segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Sete Bilhões!!

Sete Bilhões



Sete bilhões de habitantes no destruído planeta Terra. Ele não vai suportar. Talvez, ele baixe mais um pouco e dificulte sua permanência na órbita do universo. Os homens desesperados preocupam-se com as consequências dessa cifra bilionária. Com certeza, os desafios da sobrevivência dos povos no circuito internacional da aldeia global recrudescerão. Tornar-se-ão mais graves e contundentes. 

Mais gente na terra é sinônimo de tudo mais: mais comida, mais competição, mais indiferença, mais ganância, mais pobreza, mais miséria, mais doenças, mais exploração, mais guerra, mais dinheiro, mais arrogância, mais destruição, mais violência, mais e mais e mais decida você, caro leitor, o quê! Mais gente pode significar também menos: menos espaço, menos condições de vida digna, menos meio ambiente, menos alimentação, menos controle civilizatório, menos e menos e menos, decida você o quê! Uma lista pessimista, não? Vejamos outros mais positivos: mais educação, mais paz, mais tolerância, mais companheirismo, mais solidariedade, mais fraternidade, mais proximidade universal, mais atenção aos países mais pobres, às nações que vivem na indigência de todo tipo e ordem. O fato é que o homem destruiu tanto a natureza em sua beleza original, que agora ele vai ter de pagar caro para manter o padrão de exigências ambientais favoráveis ao seu próprio convívio. Diante de tantos desafios mais urgentes de sobrevivência na terra, espero que a humanidade não decida matar mais nem desrespeitar mais a dignidade humana pelos fins perversos que garantem o bem-estar de alguns em detrimento do desaparecimento de outros. 

A terra tem lugar para todos. Planejamento familiar, controle de natalidade, produção de alimento, a não destruição do meio ambiente, a falta de espaço, tudo deve levar o homem a desenvolver condições de vida melhor para todos. A propósito, muita gente desconfia dos pronunciamentos da Igreja e dos papas, mas, ela, perita em humanidade, não deixa de fazer sua reflexão quanto à possibilidade de superação dos conflitos e dos obstáculos emergenciais em que o homem, não raras vezes, dispensando Deus do horizonte de sua construção social, econômica, política, intercultural, encontra-se enrascado por conta de sua teimosia em imaginar-se senhor de si mesmo e, por que não dizer, de toda a criação. Na verdade, a Igreja não é contra o progresso ou o desenvolvimento. Nesse sentido, julgo oportuno o pensamento do Papa Bento XVI, quando afirma: “Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. [...] A ação do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus, que é a meta para onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações, para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras” (Caritas in Veritate, n. 7). A visão do Papa quanto aos problemas e soluções tecnológicos na realização plena do homem, enquanto tal, está dentro do enredo de uma civilização que não se limita somente à sua autossuficiência ou ao seu bastar-se a si mesma. 

E o Papa vai mais longe: “O risco do nosso tempo é que, à real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a interação ética das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano. Só através da caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objetivos de desenvolvimentos dotados de uma valência mais humana e humanizadora. A partilha dos bens e recursos, da qual deriva o autêntico desenvolvimento, não é assegurado pelos simples progresso técnico e por meras relações de conveniência, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem (cf. Rm 12,21) e abre à reciprocidade das consciências e liberdades” (Caritas in Veritate, n. 9). A verdade é que o Papa não tem interesse em dar soluções práticas aos desafios impostos pelo momento histórico em que vive a humanidade. Na qualidade de pastor e evangelizador, sua preocupação tem a ver com o sentido de uma sociedade não esquecida de Deus, o único que pode favorecer, por meio do próprio dom da inteligência posto no homem, a dinâmica de salvação também em relação às lutas temporais do homem na terra. Tanto que ele confessa, com serena, convicta e desconcertante simplicidade: “A Igreja não tem soluções técnicas a oferecer e não pretende ‘de modo algum imiscuir-se na política dos Estados’, mas tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do homem, da sua dignidade, de sua vocação. Sem verdade, cai-se numa visão empirista e cética da vida, incapaz de se elevar acima da ação porque não está interessada em identificar os valores – às vezes, nem sequer os significados – pelos quais julgá-la e orientá-la. A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf. Jo 8,32) e da possibilidade de um desenvolvimento integral do homem” (Caritas in Veritate, n. 9). Dentro do redemoinho das inquietações do Santo Padre está envolvida a humanidade inteira e todas as ações dos homens, sejam eles líderes governamentais ou cidadãos comuns. 

