quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

 

Jejum como atitude penitencial

 

O jejum deve ser fruto de uma necessidade penitencial no sentido profundo do desejo de conversão. Portanto, não se trata apenas de uma prática de dieta ou vontade de emagrecer por meio dele, embora nos tempos modernos muitas pessoas recorram ao jejum, buscando melhorar seu condicionamento físico, o que não seria um problema. Contudo, se essa fosse a intenção primeira de quem se dispõe a fazer algum tipo de sacrifício pela abstenção de alimentos, estaríamos muito distantes do propósito da reflexão, e ela nada teria a nos dizer sobre a necessidade da “humilhação da alma” diante de Deus, segundo uma das expressões judaicas relacionadas à prática do jejum que descrevemos. Todavia, o jejum que Deus pede do seu povo deve ser reflexo do comportamento mais condizente com o espírito do próprio jejum, isto é, ele deve expressar também práticas de paz e concórdia em meio aos irmãos. Essa é a razão da crítica dos profetas diante de atitudes meramente externas do jejum que não revelam o sentido profundo dos desejos do coração.

Na visão de Anselm Grün, que estudou profundamente os vários sentidos do verdadeiro jejum, “a discórdia nasce da ausência de medida, da dominação pelas paixões e pelos instintos. O jejum submete o ser humano à disciplina, liberta-o do domínio das suas paixões e, assim, proporciona-lhe a paz interior. [...] Desse modo, nos Padres da Igreja, evidencia-se continuamente uma compreensão do jejum que pressupõe a unidade entre corpo e alma. Eles nunca se preocupam simplesmente com a saúde do corpo, tampouco simplesmente com a cura do espírito”. (Grün, 2013, p. 30). Dentro dessa dinâmica que envolve a percepção do homem integral, “o jejum jamais é uma simples disciplina exterior, uma obra que podemos apresentar a Deus, e sim um exercício que visa conduzir todo o ser humano a um estado adequado. O jejum corporal tem que estar acompanhado de um jejum espiritual, ou melhor: o jejum corporal bem compreendido é sempre, ao mesmo tempo, um jejum espiritual”. (Grün, 2013, p. 31). Essa compreensão é muito significativa e está subjacente à dura crítica que Cristo faz aos fariseus, preocupados apenas com o ritualismo externo, que não permeia o espírito nem o motiva à conversão sincera. É o que acontece quando Jesus fala do fariseu e do publicano que subiram ao tempo para rezar. O fariseu se vangloriou tanto, inclusive por jejuar duas vezes por semana, que não voltou para casa justificado. No seu interior, se exaltava e desprezava os outros. (Lc 18,9-14). Qualquer pessoa consciente de suas atitudes sabe que adequar o corpo aos imperativos do espírito não é tarefa fácil. Podemos fingir diante dos outros, mas nunca disfarçaremos a aflição que carregamos dentro de nós pelos vendavais das incoerências que nos contorcem interiormente. Nesse contexto, a conversão é uma caminhada em direção a Deus e contra nós mesmos, contra nossos instintos e apetites, contra todas as frestas abertas na alma pela concupiscência que nos dilacera. Que tremendo desafio!

A “concupiscência” traduz, de modo negativo, todos os anseios do espírito que nos puxam para baixo, que não nos permitem elevar-nos à transcendência. A concupiscência é a casa dos nossos pecados. É o olimpo dos deuses infernais que nos perturbam, que nos desorientam no caminho da perfeição.

No contexto joanino, a “concupiscência” está relacionada ao desejo das coisas especialmente proibidas. Na verdade, esse é o terreno de nossas lutas, sobretudo, espirituais: vencer em nós o que contraria a vontade de Deus. Desse modo, epithymia e kosmos são termos correlatos, pois ambos participam do mesmo universo teológico do contexto soteriológico. Essa é a razão pela qual “o mundo em sentido teológico é o mundo como cenário do processo da salvação; ele não é somente o cenário, mas é um dos protagonistas do drama, pois o mundo é a humanidade decaída, alienada de Deus e hostil a Deus e a Jesus Cristo. Essa concepção é frequentíssima nos escritos paulinos e em Jo, menos frequente nas cartas, quase totalmente ausente nos evangelhos sinóticos. O mundo está em oposição a Deus: o espírito do mundo é contrário ao espírito de Deus (1Cor 2,12)”. (Mckenzie, 1983, p. 637).

Numa profunda reflexão sobre “Blaise Pascal, conversão e apologética”, Gouhier assevera que “a alma convertida encontra-se voltada para Deus. Ora, o amor de Deus só pode ser exclusivo; ele exclui, portanto, o amor de si. Essa é a própria essência da vida espiritual. Mas, na união propriamente mística, o amor de si desaparece com o eu; à ausência do eu corresponde um estado de indiferença a tudo o que lhe concerne: o amor exclusivo de Deus é também o esquecimento de si. Na perspectiva de Pascal, o aniquilamento proclama que a queda fez cair meu ser sob a cólera de Deus e que faço minha essa cólera: a conversão substitui o amor-próprio, que desde o pecado põe o eu no lugar de Deus, pelo amor de Deus [...]”. (Gouhier, 2005, p. 77). É, pois, justamente na direção da conversão, a metanoia, para usar a expressão grega, que deve nos levar o jejum, mesmo que haja quem defenda a abstinência de alimentos como um esforço de busca de si, de sua identidade mais profunda, o que é também evidentemente válido.

Na visão de Balbinot, por exemplo, “o jejum está relacionado à experiência humana intencional de privação dos produtos que suprem as necessidades fisiológicas. Por que se faria isso? Não seria uma ação conta a própria natureza infligir o castigo contra si próprio? O jejum é a renúncia voluntária de saciar-se fisicamente com a intenção de estar em maior sintonia com as questões ontológicas interiores, que determinam o sentido do ser. [...] o jejum, para muitas pessoas, não passa de um tempo de espera pela comida, quando, na verdade, deveria ser um tempo de reflexão sobre a vida e o ser. A fome não pode ser confundida com o jejum, pois é uma ameaça à existência. O jejum é ação pedagógica e espiritual que possibilita vivenciar uma situação de carência para entender e aprender a viver bem, mesmo em situações extremas”. (Balbinot, 2015, p. 48-49).

