sábado, 31 de maio de 2014

O Homem moderno e a vida espiritual!



O homem moderno e a vida espiritual


 


Em tempos de mudanças pessoais, eu estava encaixotando alguns livros quando me deparei com um título curioso: “L’homme moderne et la vie spirituelle.” Então, atraído pela escritura, sempre fascinado pelas letras e a transmissão de seu conteúdo, elaborei esse texto inspirado em seu conteúdo e com a mesma epígrafe. Na verdade, um tema tão atual e urgente quanto no momento em que o autor francês, Max Thurian (1921-1996), irmão de Taizé, resolveu externar algumas de suas preocupações ou inquietações sobre a vida interior, diante da opressora onda de modernidade que tenta distrair o homem de todo jeito quanto às necessidades mais profundas de seu espírito, de sua relação com o Transcendental. Seu livro fora publicado na França, em 1961, há mais de cinco décadas. 

 


Pelo visto, a relatividade temporal, que enche o coração humano de coisas e mais coisas, tem deixado o mesmo espaço da interioridade vazio pela dimensão superficial com que buscamos nossas realizações ou satisfações distantes de quaisquer resquícios de espiritualidade. Mas não adianta o homem querer libertar-se ou desvencilhar-se da origem vital de todos os seus dramas mais íntimos, como é o caso de sua prerrogativa espiritual. Diferente de todos os outros animais, o homo sapiens esforça-se, em vão, para negar a si mesmo que ele não é somente matéria, corpo, imanência, finitude. Que pobreza seria se nossa vida fosse somente isso! 


Max Thurian era evangélico, e Dom Luciano Duarte, Arcebispo Emérito de Aracaju, teve a oportunidade de encontrá-lo durante as sessões do Concílio Vaticano II. Um homem de reflexões penetrantes e pontuais, que mais tarde se converteu ao catolicismo romano e foi ordenado sacerdote em maio de 1988. Evidentemente, ele escreveu para os cristãos que, mergulhados no ativismo pressuroso de suas buscas incessantes, quase intermináveis, também são arrastados pela avalanche materialista das ocupações quotidianas, barrando as fontes do espírito para o exercício da ascese. Já na introdução de seu opúsculo, ele fala que a primeira “arrancada” da ascese cristã é acolher na vida de todos os dias a cruz de Jesus Cristo, pois, na pessoa do Crucificado, nossa existência, no que ela possui de difícil ou doloroso, encontra um sentido e uma eficácia. 

 


Na amplitude de sua visão, o cristão não é convidado somente a assumir seu sofrimento ou a participar do de Cristo, pela fé, mas a exercitar-se nos combates que todos os dias ele deve conduzir contra o demônio, o mal, a usura e contra si mesmo. Segundo ele, essa ascese ativa no cristão, muitas vezes, foi considerada como uma luta mórbida contra si próprio, contra os poderes naturais do ser humano, contra o que Deus criou e que é bom. Mas não se trata da questão pela qual o cristão deva construir uma antropologia dualista, em que o espírito e a carne, compreendidos como alma e corpo, estariam em luta. Desse modo, a vida espiritual do cristão deve fazer-se uma com sua existência, porquanto não existe uma vida interior e outra exterior. O fato é que, assim, tocamos o problema do drama da vida espiritual do homem moderno que sofre por não encontrar espaço em sua existência para a oração e a meditação. Quanto às armas de que devemos estar munidos para o combate espiritual, ele cita o orientação de São Paulo aos Efésios: “Fortalecei-vos no Senhor e na força de seu poder. Revesti a armadura de Deus, para poderdes resistir às insídias do diabo. Pois nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as Autoridades, contra os Dominadores deste mundo de trevas, contra os Espíritos do mal, que povoam as regiões celestiais. Por isso deveis vestir a armadura de Deus, para poderdes resistir no dia mau e sair firmes de todo o combate” (Ef 6,10-13).   
 