Assim, todos nós somos convidados a dar nossa colaboração, a fim de que possamos construir na terra um lugar digno e decente para todos, começando pelas pequenas ações no lugar onde moramos. A vida do planeta depende de todos e de cada um na singularidade de seu envolvimento com o conjunto global. A morte do planeta é a morte do homem. Destruindo a terra, destruímos nosso habitat comum. No entanto, não o podemos fazer, com competência e dignidade, se nos imaginamos donos do que não nos pertence, pois o milagre criacional divino continua agindo na preservação do planeta que o homem tenta destruir com sua arrogância e ação mesquinha e deteriorante. 

Na constituição social de sete bilhões de pessoas, o planeta terra seria mais belo e bonito se o homem se desse conta da beleza que o circunda, no esplendor do nascer ou pôr do sol, na luminosidade tímida da lua ou do brilho distante das estrelas, no encanto dos mansos regatos, no verde das matas e florestas, ou no frescor paisagístico das montanhas geladas. Mais do que isso: se ele se desse conta da própria riqueza e grandeza que carrega dentro de si mesmo, obra-prima da criação. Conta-se que um santo converteu-se lendo uma frase de Santo Agostinho que dizia: os homens sobem às montanhas para contemplar a beleza da natureza, cruza vales e montes admirando a criação, e passam ao lado de si mesmos, na indiferença. O fato é que somos mais que a natureza, mais que o universo, mais que a constituição sólida e material de tudo que existe, pois, criados à imagem e semelhança divinas, temos consciência de nossa existência na terra, adormecida na inconsciência de seu próprio existir.


Perennitas Verbi Dei

Perennitas Verbi Dei 



Perennitas Verbi Dei

A palavra de Deus permanece para sempre. Por meio dela, nós somos orientados sobre as coisas do céu e os caminhos que nos levam na direção do alto, distante das coisas do chão, pelas quais nos sentimos tão atraídos e, até mesmo, desnorteados. Por que será que temos tanto medo de mergulhar nossa consciência nas páginas da Sagrada Escritura? Por que será que um texto, tão antigo e tão novo, não se perdeu no meio dos desvios comportamentais humanos, que, ao longo dos séculos, tem tentado varrer do espírito humano as verdades perenes da palavra de Deus [perenitas verbi Dei]? Por que será que não nos dispomos, com toda a capacidade de nossa liberdade interior, em saborear a Palavra de Deus, única palavra segura, que nos confere a certeza de um amor incondicional, não obstante todas as nossas resistências? 

Apesar das dificuldades que encontramos para ler e compreender os textos bíblicos, não devemos nem podemos desanimar. Com certeza, assim como a chuva fina cai no chão e fecunda a terra, do mesmo modo, também a palavra de Deus vai transformando o terreno do nosso coração e de nossa vida pela chuva fina de sua sabedoria divina, regando toda a nossa existência. Por isso, não nos deixemos levar pelas incompreensões aparentes. Lendo e rezando através dos textos bíblicos, sobretudo, pelo Novo Testamento, peçamos ao Senhor Jesus, que, assim como ele ensinou aos discípulos de Emaús (Lc 24), de igual modo, explique-nos as Escrituras e nos conceda o dom da fé e abertura aos seus ensinamentos, a fim de que possamos crer e viver a sua palavra. De fato, Jesus disse que não veio abolir a lei, mas levá-la à sua plenitude, dando-lhe sentido pleno a tudo aquilo que os profetas de Israel falaram da parte de Deus sobre o próprio Jesus. Na verdade, Cristo é a plenitude da Lei. Ele é a última Palavra revelada por Deus aos homens. Portanto, somente em sintonia com Cristo, seremos capazes de apresentar ao mundo, cada vez mais paganizado e anticristão, o testemunho sereno e autêntico de nossa adesão ao seu projeto de amor salvífico e redentor. Com efeito, a Palavra por excelência de Deus, Jesus Cristo, não é uma palavra estéril, ou incapaz de produzir os frutos devidos no seio da humanidade sedenta de Deus. 