A santidade é outro apelo da Igreja numa trajetória de vida que dura a existência inteira, até o fim, até o céu. Por isso, no contexto da espiritualidade do jejum, abre-se, de igual modo, a senda dos desafios para a santidade nos conturbados tempos modernos.

Tanto quanto a oração, o jejum também deve nos conduzir a humildade, pois ele “nos confronta com nós mesmos, com todos os nossos desejos e necessidades, nossos sentimentos e pensamentos, com nossas sombras. Reconhecer as próprias sombras nos torna mais humildes. Além disso, o jejum nos conduz aos nossos limites. [...] O jejum nos confronta com nossa própria carência. Não somos suficientes para nós mesmos, não possuímos o sossego dentro de nós. Quem está sentado diante de Deus e sente fome sente também seu anseio de satisfação”. (Grün, 2013, p. 46-47). Numa palavra, pelo jejum, podemos reconhecer nossas insuficiências mais profundas e, assim, recorrer ao auxílio divino que nos plenifica, com o dom da graça sobrenatural. (Do livro “O sentido do jejum cristão, p. 47-56 – Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos).

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

 

Trilogia Judaica – Cantos do Gueto (Sarah Gorby)

(Dos Arquivos do então Instituto Dom Luciano Duarte) 

 

Para fazer memória do dia em que Dom Luciano Duarte comemoraria 76 anos de ministério sacerdotal (18 de aneiro de 1948), gostaria de apresentar-lhe a “Trilogia judaica – cantos do gueto”, a que fui convidado a analisar quando ainda existia o Instituto Dom Luciano Duarte. Isso também fez parte do patrimônio cultural da personalidade de quem, por sinal, dentro de um ano, estaremos celebrando o centenário de seu nascimento (1925-2025). Portanto, ei-lo:

O universo cultural do homem sempre atravessa as fronteiras de suas percepções e sensibilidades, sobretudo quando ele está voluntariamente devotado ao enriquecimento das apreensões elásticas do saber erudito. Sem sombra de dúvidas, isso poderia ser dito sobre Dom Luciano José Cabral Duarte que nunca se deixou vencer pelas fatigas acadêmicas, por mais que as gavetas de seu espírito já estivessem ocupadas. Ainda bem que o conhecimento não ocupa lugar na inteligência como poderia acontecer com os bens materiais que acumulamos nas gavetas e dos quais, vez por outra, temos de nos desfazer! Mas isso é privilégio do homo sapiens que, pela artimanha da intelecção, projeta dentro de si o mundo exterior, maravilhando-se, assim, pelo fascínio das possiblidades de suas descobertas.

Convidado para analisar o conteúdo da Trilogia Judaica, que envolve Cantos do Gueto, Cânticos dos cânticos e Cantos judaico-espanhóis do século XVI, embalados pela voz cândida e solene de Sarah Gorby, o contexto histórico por si mesmo fala profundamente de um tempo em que os judeus viviam a experiência dolorosa de mais uma diáspora. Com efeito, é isso mesmo que o canto reflete no conteúdo doloroso de pais e mães que sofrem a tristeza do distanciamento dos filhos pela covardia da brutalidade humana com que são perseguidos, torturados, psicológica e espiritualmente, nas dobras mais recônditas e profundas da alma que silencia o grito sufocante do desespero.

Marcadamente o fato histórico de 1942, quando os judeus foram expulsos da Espanha, encheu de angústia e lágrimas a vida de muitos espanhóis dessa etnia, como tantas outras vicissitudes o fizeram ao longo dos séculos, o que se estendeu também pelo século XVI e até os nossos dias. Certamente, temos de recorrer a alguns dados históricos se quisermos adentrar no âmbito da situação judaica, especialmente do conhecido mundo sefardita, isto é, de toda a conjuntura que concerne aos judeus da Espanha. Segundo o Dicionário Enciclopédico do Judaísmo, em nossos dias, o judaísmo compreende dois componentes principais: o asquenaze e o sefardita. Os sefarditas deveriam tirar o seu nome do país onde viveram seus ancestrais na Idade Média, de modo que o termo sefardita designa tradicionalmente a Espanha. Trata-se, na verdade, de um hápax da Bíblia (palavra que aparece apenas uma vez), citado no livro de Abdias (v.20), que anuncia que os “exilados de Jerusalém, que estão em Safarad, tomarão posse das cidades do Negueb”. Portanto, para a crítica bíblica, esse topônimo se aplica, então, à cidade de Sardes na Ásia Menor, e os primeiros comentadores judeus se tornaram Safarad pela Espanha. Em 1917, sob o mandato britânico, estabeleceu-se a dualidade rabínica (ritual ou litúrgica) Asquenaze-Sefardita, de modo que todos aqueles que pela filiação não eram asquenazes pertenciam ao grupo dos sefarditas. Mais tarde, no encontro acontecido em Amsterdam, organizado de 14 a 17 de 1971 pela Federação Sefardita Mundial, tomou-se para si o pragmatismo israelense que apregoava a declaração de Élie Éliyachar: “Chamo Sefardim (plural hebraico de sefardita) todos aqueles que não são Asquenazim (plural hebraico de asquenaze)”. (W., Geoffrey et al, 1996, p. 1234). Quanto a esse último nome, também julgo necessário algum esclarecimento para os que não estão muito afeitos a tal terminologia. O dicionário Aurélio afirma: “Do hebr. ashquenazi, do top. bíblico Ashkenaz, posteriormente atribuído à Alemanha medieval.]”; e ainda: “Relativo a, ou próprio dos asquenazes, ou do judaísmo da Europa central e oriental”. Portanto, sem maiores detalhes, pois a intenção é a de tão somente situar a compreensão do leitor, esse grupo surge das numerosas comunidades originadas da Polônia, da Alemanha, da Holanda, da Áustria, da Tchecoslováquia, da Iugoslávia e da Grécia, entre outros países como o bloco da União Soviética (antiga), Romênia e Hungria. (W., Geoffrey et al, 1996, p. 1339). Voltando à conjuntura sefardita, que é a que nos interessa no momento, as mudanças comerciais, demográficas e culturais que sempre aconteceram antes e depois da expulsão dos judeus da Espanha, vividas entre as comunidades judaicas da bacia do Mediterrâneo permitem falar de “sefardização” e de “região sefardita”.

