terça-feira, 27 de agosto de 2013

Dies Irae...


Dies Iræ 
(21.08.2013)



Há dias que não deveriam ter existido na estampa de nossa vida. Dia de ira – Dies Iræ – ou de fúria, se preferirem, quando todos os deuses do panteão parecem conspirar contra o nosso destino; dias em que somos obrigados a mudar de direção, a tomar novos caminhos, buscando novas claridades, novas motivações para seguirmos adiante, contornando as curvas sinuosas da arbitrariedade do porvir... Dias que não são tão belos como a música clássica de Wolfgang Amadeus Mozart, sua última música – o Requiem – de 1791. Quem, de fato, nunca teve um dia, assim, daqueles que marcam um ponto zero no meio da estrada da vida, demarcando um antes e um depois? Dias que nos precipitam em queda livre no abismo existencial, sem que saibamos aonde iremos esborrachar-nos... Dias como o que Jó desejou que não tivesse existido, por não querer tocar a realidade com o dedo crucial de sua agonia vivencial. As palavras são suas: 


“Pereça o dia que me viu nascer, a noite que disse: ‘Um menino foi concebido!’ Esse dia que se torne trevas, que Deus do alto não se ocupe dele, que sobre ele não brilhe a luz! Que o reclamem as trevas e sombras espessas, que uma nuvem pouse sobre ele, que um eclipse o aterrorize! Sim, que dele se apodere a escuridão, que não se some aos dias do ano, que não entre na conta dos meses! Que essa noite fique estéril, que não penetrem ali os gritos de júbilo! Que amaldiçoem os que amaldiçoam o dia, os entendidos em conjurar Leviatã! Que se escureçam as estrelas da sua aurora, que espere pela luz que não vem, que não veja a pálpebra da alvorada. Porque não fechou as portas do ventre para esconder à minha vida tanta miséria. Por que não morri ao deixar o ventre materno, ou pereci ao deixar as entranhas? Por que me recebeu um regaço e seios me deram de mamar? Agora dormiria tranquilo, descansaria em paz, com os reis e os ministros da terra que construíram mausoléus para si; ou com os nobres que amontoaram ouro e prata em seus mausoléus. Que eu fosse como um aborto escondido, que não existisse agora, como crianças que não viram a luz. Ali acaba o tumulto dos ímpios, ali repousam os que estão esgotados. Com eles descansam os prisioneiros, sem ouvir a voz do capataz. Lá pequenos e grandes se avizinham, e o escravo livra-se de seu amo. Por que foi dada a luz a quem o trabalho oprime, e a vida a quem a amargura aflige, a quem anseia pela morte que não vem, a quem a procura com afinco como um tesouro, a quem se alegraria em frente ao túmulo, e exultaria ao encontrar a sepultura. Por que esse dom ao homem cujo caminho é escondido e que Deus cerca com uma sebe? Por alimento tenho soluços, e os gemidos veem-me como água. Sucede-me o que mais temia, o que mais me aterrava acontece-me. Para mim, nem tranquilidade, nem paz, nem repouso; nada além de tormentos” (Jó 3,3-26). 

 