Claro que a voz de Cristo e de sua Igreja poderia ser comparada à “voz que clama no deserto”, mas prepara os caminhos do Senhor. Sem Deus, o homem jamais atingirá o destino último de sua existência, qual seja, a transformação radical de seu ser e de todas as tristezas do mundo presente. Fechando-se para Deus, como se tem demonstrado o mundo ocidental, em que o sintoma da religião parece revestir-se de uma receita caseira e doméstica, ao sabor do cozinheiro e do cliente de sua cozinha, homem seguirá perdido, sem rumo nem direção certa. Impressionante como a onda dos antivalores tem grassado de maneira assustadora e veloz sobre as consciências menos advertidas. Os valores sagrados da dignidade humana não encontram mais o respaldo da coletividade desesperada, bordejando infrene, de uma direção à outra, pelo abismo do mais completo descalabro moral e espiritual. Essa semana, eu fui abordado por um grupo de jovens de uma Faculdade de Aracaju que distribuíam camisinha, indiscriminadamente, aos transeuntes do Shopping Rio Mar, como se todo mundo usasse ou devesse usar camisinha. Não seria um convite à depravação? Não seria uma forma disfarçada, mas, perniciosa de provocação à precocidade do desenvolvimento sexual de pessoas despreparadas para o respeito e a responsabilidade com o dom sublime da sexualidade, criada por Deus com uma finalidade específica e determinada pelas leis de sua própria natureza criacional? É verdade que não somos ingênuos a ponto de pensar que os “namoridos” modernos estejam privados das atrações fatais. No entanto, pensar que a educação sexual deva passar pelo incentivo à promiscuidade de todo tipo e sem o devido cuidado com o respeito pelo próprio corpo, tornando-o objeto da escravidão carnal de taras incontroláveis e ensandecidas, é um risco que precipita a todos na espiral maligna do redemoinho da depravação. Indubitavelmente, como há alguns anos afirmava o Papa Bento XVI em sua primeira viagem à África, o problema da AIDS e das doenças sexualmente transmissíveis não se resolve distribuindo preservativos. Depois, ainda querem combater a gravidez precoce e o abuso sexual dos pequenos, das crianças, instigadas por todo tipo de propaganda e publicidade, levadas pelos meios de comunicação aos adolescentes e jovens sob o prisma ideológico de educação. Na verdade, o que é a ideologia, numa palavra rápida e, talvez, superficial? A ideologia é uma ilusão social porque ela, não apenas esconde a realidade das coisas na sua verdade mais profunda, mas também mascara, dissimula, disfarça a podridão que o argumento falacioso oculta no primor de sua dialética perversa e contraditória. 

Contra essa avalanche de deturpação dos caminhos sinuosos da equivocada liberdade humana, está o pressuposto da palavra de Deus, que nos orienta sem ideologia nem demagogia. O contato frequente com a palavra de Deus alimenta o desejo de intimidade com ele por meio de uma vida de santidade. E os santos da Igreja de Cristo, durante todos os séculos, demonstraram que é possível uma vida virtuosa quando o desejo do coração é sincero. No entanto, essa sinceridade do coração não é apenas uma vontade distante dos caminhos de Deus, mas um empenho quotidiano na prática da vontade divina. Santa Terezinha do Menino Jesus dizia que bastava lançar o olhar sobre o Evangelho para, de modo imediato, respirar os perfumes da vida de Cristo, sabendo para onde correr nos momentos de sua aflição. Nesse sentido o Papa Bento XVI reconhece: “Certamente não é por acaso que as grandes espiritualidades, que marcaram a história da Igreja, nasceram de uma explícita referência à Sagrada Escritura. Penso, por exemplo, em Santo Antão Abade, que se decide ao ouvir a palavra de Cristo: ‘Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuíres, dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro nos céus; depois, vem e segue-Me’ (Mt 19,21). Igualmente sugestivo, é São Basílio Magno, quando na sua obra Moralia, se interroga: ‘O que é próprio da fé? Certeza plena e segura da verdade das palavras inspiradas por Deus. [...] O que é próprio do fiel? Com tal certeza plena, conformar-se com o significado das palavras da Escritura, sem ousar tirar ou acrescentar seja o que for’” (Verbum Domini, n. 48). De fato, a Sagrada Escritura não é propriedade nossa ou de quem que quer seja, no sentido de que as partes menos cômodas ao nosso laxismo moral e ético possam ser rasgadas ou mesmo adulteradas. Eis, o fato pelo qual Cristo disse: “Até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado” (Mt 5,17-19). 

O grande milagre que podemos constatar da palavra da Bíblia, é que ela não fica caduca, envelhecida, nem, para usar uma expressão da moda, perde o prazo de validade. O homem pode determinar uma moral segundo a conveniência de suas aptidões de vida errada; ele pode estabelecer critérios falsos pela votação da maioria, que, como já tive a oportunidade de afirmar, não é sinônimo de verdade; enfim, ele pode, inclusive, condicionar o oportunismo da realização de suas pretensões egoísticas e unilaterais, que satisfaçam todos os caprichos de suas vontades. Todavia, longe dos princípios divinos, ele terminará enroscado na teimosia incoerente de suas escolhas fatais e incongruentes ao estado de perfeição anelado pela inconsciência de suas carências mais profundas.


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

São Paulo na encruzilhada de nossas angústias existenciais!