Já na Idade Média, mesmo que a civilização sefardita seja diferente daquela dos Judeus da Europa do Norte, ela está muito próxima dos Judeus da África do Norte e do Oriente, de modo que existe uma espécie de civilização comum a todas as comunidades judaicas. (W., Geoffrey et al, 1996, p. 1234). Consequentemente, esse mosaico de considerações apresentado teve por objetivo contextualizar melhor o sentido e a compreensão da Trilogia judaica ensaiada por Sarah Gorby. Nascida no ano de 1900, em Chisinau, capital, a maior e mais importante cidade da Moldávia, sua voz imortalizou “Les inoubliables chants du Ghetto”, um álbum musical lançado em 1976.

Perlustrando o conteúdo das músicas traduzidas para o português com títulos em espanhol e outras línguas, graças ao pequeno, mas significativo acervo adquirido por Dom Luciano Duarte, podemos intuir a grandeza da experiência transmitida pela voz de Sarah Gorby em tempos difíceis para os membros da comunidade judaica. Mas antes de adentrarmos em terras mais profundas da linguística judaica de cantos de sofrimento e de esperança, de contratempos e de arroubos de entusiasmo em meio às intempéries circunstanciais dos ventos poéticos, precisamos entender melhor o sentido do “gueto”, dentro do contexto da sinfonia histórica que, de algum modo, restringiu os judeus no círculo da persecução que os encerrou nos limites de seus próprios sonhos de realização e conquistas enquanto povo. Tudo isso vivido como fruto de barbáries que sempre fizeram diminuir a dignidade de culturas, civilizações e povos, esmagando a carne humana sob o véu de ideologias e crenças não salutares, mas perniciosas e, às vezes, extremamente nocivas à humanidade inteira. No Dicionário Aurélio, uma das definições apresentadas para gueto é a seguinte: “Bairro onde os judeus eram forçados a morar, em certas cidades europeias”. Um sítio da internet (http://www.superinteressante.pt/index.php?option...) apresenta a etimologia do termo: “Um gueto é uma área separada e habitada por um grupo étnico, cultural ou religioso, voluntária ou involuntariamente, em maior ou menor reclusão. O termo referia-se originalmente às judiarias e aplica-se, hoje, a qualquer zona que concentre um determinado grupo social. Provém da palavra do dialeto veneziano ghetto (fundição de ferro), devido à fábrica que existia no bairro onde foram confinados os judeus de Veneza, em 1516. De noite, o acesso ao gueto, situado numa das ilhotas da cidade e rodeado de canais, permanecia fechado”. Ou seja, na essência da significação atribuída ao vocábulo, trata-se de pessoas segregadas por circunstâncias variadas em relação ao contexto social em que vivem ou são obrigadas a viver.

No contexto das letras cantadas por Sarah Gorby, encontramos expressões e conteúdos tais como: “Nossa aldeia está em chamas e vocês ficam indiferentes, de braços cruzados? Nossa aldeia está ardendo, o vento penetra por todos os lados, ululando e tudo destrói. A salvação está nas mãos de vocês...”; “Chove no verão e cai neve no inverno. Vou andando sozinha, caminhando infeliz, sem destino... Todos os meus entes queridos desapareceram, mortos por forças demoníacas... e após tanto sofrimento, tantos horrores, após tudo isso... ainda devo fugir da Polônia”; “Quando te aproximares, todas as portas hão de fechar-se diante de ti. No lugar em que passares um dia, não poderás passar outro. Fecha teus olhos... Vai, procura uma rocha escarpada, senta-te e, sozinho, golpeia o peito com teus punhos... Raquel virá então te acompanhar em tuas lamentações...”; “Multidões expulsas de seus lares vão se arrastando através de campos poeirentos e manchados de sangue. Com o coração humilhado e os olhos repletos de angústia, as mães estreitam os filhos contra o peito... Mães aniquiladas pela dor e pais extenuados pelo sofrimento, curvados sobe o peso de uma tristeza infinita... Eles vão caminhando para a morte”; “Dorme, criança... Noite e chuva, noite e vento... Por caminhos encharcados, famintos como cães, espancados como cães, caminham eles... Dorme, criança, dorme. Para aonde vão? Só a noite sabe, só o vento sabe, pois ouviram os seus soluços e gritos lancinantes. Como colunas de sombras, vão andando. Dorme, filho querido, dorme. Noite e chuva... noite e vento...”; “Os incêndios foram apagados; contudo, o fogo que brota do meu coração ficará sempre aceso. A provação dolorosa que sofreu nosso povo dispersou pelo mundo os melhores de cada geração... As gerações perderam o orgulho e a alegria. Todavia, a guerra acabou”; “Não digas nunca que o caminho que percorres é o último porque pesadas nuvens o encobrem: o dia chegará e também a hora esperada. Hás de escutar nossos passos. Já estamos aqui! O sol da aurora iluminará nosso caminho. Os dias negros do passado desaparecerão com o inimigo. Nosso canto será entoado por todas as bocas; por isso, não digas jamais que é a tua última jornada...”.