Jó, como sabemos pelo relato bíblico, encontrava-se no meio de um terrível dilema, por contra da dura prova a que Deus permitiu que ele fosse submetido pela tentação de Satanás. Ele perdeu tudo o que possuía, desde sua família até seus animais, e todos os bens. Sua vida arrasada, seu coração dilacerado, sem encontrar as verdadeiras razões para tanto sofrimento, isto é, tudo o levou a amaldiçoar todas as consequências de seu nascimento, embora não tivesse ousado blasfemar contra Deus pelo reconhecimento de sua incondicional fidelidade. O capítulo 3 de seu livro manifesta um desabafo tremendo diante de sua agonia, de sua luta interior. É o espelho vivo de quem experimentou circunstâncias terríveis para o seu existir. Segundo Ludger Schwienhorst-Schönberger, “a lamentação de Jó pode ser articulada em três partes: na primeira parte (vv. 3-10), Jó amaldiçoa o dia de seu nascimento e a noite de sua concepção, um desejo que não é único na tradição veterotestamentária (cf. Jr 20,14), mas é insólito. Em imagens convulsivas, profundamente enraizada na alma humana, aqui fala um ser humano apavorado até a morte. Luz e trevas, morte e nascimento são as comoventes imagens. [...] As portas do ventre materno abrem-se, mas Jó vê miséria e sofrimento (v. 10). Ele gostaria de voltar para as trevas. Ele deseja, na verdade ele suplica não ter jamais de experimentar o que ora lhe acontece”. Profundamente prostrado, arrancado de todos os seus apoios mais viscerais, mais essenciais, Jó se debate no fundo de seu espírito amargurado, desconsolado. Por todos os lados, somente a miséria faz-lhe companhia. E o mesmo autor, continua: “No entanto, já na escuridão dos começos, cintila a faísca de um final redentor. Mesmo no absurdo, nas imagens que da escuridão que a alma, confusa até a morte, projeta a partir de si mesma, delineiam-se os contornos de uma saída. Jó não nega que ele tenha visto a luz, que tenha experimentado o sentido. Concebido durante a noite e nascido durante o dia (v. 3) – nesta imagem maravilhosa, depreendida da experiência humana, mostra-se o caminho da vida de um ser humano: das trevas para a luz. Contudo, agora Jó outra coisa não almeja senão que este fato aconteça em sentido inverso [...] (v. 4). Por quê? A única resposta encontra-se no v. 10: porque na luz, que lhe veio ao encontro com o nascimento, torna-se visível também o sofrimento de sua vida. Agora aconteceu, agora o sofrimento atingiu-o com ímpeto elementar”. 


Dos versículos 11 a 19, Jó manifesta profundo anseio pela morte. O desejo da morte assalta-lhe, talvez, como possibilidade de solução para todos os seus problemas. Não raramente isso acontece também a todos os pobres mortais, alguns dos quais destroem sua vida, precipitando-a pela porta forçada do desespero, cujo abismo abre-se e alarga-se pelos bordos do suicídio! No caso específico de Jó, “tal desejo abre o caminho em três lances. Eles correspondem a três pontos nodais da vida humana, nos quais os indicadores são colocados na direção da morte ou da vida. Em Jó, por três vezes os indicadores foram colocados ruma à vida, por três vezes, agora, ele deseja fazer retroceder esta decisão do destino: uma vez, em sua concepção (vv. 3-10); a segunda vez, em seu nascimento (vv. 11-19); a terceira vez, em sua vida impregnada de sofrimento (vv. 20-16)”. No segundo “lance” da expectativa dos lamentos de Jó, “o desejo de morrer é amiúde advertido com medo e pavor e não raro rejeitado e sufocado. A partir de um ‘amor à vida’ compreendido, às vezes, de maneira superficial e não raro cristãmente motivado, toda forma de anseio pela morte é voluntariamente banida. No entanto, se soubermos sondar bem, perceberemos aí um anseio que vai mais fundo. Interessante notar que as concepções que Jó tem da morte são características de uma vida plena: liberdade, independência, igualdade e apreciação entre grandes e pequenos, uma vida tranquila, sem receios”. Não é verdade que há pessoas que dizem em determinadas conjunturas de sua vida que gostariam de “morrer” ou de “sumir”? De distanciar-se de tudo e de todos, escondendo-se nos escombros de sua própria infelicidade? Porém, quem conseguiria fugir de si mesmo, de suas desventuras, dos solavancos tempestuosos de suas lutas? Não seria o anseio de morte manifestado por Jó um grito de dor pela vontade de uma vida em plenitude? 



No terceiro “lance” da lamentação (vv. 20-16), “Jó começa, como a segunda (v. 11), com uma pergunta ‘Por quê?’ (v. 20). Jó lamenta uma vida que conhece apenas sofrimento e medos. As pessoas que não experimentam outro coisa a não ser o sofrimento com frequência desejam a morte como solução (vv. 21-22). Na equilibrada, sóbria opinião de um mestre da sabedoria, encontra-se o pensamento semelhante em Eclo 41,1-2: ‘Ó morte, quão amarga é a tua lembrança para o homem que vive feliz e no meio de seus bens, para o homem sereno a quem tudo é bem-sucedido e ainda com forças para gozar o prazer. Ó morte, tua sentença é bem-vinda para o miserável e privado de suas forças, para quem chegou a velhice avançada, agitado por preocupações, descrente e sem paciência’. Semelhantemente à sentença de Eclo 30,17 – ‘É melhor a morte do que uma vida cruel, o repouso eterno do que a doença constante’ – Jó anseia pelo repouso da morte que não aparece”. Não levando em conta outras considerações do autor, ele conclui sua apreciação sobre o capítulo terceiro, afirmando que “nos vv. 20-26 Jó indaga pelo sentido de uma vida humana atingida pelo sofrimento. Ainda parece pressupor que exista uma vida sem sofrimento. Mais tarde ele abandonará tal pressuposição (7,1-2). Em Jó 3, Deus ainda não é interpelado diretamente. Contudo, ele ainda será denominado aquele que concede luz ao miserável (v. 20) e que ‘embarga o caminho do ser humano’ (v. 23)”. De fato, a sabedoria bíblica – através de seus relatos mais trágicos e vivamente cruciais, como o da vida de Jó – ensina-nos que toda a vida do homem é marcada pelo sofrimento, inclusive, como condição de sobrevivência. 