Em nada, o autor se distancia das consequências de uma vida agitada como a que corre nos dias de hoje, de modo que, pouco tempo ou mesmo nenhum instante reservamos para as necessidades da alma, para o bem-estar do espírito. Corremos atrás de tudo que possa nos dar prazer, satisfação pelos bens materiais, sensação de conforte e comodidade, realizações no trabalho, e de tantas outras razões justas que favoreçam o valor de nossa dignidade, mas nos esquecemos do essencial. A superficialidade toma conta do que temos e do que somos. E assim, dispersos na correria pelas conquistas vitais de nosso ser, perdemos a consciência de que nossa pessoa é uma unidade. Não obstante essa percepção, a vida espiritual sempre foi dominada pela concepção dualista da divisão entre corpo e alma, algo que herdamos da cultura helênica e permanece entranhada na ambiguidade da existência do homem entre as realidades de ordem interior e as realidades físicas, cujo binômio não encontramos na Sagrada Escritura. Por sua vez, a divisão da pessoa, provocada pela lei moral no homem não cristão, desejoso de obedecer a uma ordem espiritual ou moral, nós a encontramos com outro sentido na antropologia de inspiração filosófica grega. 


Segundo essa visão, não é a Lei que suscita uma tensão dominando o conhecimento do pecado, mas a alma, considerada como originalmente boa e imortal, tende constantemente a escapar do corpo, sua prisão, pela liberação filosófica, pela contemplação das ideias até que a morte complete essa liberação. Desse modo, a espiritualidade e a ascese consistem na procura do equilíbrio entre a alma e o corpo, na dominação do espírito sobre a matéria. Tal dualismo helênico é totalmente estranho aos escritores sagrados, porque, para eles, existe uma unidade fundamental da criação e do homem. E mesmo que São Paulo faça eco de uma moral legalista, constituindo uma tensão dualista da pessoa, sobretudo, relacionada ao período anterior à sua conversão, ela não é original ou fundamental. É, portanto, essa filosofia que influenciará a espiritualidade cristã, fazendo-a perder sua concepção antropológica primitiva. Todavia, o fato é que, independentemente de toda a discussão concebida dentro do dualismo grego, contraposto à visão cristã – que arrasta o autor pelos caminhos de uma meditação mais profunda, o que não convém enfatizar aqui – o homem moderno parece perdido na balbúrdia do quotidiano e desenraizado de seu próprio espírito. Perdemos o sentido do silêncio, da meditação, da reflexão, ou da solidão como proposta de encontro com nós mesmos. De fato, quem hoje em dia reserva um pouco de tempo para estar, verdadeiramente, só com o entretenimento da alma? 

 


Conforme o sobredito autor, o problema do tempo está entre os mais importantes de hoje. O homem moderno não consegue mais organizar o seu tempo. Daí a necessidade de repensar o uso que lhe damos em relação à vida espiritual, mas sem lamentar em vão uma época terminada em que não se havia tempo para rezar. Assim, a nova organização do tempo deve levar em consideração as exigências do trabalho moderno e situar a oração no seio da atividade humana. Outro problema é o da disponibilidade psicológica, da solidão e do silêncio. O homem de hoje, dificilmente só na vida de todos os dias, invadido pelo barulho da cidade e das máquinas, não pode ter quando ele quiser a disponibilidade psicológica e a paz interior que se julga necessária à oração e à meditação. Por tudo isso e por tantas outras necessidades fundamentais do espírito do homem, é que o cristão do nosso tempo, no mundo do trabalho e da técnica, precisa de novas diretrizes para organizar os valores de sua vida espiritual, para aprender – ou reaprender – a rezar, a contemplar seu Senhor no combate da vida moderna. Pela revisão de vida, de suas atitudes e de seus desejos em face da vida espiritual, o homem moderno deve abandonar mais seu egocentrismo, seu orgulho, seu amor-próprio, suas ambições egoístas, a vaidade do eu, sem o que ele jamais poderá progredir na ascese cristã e identificar-se, verdadeiramente, com o seu Senhor. 


Bebendo especialmente da fonte da Palavra de Deus, métodos fácies e exequíveis podem ser aplicados à vida de oração permanente, como ter o pensamento atravessado por uma expressão que nos coloque em sintonia com o espírito reflexivo e orante, a exemplo do publicano que simplesmente rezou, dizendo: “Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!” (Lc 18,13). E voltou para casa justificado diante de Deus, com seu coração leve e banhado da misericórdia do Pai. Somente assim, com serenidade, mas sem hesitação interior, o homem moderno poderá trilhar novas sendas de vida espiritual, motivado pela simplicidade e pela alegria de seu despretensioso agir.