Na verdade, os textos acima citados refletem, de maneira singular e profunda, a experiência inaudita de um povo que sempre carregou sobre os ombros da existência a estranha sina da perseguição, da depreciação, da violência mesmo. E nenhuma luz dialética jamais será suficientemente bem apresentada ou projetada sobre ele, de modo a iluminar os pontos obscuros de sua própria história. (Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos, da Arquidiocese de Aracaju. Escritor e Advogado).


sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

 

Advento, Natal e  Ano Litútigo 

O Catecismo da Igreja Católica afirma que “ao celebrarmos cada ano a liturgia do Advento, a Igreja atualiza esta espera do Messias: comungando com a primeira vinda do Salvador, os fiéis renovam o ardente desejo de sua Segunda Vinda” (CIC, n. 524).

Essa é a motivação pela qual, de novo, queremos abrir as comportas do nosso coração para acolher o Senhor que vai chegar no mistério da Encarnação pela qual “a verdade do amor de Deus alcança o homem na história, convidando-o a acolher livremente essa novidade radical” (Papa Bento XVI). No âmbito desta “novidade radical”, a Igreja de Jesus Cristo retoma “o ciclo das [suas] festas essenciais que são o Natal, a Páscoa e Pentecostes”. (Dom Luciano Duarte).

O período do Advento coincide com o início do novo ano litúrgico, e também, chamado ano eclesiástico, que, em 2024, retoma a reflexão sobre o Evangelho de São Marcos, o ano “B”. Notoriamente, o começo do ano litúrgico não corresponde ao princípio do ano civil, o que acontece no dia primeiro de janeiro. Então, foi a partir do Concílio Vaticano II, que a Igreja de Cristo se enriqueceu com a meditação dos Evangelhos distribuídos nos chamados anos “A”, “B”, e “C”. Trata-se, respectivamente, dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, conhecidos na literatura bíblica como “os Evangelhos Sinóticos”. Essa distribuição dos Evangelhos em três anos litúrgicos foi um “dos frutos maiores do Concílio Vaticano II”. Tudo isso porque, como afirmara Dom Luciano Duarte, “a Igreja inteira vive, pende, está suspensa pela vida histórica de Jesus Cristo, e é celebrando esta vida histórica que a vida religiosa dos cristãos foi se desenvolvendo”. Em outras palavras, “o ano litúrgico é a estrutura que sustenta todo o mistério do culto cristão” (Matias Augé).

Essencialmente, do ponto de vista litúrgico, a vida da Igreja se desdobra no arco de tempo que vai do Advento até o último domingo do Tempo Comum – Solenidade de Cristo Rei do Universo – passando pelo Tempo da Quaresma, que culmina na celebração da Páscoa do Senhor. Dessa maneira, a vida do cristão é permeada por este “kairós” de Deus, o tempo da salvação que se chama “hoje”, que assume a plenitude no mistério da Encarnação de Cristo, extrapolando todos os limites e todas as dimensões do tempo e do espaço, invadindo, antropologicamente, todas as cavernas mais obscuras da imperfeição humana.

Numa atitude de abertura e conversão, todos somos chamados a mergulhar na graça da Redenção que nos é oferecida gratuitamente. Ela é a fonte da esperança de que fala o Papa Bento XVI na sua Carta Encíclica “Spe Salvi”, publicada no dia 30 de novembro de 2007, no Vaticano. “A redenção é-nos oferecida no sentido de que foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceito, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meda, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho”. (Spe Salvi, n. 1).

Falando da “transformação da fé-esperança no tempo moderno”, e fazendo uma retrospectiva histórica de momentos cruciais em que se tentou varrer Deus da convivência social para dar razão à ditadura de sistemas políticos e econômicos, o Papa afirma que “o homem não é só produto de condições econômicas nem se pode curá-lo do exterior criando condições econômicas favoráveis” (Spe Salvi, n. 21) e que, “para Deus entrar verdadeiramente nas realidades humanas, não basta ser pensado por nós, requer-se que Ele mesmo venha ao nosso encontro e nos fale”. (Spe Salvi, n. 23). E é, pois, esse encontro com Deus que queremos celebrar durante o Advento, e mais categoricamente no dia do Natal. Sim, aí, gostaríamos de experimentar, de modo pleno, a profunda satisfação do amor de Deus que nos supera em todas as nossas limitações. Todavia, para isso, o coração precisa ser dilatado, limpo e purificado. É o Papa quem afirma: “O homem foi criado para uma realidade grande, ou seja, para o próprio Deus, para ser preenchido por Ele. Mas, o seu coração é demasiado estreito para a grande realidade que lhe está destinada. Tem de ser dilatado”. (Spe Salvi, n. 32).

Citando Santo Agostinho, o Papa apresenta a bela imagem que descreve a “dilatação” do coração: “Supõe que Deus queira encher-te de mel. Se tu, porém, estás cheio de vinagre, onde vais pôr o mel?” Portanto, abramo-nos ao acolhimento festivo do Messias esperado, que chega, a fim de que rebente no nosso coração ressequido a alegria divina manifestada pelos pastores de Belém, pois, no “hoje” da nossa fé, nasceu-nos um Salvador, o Cristo Senhor. (Dr. PGRS, 2023).

terça-feira, 31 de outubro de 2023

 

A Solenidade de todos os Santos


 

“O Reino celeste é a morada dos santos, sua paz para sempre”. No dia 1º de novembro, celebramos, na Igreja Católica, a solenidade de Todos os Santos, que no Brasil se transfere para o Domingo seguinte, caso o dia 2 – comemoração de todos os fiéis defuntos – não caia em dia de Domingo.

Celebrar todos os santos significa alimentar a esperança de, um dia, também nós estarmos participando da plenitude da vida eterna, depois de vencidas todas as imperfeições de nossa humanidade pelo mistério da Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. De fato, ele nos abriu o cominho de céu, e nos tornamos herdeiros de sua vida divina, concidadãos dos céus, da vida plena em Deus. Desse modo, “já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus. Estais edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, do qual é Cristo Jesus a pedra angular. Nele, bem articulado, todo o edifício se ergue como santuário santo, no Senhor, e vós, também, nele sois coedificados para serdes habitação de Deus, no Espírito” (Ef 2,19-22).