Portanto, o aspecto abordado pela presente reflexão é tão somente uma ponta acesa da luminosidade escura que perpassa toda a existência do sofrido Jó – do início ao fim do livro – cuja dimensão se aprofunda no revés das vicissitudes de sua perseverança. Ele triunfará sobre as cinzas das investidas de Satanás, pois é a força interior do crente que refaz o homem em todas as suas esperanças. Jó não apenas sabe disso, mas tem consciência da lucidez de sua fé, exposta a toda prova. Seu testemunho é um sinal claro e evidente de que também nós, por nossa vez, e com a ajuda de Deus, poderemos superar nossos dias de fúria, dias de implacável ira. Realmente, vez por outra, Deus também nos manda um espírito de satanás, personificado, feito pessoa,  para provar nossa paciência, nossa humildade, nossa docilidade, nossa capacidade de autocontrole. Ainda bem que os dias não são iguais, como diria a minha amada mãe, dona Helena Barbosa, percebendo um raio luminoso de alegria no meio de uma densa nuvem de tristeza. Do contrário, um deles já teria nos matado no vendaval incontrolável da existência, da realidade que nos escapa das mãos qual folhas secas carregadas pelo vento e atiradas na imensidão do destempero emocional do eu profundo.






terça-feira, 13 de agosto de 2013

Se Deus existisse, Diálogos com um jovem ateu

Se Deus existisse
Diálogos com um jovem ateu

 

Durante o tempo em que eu vivi na Europa, de 2002 a 2006, por quase três anos seguidos, todos os sábados eu pegava um trem que me levava pelas terras italianas, de Roma em direção à Toscana, no Norte. O trem seguia, depois de eu ter descido em Orbetello. Era um quase ritual sagrado, permanente. O encontro com pessoas estranhas e de todo tipo, de todas as nações, era algo comum, uma vez que a Itália, como muitos outros países da Europa, tornara-se uma verdadeira encruzilhada de caracteres e estereótipos engraçados e diferentes no imenso e vasto corredor do turismo local. Entre eles, eu jamais seria reconhecido como latino americano, senão pelo sotaque que denunciava minha origem latino-americana. Do contrário, mudo e quieto, eu era confundido com indiano, marroquino ou qualquer outro modelo oriundo de terras mais distantes da Europa. Quando por exemplo, em 2004, uma onda de atos terroristas na Inglaterra e na Espanha também ameaçava chegar à Itália, era normal, indo e voltando da Pontifícia Universidade Gregoriana, ouvir nas rádios italianas das estações do metrô o seguinte comunicado: “Se você encontrar algum suspeito, por favor, queira denunciá-lo”! Então, a gente se entreolhava e dava aquela risada, quase indiscreta, porque todo mundo parecia suspeito no turbilhão de caricaturas humanas, tão diversificadas e estranhas quanto carregadas de suspeitas meio evidentes. Eu, então, com a cara de marroquino nem saberia o que dizer! 