São Paulo na encruzilhada de nossas angústias existenciais



Não sem muitas dificuldades, podemos reconhecer e aceitar, conforme a concepção de Flores, que Paulo de Tarso é uma das personalidades que caracterizam o ser humano de todos os tempos e de todas as culturas, porque nele convergem os fatores mais variados que constituem o homem. A trama de sua vida está constituída pelos mesmos fios de cada vida; sucessos e fracassos, solidão e vida em comunidade; esses eventos se inscrevem no eixo do tempo e do espaço. Isso significa dizer que a existência de São Paulo se cruza com a nossa vida no âmbito da tangente mais íntima e reveladora da consciência de nosso próprio “eu” (ego), aflorando à superfície de nós mesmos. De fato, as categorias supracitadas de “tempo” e “espaço” colocam-nos dentro de um mundo que não é pura fantasia ou imaginação de nossa peleja de autoafirmação diante das incongruências do existir. Ou seja: embora os traços psicológicos e espirituais sobrevivam além do que somos, quanto à temporalidade inexorável de circunstâncias passadas, eles são frutos do momento específico em que fazemos nossa história concreta ao lado de outros nossos iguais. E com São Paulo não poderia ter sido diferente.
Segundo Pietro Rossano, renomado escritor e exegeta italiano, para conhecer São Paulo, temos à disposição dois tipos de fontes. Primeiramente, temos as cartas, através das quais ele mesmo dá, a respeito de si, notícia fragmentada: sua origem, sua conversão, fadigas apostólicas, colaboradores e adversários, itinerários de sua missão. Segundo esse autor, pelo menos sete cartas são de sua autoria, isto é, escritas pessoalmente por ele: Primeira aos Tessalonicenses, Primeira e Segunda aos Coríntios, Carta aos Gálatas, aos Romanos, aos Filipenses, e a Filemon. De outras cartas, como a Segunda aos Tessalonicenses, aos Efésios, aos Colossenses, as duas a Timóteo e a carta a Tito, levantam dúvidas se elas foram escritas diretamente por São Paulo ou por um de seus próximos colaboradores. Ao lado das cartas, encontra-se como fonte de investigação o livro dos Atos dos Apóstolos, no qual Paulo sucede a Pedro do capítulo 13 em diante. Mesmo assim, convém lembrar que “a figura de Paulo esboçada em Atos só corresponde parcialmente ao conteúdo de suas cartas. Há acontecimentos mencionados por Paulo que faltam em Atos ou são apresentados de maneira diferente e, com frequência, o contrário também ocorre” (HEYER).
Fabris nos informa que a primeira notícia que temos de Saulo no horizonte do Cristianismo encontra-se em Atos 7,58, na qual ele é apresentado como perseguidor dos cristãos, no contexto do martírio de Estevão: “E arrastando-o para fora da cidade, começaram a apedrejá-lo. As testemunhas depuseram seus mantos aos pés de um jovem chamado Saulo”. Evidentemente, a figura do jovem Saulo ganhará projeção e importância dentro do Cristianismo depois de sua conversão, tornando-se, por conseguinte, o grande apóstolo missionário de Cristo. Segundo Fabris, a primeira “biografia” de Paulo está inserida nos Atos dos Apóstolos, um livro considerado sacro e canônico pelas Igrejas cristãs. Na tradição cristã, o livro é atribuído a Lucas, autor do terceiro evangelho. Neste livro escrito em grego, Lucas reconstrói a história das origens e da expansão do movimento cristão nos primeiros trinta anos. A segunda e a terceira partes dos Atos dos Apóstolos estão inteiramente ocupadas pela narração da atividade missionária de Paulo a partir de Jerusalém até a sua chegada na capital do Império, Roma. Brevemente, pode-se dizer que em vinte e oito capítulos, em que se subdivide atualmente o livro dos Atos dos Apóstolos, pelo menos dezesseis são dedicados a Paulo. Outras informações sobre os primeiros contatos de Paulo com o movimento cristão em Jerusalém, em Damasco e na cidade de Antioquia da Síria, encontram-se esparsas nos capítulos 8-9; 12 e 13-15 do livro de Lucas.
Saulo nasceu em Tarso no início da era cristã. É ele mesmo quem se apresenta em Jerusalém dizendo: “Eu sou judeu de Tarso, na Cilícia [Turquia meridional], cidadão de uma cidade insigne” (At 21,39), ou ainda: “Eu sou judeu. Nasci em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade, educado aos pés de Gamaliel, na observância exata da Lei de nossos pais, cheio de zelo por Deus, como vós todos no dia de hoje” (At 22,3). A data de seu nascimento se deduz aproximativamente do quanto escreveu o autor dos Atos dos Apóstolos, ao apresentar Saulo pela primeira vez no momento da morte de Estevão por volta do ano 30 d.C. Essa é a concepção de Fabris, de modo que, o apelativo grego neanías, ‘jovem’, nos escritores gregos e helenistas da época, está reservado a uma pessoa de idade que vai dos vinte e quatro até os quarenta anos. Assim, conclui Fabris, numa breve carta escrita ao seu amigo Filemon na metade dos anos 50 d.C., Paulo apresenta-se com presbýtes, “velho”, (Fm 9). E na visão de Hipocrates, um presbýtes pode ter dos cinquenta aos sessenta anos. Ou seja, se Paulo, nos anos 30 d.C. tem 25/30 anos – 55/60 por volta da metade dos anos cinquenta d.C. – pode-se fazer a hipótese de que tenha nascido na primeira década da era cristã, entre os anos 5 e 10. São Paulo era cidadão romano (At 22,25-29), de pais judeus e descendentes da tribo de Benjamin (Fl 3,5). Em muitas ocasiões, ele é constrangido a se apresentar, sobretudo, diante de autoridades. É um homem de saber bastante refinado e seu espírito penetrado por amplo universo cultural. Pelos menos três culturas se sobressaem na manifestação de seu patrimônio intelectual. Foi considerado um verdadeiro “cosmopolita”. Hebreu por nascimento e pela religião, exprime-se na língua e nas formas do helenismo – o mundo cultural grego – e é um cidadão romano que se enquadra lealmente na conjuntura política e administrativa do Império. Ele é “judeu da diáspora, integrado ao Império, cujos valores de ordem e de justiça ele admira” (COTHENET).
Enquanto mais a figura de São Paulo cresce no horizonte de nosso conhecimento, mais temos a certeza de que Deus tem caminhos misteriosos para chamar os seus escolhidos. Todavia, é preciso espírito de abandono, sensibilidade e abertura interior para intuir as moções do chamado do Senhor.









