interior de desejar fazer uma coisa – o bem – e concretizar mais facilmente outra – o mal – sem o querer totalmente decidido pelo reto agir de sua consciência.