 

Em muitas dessas idas e vindas, certa ocasião, deparei-me com um passageiro não muito habitual, que, por iniciativa própria, apresentou-se dizendo que “odiava os da minha [tua] raça” – os padres da Igreja Católica de Roma – mas que, por acaso, tinha “ido com a minha cara”. A partir de então, eu, que geralmente durmo em qualquer veículo ou transporte, se eu não estiver conduzindo-o, sempre tive a desconfiada companhia daquele rapaz, cara de jovem rebelde, cabelos longos, estendidos sobre os ombros ou amarrado qual “rabo de cavalo”, tentando contrariar o “politicamente correto”, em diálogos às vezes cansativos para mim, às vezes divertidos e curiosos, porque sua franca espontaneidade não se intimidava em abordar os mais diversos assuntos para um sacerdote que acabara de conhecer. Confesso que, mesmo meio temeroso, eu me divertia com ele. Na verdade, não havia maldade em seu discurso, mas a prudência não me permitia ficar à vontade com meu amigo, tão ilustre quanto desconhecido. Ele dizia falar vários idiomas, afirmava ser escritor, que havia publicado um livro na Inglaterra, por medo da repressão da Igreja de Roma, na Itália – devia ser um livro não muito católico – e, claro, sendo um bom italiano, nunca deixou de corrigir meu linguajar. Com ele, que falava da importância de conhecer bem os vocábulos de uma língua estrangeira, aprendi a falar corretamente expressões não muito fáceis para um estrangeiro, mesmo de língua neolatina, em que vários termos assumem a mesma grafia e o mesmo significado, sem falar dos termos que tentamos “inventar”, por aproximação com a nossa linguagem. 

Nem sempre as pessoas corrigem o estrangeiro, com medo de estarem ferindo a sensibilidade do outro. É verdade que também não devemos exagerar, como fazia uma freira em uma comunidade religiosa, aonde, vez por outra, eu ia substituir um amigo sacerdote que rezava missa aos domingos para elas. A irmãzinha era tão exigente que não me dava trégua, era uma correção atrás da outra. O fato é que eu tinha acabado de chegar do Brasil, embora já conhecesse a língua, a ponto de compreendê-la bem. Mas sempre tropeçava nas regras gramaticais que são mais complexas do que as da língua portuguesa, sobretudo, em relação às infinitas preposições que mapeiam o tecido linguístico daquele rebento latino. Basta dizer que para um estrangeiro saber colocar bem determinadas preposições italianas no justo e correto lugar do discurso ou da proposição, é preciso que ele esteja vivendo lá, há, pelo menos, dois anos. De fato, depois desse tempo, a verborreia parece fluir mais tranquilamente. Então, certa ocasião, eu já estava muito aborrecido com a freirinha e, na espontaneidade provocativa de nordestino, perguntei-lhe: “Por acaso, eu nasci na Itália? Sou italiano?”. E ela parou de me amolar. Mas ela tinha razão. Se você, caro leitor, quiser saber o quanto é incômodo ouvir alguém falando mal a sua língua, observe os estrangeiros que passeiam entre nós, inclusive, alguns dos quais já moram no Brasil há muito tempo, mas não conseguem dobrar a língua conforme o traquejo exigido pela bela língua portuguesa, a “última flor do Lácio”. Quando, amiúde, eu deveria fazer a homilia, em italiano, durante a missa, às vezes, dava-me vontade de deitar e dormir – ou de chorar – no altar até passar o momento espinhoso da exposição da prédica. Até hoje não sei bem para quem era pior: se para eu falar ou se para o auditório me ouvir. Nunca descobri para quem era mais difícil. O jovem ateu ajudou-me um pouco nesse sentido.  


Sim! Logo de cara, aquele jovem se apresentou dizendo que era “ateu” por convicção, uma atitude da qual ele não parecia muito consciente nem convicto. E afirmava, categoricamente, que se Deus existisse, ele teria de se explicar para Ele. Não sabia o porquê de ter vindo ao mundo sem ser consultado, o porquê dos problemas da vida, das incongruências do destino não desejado nem sonhado. Se dependesse de sua vontade, não teria vindo parar no planeta terra. Para tudo isso e para tantos outros conflitos pessoais e relacionais, de interrogações e buscas para consolar seu espírito, Deus teria de se ver com ele. Pura ousadia de adolescente desencaminhado pelas razões da descrença. Vivia problemas familiares, tinha brigado com o pai, distanciou-se da irmã por conta disso, e acabou indo morar sozinho. Havia se tornado um adolescente frio e indiferente, tendo de enfrentar a vida com as convicções de quem pensava não ter encontrado o rumo certo. Demonstrava-se perturbado, revoltado, inquieto, como é próprio da juventude moderna. Tempos depois, descobri a motivação de sua viagem semanal em direção à Toscana, a uma pequena cidade daquele interior, cujo nome não lembro mais. Ali, ele se dirigia para encontrar a sua namorada. Estava apaixonado e vivia um romance que, a cada sete dias, fazia-o despertar cedo para ir ao encontro de sua amada. Ele nunca entrou em detalhes sobre o seu namoro, mas o todo de seu comportamento denunciava o jeito dos flertes não muito inocentes dos “namoridos” modernos. Eu, simplesmente, reservava-me à discrição própria das intuições sacerdotais. A verdade é que eu não sei que tipo de confidência ele encontrou em mim, um daqueles a quem dizia, francamente, “odiar”, de modo a poder revelar “segredos” de sua vida que nem todo mundo tem consciência de fazê-los, sem escrúpulos, quanto mais de revelá-los a um desconhecido. 