Somente os santos poderão morar no céu! Portanto, todos somos convidados e intimados a uma vida santa diante de Deus e dos homens. A santidade é fruto da íntima e profunda união com Cristo, que faz resplandecer nos santos a glória de sua ressurreição. Ou seja, a santidade não é para os extraterrestres, como, às vezes, imaginamos. Não o é para os que vivem fora do mundo, nas nuvens imaginárias da alienação do cotidiano. Ninguém pode ser santo se não for dentro da realidade propriamente humana, vivendo as disposições interiores e espirituais na abertura transcendental que permite a ascensão para Deus. Quando Cristo pede que sejamos santos como o nosso Pai do céu é santo, isto é, perfeito (Mt 5,48), ela já está dando-nos a esperança de que isso é possível, com o auxílio de sua graça e a nossa abertura ao acolhimento das exigências e implicações que o desejo e a atitude concreta da santidade o pedem. Portanto: “A santidade cristã manifesta-se, pois, como uma participação na vida de Deus, que se realiza com os meios que a Igreja nos oferece, particularmente com os sacramentos. A santidade não é fruto do esforço humano, que procura alcançar Deus com suas forças, e até com heroísmo; ela é dom do amor de Deus e resposta do homem à iniciativa divina”. (Missal Dominical, 1995, p. 1367).

Nossos altares estão cheios do exemplo luminoso de pessoas que viveram na terra como se já estivessem no céu, totalmente impregnadas pelas maravilhas que Deus realizou em sua vida: “De fato, toda forma de santidade tem seu núcleo central na comunicação por parte de Deus, que irrompe na vida da criatura humana e efetua de modo criativo uma autêntica novidade interior. Na luz da transcendência divina, o santo é atraído a entrar em íntima relação com o Pai, participa de sua riqueza salvífica, vive suas exigências e torna-se uma incessante glorificação. Imerso na santidade do Pai e animado pelo Espírito, que é santo e santificante, o santo torna-se um hino de louvor e um sinal vivo da bondade divina para com toda a humanidade, pela riqueza de sua ação”. (Dicionário de Homilética). Contudo, a vida dos santos não é vivida sem as dificuldades impostas pelas limitações humanas dos filhos de Deus, mas, sobretudo, assumindo, na concretude da vivência cristã, todos os apelativos da vontade divina. Numa dimensão de fé, isso significa não se deixar perturbar pelas vicissitudes alheias aos desejos de controle do que nos escapa, mas tudo colocar, de modo confiante e abandonado, sob o prisma da providência divina. Para os santos, nada acontece sem a permissão divina, mesmo as situações aparentemente negativas, que causam aborrecimento e desgosto pelo entusiasmo da fé. Daí que os santos experimentam momentos de terrível escuridão interior, de aparente indiferença divina, de suspeitoso silêncio divino quanto às angústias desprovidas de consolações espirituais. De fato, quantos dissabores existenciais de questionamento perturbam a alma dos santos! Santa Teresa d’Ávila já dizia que não era de admirar que Deus tivesse tão poucos amigos por causa dos “maus tratos” com que Ele saúda os que dele se aproximam.

Desafortunadamente, o mundo moderno, tão materialista quando arreligioso, tem demonstrado um grave indiferentismo quanto às realidades sobrenaturais da existência. A ciência e a técnica tentam explicar tudo e, assim, não deixam espaço para o transcendente, embora o coração do homem jamais se satisfaça com os avanços tecnológicos ou científicos. Tudo isso pode favorecer uma faceta obscura do sonhado “humanismo”, mas não conduz à plenitude do homem desejoso de infinito. Na expressão do Papa Bento XVI (2009, n. 78).), “a reclusão ideológica a Deus e o ateísmo da indiferença, que esquecem o Criador e correm o risco de esquecer também os valores humanos, contam-se hoje entre os maiores obstáculos ao desenvolvimento. O humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano. Só um humanismo aberto ao Absoluto pode guiar-nos na promoção e realização de formas de vida social e civil – no âmbito das estruturas, das instituições, da cultura, do ethos – preservando-nos do risco de cair prisioneiros das modas modernas. É a consciência do Amor indestrutível de Deus que nos sustenta no fatigoso e exaltante compromisso a favor da justiça, do desenvolvimento dos povos, por entre êxitos e fracassos, na busca incessante de ordenamentos retos para as realidades humanas”.

Portando, também dentro do horizonte das conquistas humanas, deve haver condições producentes em relação ao encontro entre o humano e o divino, a fim de que essas satisfações historicamente momentâneas não fechem o caminho progressivo da santidade ultra histórica porque nos leva a Deus. É permitindo que Deus – o Santo e Santificador, por excelência – participe da nossa vida terrena que poderemos ser agraciados pela participação futura da sua vida no céu, pois a vida no céu não será outra coisa senão a continuidade de nossa amizade com Ele vivida na terra. Com efeito, iluminados pela luz interior da fé – que é um dom da gratuidade divina – os santos conseguem contemplar um horizonte tão longínquo que poucos conseguem perceber. É, pois, lá, onde eles fazem a sua morada eterna desde o mundo sombrio da Terra. (Dr. PGRS) 

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

 

Gaudete in laetitia fratrum

 

 


Alegrai-vos na alegria dos irmãos! Esse foi o pensamento que me assaltou o espírito quando vi fotografias de Dom Genivaldo Garcia, Bispo da Diocese de Estância, em Sergipe, visitando o Santo Padre, o Papa Francisco, ou até mesmo na Basílica do Vaticano, juntamente com alguns irmãos bispos, eleitos para o episcopado entre 2022 e 2023, especialmente, aqui, no Brasil. Fico imaginando a alegria que não deve ter sido poder participar de um encontro de formação na Santa Sé, no coração da Igreja, e com a presença do Santo Padre, o chefe visível da unidade universal da Igreja de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Que outra instituição religiosa tem esse carisma ou essa organização hierárquica, para levar a cabo a determinação do Senhor Jesus, que pediu aos Apóstolos que fossem pelo mundo inteiro anunciando a todos os povos a Boa Nova da salvação eterna? Digam o que quiserem dizer, mas só a Igreja Católica Apostólica Romana tem esse privilégio!