 

Das muitas reações que eu já presenciei das pessoas por se depararem com um sacerdote – de quem muitos correm como o diabo foge da cruz – confesso que a dele foi uma das mais desconcertantes e surpreendentes, pela franqueza da abertura e sinceridade com que ele despejava a sua vida diante de mim. De todos os pecados do Decálogo aos quais fazia referências, de modo inteligente e brilhante – ele tinha consciência das leis divinas, ou pelo menos tinha ouvido falar delas – ele sabia, claramente, de, pelo menos, nunca ter matado. Todos os outros pecados, ele os cometia qual fora da lei, sem remorso nem compunção interior, o que mo dizia abertamente. E disparava, com franqueza assustadora: “Assim como vocês ficam indignados quanto encontram alguém que contraria todas as regras, todas as leis, eu, do mesmo modo, fico indignado quando encontro alguém que se comporta corretamente”. De fato, seu bilhete no trem era sempre o de meia passagem, quando não, de criança, depois dizia ao cobrador – diante de mim, tendo confessado a suposta esperteza de seus delitos – que na hora em que tentou solicitar o bilhete normal, a máquina lhe dera outro. Se, por exemplo, ele subia ao trem sem o ingresso, dizia que não teve onde comprá-lo, que a máquina estava quebrada. No geral, ele tentava safar-se, assim, com desculpas pouco convincentes, e parecia sair-se “bem”. Se comprava um pacote de biscoito para o lanche, o refrigerante era roubado. Ou seja, ele nunca estava em crédito com as coisas que usava e das quais usufruía. Era um contraventor ousado e teimoso. Um reincidente obstinado na arte de contrariar os bons costumes. Certa feita, assentado à minha frente, ele teve a ousadia de preparar um cigarro de “marijuana”, uma droga que fez questão de apresentar-me, perguntando: “Sabe o que é isso aqui? Marijuana! Se a polícia me pegar, no mínimo, levarei um ano ‘di galera’ [de cadeia!]”. Eu não pudera acreditar! Imaginem se ele fosse flagrado, falando comigo! Aliás, entre as muitas perguntas que ele me fazia, tanto quanto à vida pessoal quanto à vida eclesial, uma era sobre se nós, da Igreja, usávamos droga. Não era que fosse uma curiosidade apenas em relação à droga em si mesma, mas à sua qualidade. Como ele dizia ter uma admiração imensa pela Igreja Católica, enquanto instituição poderosa e influente em todo o mundo, se nós usássemos droga, seria o máximo, porque, certamente, tinha de ser “uma droga de primeiríssima qualidade!”. 

 