Na Igreja Católica, o episcopado é um convite especial do Senhor a fazer parte da plenitude da vocação do Ministério Sacerdotal. Mas não é para todos! O epíscopo é uma espécie de vigia, de atalaia, alguém que olha acima dos outros – conforme a etimologia grega do termo – numa espécie de vigilância permanente, a fim de que os súditos possam caminhar, segundo as leis de Cristo e da Igreja, para chegarem à vida eterna. Assim, os bispos agem “com Pedro e sob Pedro”. Trata-se, pois, de uma beleza bastante significativa no contexto eclesial. De fato, o Concílio Vaticano II afirma: “Todos os bispos, como membros do corpo episcopal, sucessor do colégio Apostólico, são consagrados não só em benefício de uma diocese, mas para a salvação de todo o mundo. O mandato de Cristo de pregar o Evangelho a toda a criatura afeta-os primária e imediatamente a eles, com Pedro e sob Pedro”. (Ad Gentes, n. 38). Ou seja, em comunhão com o Papa, os bispos assumem ainda a responsabilidade para fazerem acontecer a “dilatação do corpo de Cristo”.

Tão sublime é a missão do bispo, que outro documento destaca o seguinte: “Na pessoa dos bispos, quando coadjuvados pelos presbíteros, é o próprio Senhor Jesus Cristo que está presente no meio dos fiéis. Embora sentado à direita de Deus Pai, não se ausenta da comunidade dos seus pontífices; mas é principalmente através do Ministério excelso dos bispos que Jesus Cristo prega a palavra de Deus a todos os povos e administra continuamente o sacramento da fé aos crentes; e, graças ao ofício paternal dos mesmos (cf. 1Cor 4,15), vai incorporando por geração sobrenatural novos membros ao seu corpo; finalmente, pela sabedoria e prudência dos bispos, dirige e orienta o povo do Novo Testamento na sua peregrinação para a eterna bem-aventurança”. (Lumem Gentium, n. 21). Bonita e extraordinária missão apostólica a eles confiada, como a toda a Igreja, com a participação e a colaboração missionária dos sacerdotes e igualmente dos fiéis leigos.

Sei dos pecados dos homens da Igreja, que não são santos como gostaríamos – mas também nem anjos nem demônios; sei de suas feridas e vulnerabilidades mais profundas, diante da missão que lhe é exigida pela própria Igreja; e, aqui, não estou me referindo especificamente a um indivíduo por excelência. Refiro-me à fragilidade a que todos nós fomos expostos pela “desorientação antológica” que quebrou o eixo da humanidade quanto à relação divina; refiro-me à desobediência de Adão, que nos precipitou a todos nós nas garras da concupiscência da carne e dos olhos e consequentemente na soberba da vida. (cf. 1Jo 2,15-17). Tudo isso como consequência do pecado. No entanto, resgatados por Cristo pela generosa entrega do Filho de Deus, o novo Adão, voltamos maravilhosamente à intimidade com o Pai criador. Dessarte, o próprio Filho de Deus, Jesus de Nazaré, quis colaboradores, os discípulos, dentre os quais ele escolheu os “apóstolos”, cuja palavra significa “enviados”. (cf. Lc 6,12-19).

Agora, Dom José Genivaldo Garcia está também entre eles, na linha da sucessão apostólica, de modo que nós também nos alegramos com sua chegada ao episcopado! Ele é nosso amigo; ele é nosso irmão, saído do clero da arquidiocese de Aracaju. Por isso, alegramo-nos pelo seu chamado a tal ministério, pelo seu “sim” a Deus, pelo seu “fiat”’ – “faça se!” Que a experiência junto ao Santo Padre, com outros bispos de sua geração, anime-o imensamente, a fim de que corresponda sempre com mais generosidade à missão que lhe fora confiada pelo Pastor dos pastores, Jesus, o dono da messe. A ele, nosso abraço, nosso respeito, nossas orações por sua fidelidade. (Dr. PGRS).

 

segunda-feira, 3 de abril de 2023

O drama da paixão de Cristo

 

O drama da paixão de Cristo

 


O drama da Paixão de Cristo encerra o ministério da nossa salvação eterna! Na verdade, o que Cristo veio fazer entre nós? Qual o sentido último da sua Encarnação, da sua Paixão, da sua Morte e da sua Ressurreição? De fato, a história da salvação começa com a antiga promessa que Deus fizera de nos enviar o Salvador. E ela se encontra, lá, na origem da Criação, quando ao criar o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1,27), ele se rebelou contra o Criador mediante a insinuação da serpente tentadora, que semeou a inimizade entre Deus e a criatura humana. Assim, aquela resistência à vontade do Criador abriu o precedente radical que nos tornou prisioneiros do maligno. Contudo, o Pai, santo e misericordioso, não quis deixar-nos entregues à nossa própria sorte. E, por isso, prometeu: “Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar...” (Gn 3,15).

Esse texto do Antigo Testamento é considerado pelos grandes exegetas como o protoevangelho, isto é, a primeira boa nova alvissareira do nosso resgate espiritual para Deus. Assim, tal “versículo constata a hostilidade fundamental entre a serpente a humanidade, mas deixa entrever a vitória final da humanidade: é um primeiro clarão de salvação, ou Proto-evangelho. A tradução grega [...] atribui essa vitória não à linhagem da mulher em geral, mas a um dos filhos da mulher; dessa forma, é estimulada a interpretação messiânica já presente na tradição judaica antiga, depois retomada e explicitada por muitos Padres da Igreja”. (BJ, 2004, p. 38, nota “a”). Dessarte, “quando o homem consegue mostrar o que tem de pior e atingir seu ponto mais baixo, Deus lhe dá um recomeço”. (Wiersbe). Ou seja: no próprio alvorecer do nosso afastamento de Deus, está também a sublimidade misteriosa, bem longínqua, bem distante, da nossa Redenção, embora, no vislumbre da onisciência divina, esse rasgo de claridade intensa aconteça no relâmpago de sua visão universal, cosmogênica-transcendental. Com efeito, na intuição luminosa da divindade, a abrangência histórica da salvação é um clarão de plenitude experimentada somente por Deus, onisciente, onipresente e onipotente. Portanto, nossa visão míope, extremamente contaminada pela tiflose espiritual, reforçada pelo pecado, apenas saboreia o minimalismo radical dessa percepção, porque também é um dom da inteligência com que fomos dotados. No entanto, o Criador precisou preparar o coração da humanidade para o mistério de sua própria salvação, transcorrida na história mediante a revelação do próprio Deus.

Os séculos foram avançando, e Deus mesmo se encarregou de revelar o seu plano de amor incondicional pela criatura humana, enviou seus mensageiros, suscitou os profetas, fez resplandecer nos eventos históricos as maravilhas de seu poder, até fazer despontar a luz do Salvador outrora prometido. Desse modo, “quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a Lei, para resgatar os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial”. (Gl 4,4). Ele é o “Cordeiro imolado” desde a fundação do mundo, quando já detinha o “livro da Vida”. (Ap 13,8). E foi por meio do Filho que Deus olhou a cada um de nós, derramando sobre todos os dons infinitos e espirituais de sua misericórdia, mesmo se “O amor de Deus pelo pecador, de maneira alguma elimina sua abominação santa pelo pecado, pois, ainda que seja verdade que ‘Deus é amor’ (1 Jo 4,8), também é verdade que ‘Deus é luz’ (1Jo 1,5). Um Deus santo deve tratar do pecado, para o bem do pecador e para a glória de seu nome”. (Wiersbe). É o que Deus faz pela Pessoa do Filho, historicamente, durante o Drama da Paixão de Cristo, na Semana Santa! Por isso, somos chamados a viver esses dias com piedade, gratidão e esforço mais intenso de conversão ao seu amor. Outrossim, “Já se aproximam os dias de sua Paixão salvadora e de sua gloriosa Ressurreição. Dias em que celebramos, com fervor, a vitória sobre o antigo inimigo e entramos no mistério da nossa Redenção”. (Prefácio da Paixão do Senhor, II).

O Catecismo da Igreja Católica (CIC, n. 41), é bastante esclarecedor quando afirma: “Nenhum homem, ainda que o mais santo, tinha condições de tomar sobre si os pecados de todos os homens e de oferecer-se em sacrifício por todos. A existência em Cristo da Pessoa Divina do Filho, que supera e, ao mesmo tempo, abraça todas as pessoas humanas, e que o constitui Cabeça de toda a humanidade, torna possível seu sacrifício redentor por todos”.

A semana santa nos ajude a ver o Senhor da Glória no seu caminho de humilhação, de sofrimento e de morte – pela via sacra – e desperte nosso coração renovado no resplendor de sua Ressurreição. Assim, Senhor, “que o nosso pecado seja assumido pela tua graça redentora e santificante; nossa fraqueza, pela tua força; nossas lágrimas, pela tua consolação; nossa inquietação, pela tua serenidade; nosso egoísmo, pela tua mortificação; nossa covardia, pela tua coragem de amar até o fim; nossa impaciência, pela tua paciência; nossas feridas, pelas tuas chagas; nosso dilaceramento, pela plenitude de tua integridade; nossas lamentações, pelo teu silêncio; nosso fracasso, pela tua vitória; nossa nulidade, pela tua perfeição; nossa vida, pela tua morte, que gera a verdadeira vida; nossa morte, pela tua Ressurreição; nossa ressurreição, pela eternidade de Deus...” Amém! (Dr. PGRS).

 


segunda-feira, 13 de março de 2023

Araujo, o octogenário

 

Araujo, o octogenário

Conheci o professor José Araujo Filho, o octogenário, depois que ingressei no Seminário Menor “Sagrado Coração de Jesus”, em Aracaju, no dia 14 de fevereiro de 1987. Há pouco mais de trinta e seis anos. Àquela época, a CNBB havia instituído o chamado “ano propedêutico”, com o qual Dom Luciano Duarte (1925-2018) concordou plenamente, em virtude de que os estudantes vinham de colégios públicos e havia grande déficit de inteligência ou de conhecimento. Éramos considerados como “tábula rasa”, isto é, desprovidos do devido nível do saber para seguirmos no estudo do “Segundo Grau”, como era apodado o hoje “Ensino Médio”, de modo que, por essa razão, deveríamos parar um ano, aprofundando algumas disciplinas de cunho científico, mas também eclesiástico.

Naquele comenos, Dom Luciano Duarte, que era um exímio investigador das ciências filosóficas, teológicas e de outros saberes plúrimos, inclusive preocupado do a visão rasteira que possuíamos da realidade estudantil, requisitou, compulsoriamente, um grupo de professores intelectuais de Sergipe, seus amigos, formados na Europa, para nos administrarem as aulas preparatórias. Entre eles, estava o então ainda meio jovem professor José Araujo Filho. Portanto, ali nascia a possibilidade da estrada aberta para o conhecimento e a amizade com o dileto professor, que, às vezes, de perto, às vezes, de longe, seguia o processo formativo que, no meu caso, durou onze anos: quatro anos no Seminário Menor e sete no Seminário Maior, em Brasília, de onde voltei, no final de 1997, para ser ordenado diácono e, depois, sacerdote.