Na verdade, muitas de suas indagações eram marcadas pelo cinismo franco e debochado, estampado no rosto de sua aparente ingenuidade. Mas eu me divertia com sua desfaçatez provocante e incisiva. Com efeito, essa foi a ponte que ele encontrou para dar vazão à dialética das inquietações emergenciais de seu espírito. Aprendemos muito com o entretenimento aberto pela disposição de sua iniciativa. Um dia, ele perdeu o horário do trem e foi pela estrada pedindo carona, o que estava habituado a fazer. Então, enviou-me uma mensagem pelo celular, informando-me e pedindo ajuda ao “meu” Deus: “Eu perdi o trem! Cadê o seu Deus para me ajudar, agora? Reze por você e por mim, quem sabe se ele não o escuta?!”. Ele, que afirmava ser satanista, com a condição de que nunca matara ninguém, não levando a sério a prática de alguns rituais dessa “religião”, não perdia nenhuma oportunidade para ridicularizar a minha fé. Também, reconhecia que estávamos em lados opostos: “Você escolheu o Super, o Máximo, o Todo-poderoso, enquanto eu escolhi ficar do outro lado”. Poderia um ateu expressar-se, assim, convicto de que existe um ser Superior a tudo e a todos, fonte e razão de ser de todas as criaturas? Não seria um discurso contraditório, ambivalente, de uma mesma origem, bifurcado pelos caminhos do cérebro? Meu amigo ateu não era ateu. Talvez fosse alguém perdido dentro de suas próprias hesitações cognoscitivas, intelectuais. Sua afirmação de ateísmo parecia acender na consciência o vislumbre da fé na penumbra de suas convicções. Com efeito, o ateísmo teórico nem sempre coincide com o ateísmo prático, pois a definição não categórica de suas linhas de pensamento e vivência concreta pode contrariar a certeza aparentemente consciente de quem imagina saber que direção tomar. E é aí onde se instala a confusão dialética do suposto ateu. Por isso que, na afirmação do Concílio Vaticano II, “pela palavra ateísmo designam-se fenômenos bastante diversos entre si. Enquanto Deus é expressamente negado por uns, outros pensam que o homem não pode afirmar absolutamente nada sobre Ele. Alguns, porém, submetem a exame o problema de Deus por tal método, que parece carecer de sentido. Muitos, ultrapassando indebitamente os limites das ciências positivas, ou sustentam que só por este processo científico se explicam todas as coisas, ou, ao contrário, já não admitem de modo algum nenhuma verdade absoluta. Alguns exaltam o homem a tal ponto que a fé em Deus se torna como enervada e dão a impressão de estar mais preocupados com a afirmação do homem do que com a negação de Deus. Outros se representam um Deus de tal modo que aquela fantasia, que eles repudiam, de modo algum é o Deus do Evangelho. Alguns não abordam sequer o problema de Deus: parece não sentirem nenhuma inquietação religiosa e nem atinarem por que deveriam preocupar-se com religião. Além disso, o ateísmo se origina não raramente ou de um protesto violento contra o mal no mundo, ou de caráter do próprio absoluto que se atribui indevidamente a alguns bens humanos, de tal modo que sejam tomados por Deus. A própria civilização moderna, não por si mesma, mas porque demasiadamente comprometida com as realidades terrestres, pode muitas vezes dificultar o acesso a Deus” (Gaudium et Spes, n. 19). Crendo ou não crendo, o fato é que o homem sempre busca a plenitude de sua realização pessoal. Por isso que, mesmo se de modo misterioso, conforme nos abramos ou não aos imperativos divinos, a mensagem da Igreja “concorda com as aspirações mais íntimas do coração humano, quando reivindica a dignidade da vocação humana, restituindo a esperança àqueles que já desesperam de seu destino mais alto” (Gaudium et Spes, n. 21). E é, sobretudo, diante de nossos próprios limites, que deveríamos tornar-nos mais sensíveis à dimensão transcendental que nos invade, também, pelas inquietações dos questionamentos existenciais que fazemos. 

Tendo terminado o namoro com a “ragazza”, a sua “moça” – o que fiquei sabendo enquanto voltava a Roma e o encontrei pela última vez no carrilhão de passageiros – nunca mais tive notícias do meu jovem amigo, de cujos diálogos eu sentia saudade, mas de quem eu não tive coragem de aproximar-me mais do que o necessário para escutar os lamentos e “devaneios de um caminhante solitário” – como Jean Jacques Rousseau intitulou uma obra sua – que encontrou em um sacerdote brasileiro a oportunidade de poder abrir sua alma e conversar com ele, “reservadamente”, no vagão do trem, sobre as razões misteriosas de sua existência aflita, aparentemente falida, mas desejosa de alçar o voo sonhado pela esperança na direção da plena realização. Espero que meu jovem amigo ateu tenha melhorado o humor de sua vida, com a subsequente adequação de seu comportamento aos direitos e deveres de justiça, exigidos pela formação de uma sociedade onde todos se responsabilizem pela lisura do cuidado com o patrimônio público e privado, dentro dos limites sadios da reciprocidade e do compromisso de respeito com tudo e com todos.