No Seminário Menor, fui seu aluno de latim e de língua portuguesa. Mas seu universo intelectual já abrangia um leque de sabedoria filológica e de outros ramos da cultura erudita – história, geografia, literatura clássica e moderna, entre outras – o que tornava interativa e envolvente sua exposição em sala de aula. Desse modo, a semente de seus conhecimentos fora plantada no coração de muitos seminaristas. Na dinâmica do ensino do português, ele sugeria que lêssemos textos para melhorar a prosódia e a compreensão do conteúdo, e todos participávamos, cada um por sua vez. Nunca esqueci a frase que, por sorte, me coube ler numa daquelas experiências na incipiência do aprendizado: “Ele espremia os olhos, porque não enxergava direito!” Aquela expressão quase me chocou, pois era justamente o que fazia quando perlustrava um texto. E foi Dom Luciano quem, um dia, descobriu que eu era quase cego!

Habitualmente, o então arcebispo frequentava o seminário menor toda semana, a fim de nos fazer uma palestra, e jantar com os seminaristas. Sempre pedia que o Reitor, Pe. Raimundo Cruz (1941-2014), desligasse a campainha e o telefone, porquanto ele desejava estar exclusivamente com os seus pupilos. O caudal de conteúdo e a motivação que derramava sobre nós eram algo apoteótico, mas também despertava melancolia e apreensão, porque ele fazia muitas perguntas para as quais, dificilmente, encontrávamos resposta. Contudo, era muito contagiante! Um dia, ele quis ensinar-nos uma música em latim, escrevendo-a na lousa, para todos copiarem. Foi quando, depois de perguntar se todos já haviam copiado, eu respondi que ainda não. No entanto, eu copiava do colega ao lado e não da lousa. Percebendo-o, perguntou por que não escrevia diretamente do quadro. Respondi: “Porque não enxergo direito”! Então, ele fez uma brincadeira, quase me chamando de “cego”, e pediu ao Reitor que me providenciasse, com urgência, um oftalmologista. Fiz os exames, e comecei a usar os óculos! Nas leituras seguintes, quando o professor Araujo pedia, eu não espremia mais os olhos! E voltei a ver o mundo mais festivo.

Pois bem, o tempo passou, conclui os estudos de filosofia e teologia, fui ordenado sacerdote, e nossos encontros eram esporádicos, mas sem nunca perder a possibilidade dos contatos. Em 2000 e 2001, fui Reitor do Seminário Menor, e eis que o professor seguia ministrando aulas de latim, participando ativamente das atividades acadêmicas da referida casa de formação. Uma fileira inumerável de alunos, hoje, padres – e há um bispo, Dom Valdemir, auxiliar de Fortaleza-CE – beberam da fonte cristalina de sua sapiência. Ou, pelo menos, tiveram o privilégio de seu desgaste intelectivo, ao tentar instrui-los com maestria e competência. Uma vez, tivemos a oportunidade de sermos colegas de turma, durante uma semana, em São Paulo, na Faculdade Assunção, num curso de hebraico moderno. Soube depois que um dos companheiros de viagem, o obrigou a dividir com ele os gastos que eu teria naquela semana, especificamente, com a hospedagem. Foi o bom velhinho, o Dr. Paulo Machado, grande jurista sergipano, que depois se tornou meu aluno no curso de Teologia do Seminário Maior da Província Eclesiástica de Aracaju. Ele que dizia: “Daqui a alguns dias, Paulo Machado será Paulo Foi-se!” Era muito espirituoso, e fazia esse trocadilho!

Bem mais tarde, em 2007, depois que eu voltei de Roma, onde fiz o mestrado em Teologia Bíblica, na Pontifícia Universidade Gregoriana, tornamo-nos colegas do Corpo Docente no já supracitado Seminário Maior. E, assim, ao lado de outros intelectuais de grande envergadura epistemológica, d’uma imensa capacidade de síntese gnosiológica – como era o caso, por exemplo, do Pe. Gilson Garcia (1936-2020) – tínhamos diálogos francos e frutíferos do ponto de vista da abrangência da formação acadêmica como deveria ser o ambiente dos Seminários. Mas, como o saber de um homem não deve se deter nos limites das ciências puramente humanas, o professor Araujo, desde cedo, também se demonstrou afeito às moções do Espírito, fomentando no fundo da alma o esteio da espiritualidade. Talvez, aqui esteja a essência do que veio a se tornar o nosso amigo octogenário, que teve todos os estágios das estações de sua existência alimentados pela ceiva do divino. E, com certeza, isso tornou mais luminoso seu caminho, e ainda mais convincente a trajetória do testemunho em relação aos que o cercam. Com efeito, é no silêncio e na solidão que o homem tempera melhor seu estado de alma para alcançar os páramos da felicidade que almeja. Melhor: “A verdadeira solidão será sempre o lugar do autoconhecimento e da elevação espiritual”. (Galvão, 2019, p. 147).

De algum modo, mesmo elevando hoje muitas ações de graças pelo dom de sua vida, inclusive na solene celebração eucarística, na Igreja, a vida do professor Araujo poderia ser resumida como dom e partilha, durante todo o seu passando. Assim, para concluir, recorro ao pensamento do autor moderno, um sacerdote paulino, que nos ensina: “O amor de Deus esconde uma plenitude que o amor humano não pode desvelar totalmente. Faz parte dos limites de nossa humanidade. Contudo, essa limitada compreensão, não nos exime do compromisso de multiplicar e partilhar esse amor no cotidiano da nossa vida. A experiência do amor divino não pode ser algo que nos isole das contradições do mundo, mas, antes, uma experiência que nos integra: à natureza, aos seres humanos, à vida compartilhada. [...]. Amar é fazer a experiência de despossuir-se continuamente”. (Galvão, 2019, p. 142).

Parafraseando ou quase repetindo Dom Luciano Duarte, o problema não é fazer oitenta anos, o grave é tornar-se octogenário, professor. Assim, pois, foi a vida do nosso amigo, agora, octogenário, que “se despossuiu” para enriquecer todos aqueles que, algum dia, estiveram ao seu lado, na vida, na escola, na universidade, na Igreja, no coração dos que o admiram e o amam. (Dr. PGRS, Aracaju, 11 de março de 2023).