São Paulo: O último inimigo a ser vencido!


O último inimigo a ser vencido



Pensando no dia de Finados... Foi São Paulo quem disse que “o último inimigo a ser vencido será a morte porque todas as coisas foram sobpostas aos seus pés” (1Cor 15,26). Sua derrota chegará, oportunamente, quando todos forem passados ao fio de sua inevitável espada. Ou seja, que a morte será vencida e derrotada, definitivamente, quando todos formos, como diz São Paulo, “transformados”. Eis, pois, o conceito, fundamentalmente teológico, na realidade da consciência dos cristãos. A morte é um transformar-se, ou, mais categoricamente, é um ser transformado: “Num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final; sim, a trombeta tocará, e os mortos ressurgirão incorruptíveis e nós seremos transformados. Com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade. Quando, pois, este ser corruptível tiver revestido a incorruptibilidade e este ser mortal tiver revestido a imortalidade, então, cumprir-se-á a palavra da Escritura: A morte foi absorvida pela vitória” (1Cor 15,52-54). Porém, a plenitude deste mistério será conhecida, totalmente, no final dos tempos, pois, por ora, apenas Cristo e sua Mãe, Maria Santíssima, que Assunta ao céu em corpo e alma, pelos méritos do próprio Filho, participam desta realidade escatológica que diz respeito a todos os homens: “Como primícias Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo por ocasião da sua vinda” (1Cor 15,23).
Agora, discorramos a respeito do problema filosófico da “escolha” diante do como morrer. Podemos, concretamente, escolher “como morrer”? Não seria essa uma pretensão inatingível que escapa ao controle do como viver? Penso que não, ainda se “a morte e os seus sinais, como a doença e o sofrimento, mostram o limite intrínseco à liberdade de escolha do homem”, como nos lembra o número 35 do Instrumentum Laboris do Sínodo dos Bispos em preparação da sua décima primeira Assembleia Geral Ordinária, acontecida em outubro de 2005, na cidade de Roma. A Sagrada Escritura tem uma frase que diz: “Quem persevera no mal, no mal perecerá”. Dessa maneira, o como morrer seria uma consequência da escolha do como viver. Como, por exemplo, morrem os santos? Os santos morrem santamente porque santa foi a sua vida. Por outro lado, como morrem os que vivem mergulhados na irresistível espiral da maldade mortífera de que, às vezes, não por vontade própria, mas, por incapacidade de desvencilhar-se dela, tornaram-se prisioneiros? Não julgo necessária a resposta. Cada um poderá intuí-la, sem grandes dificuldades. Mas precisamos resgatar o rifão francês que diz: “A árvore cai para cujo lado se inclina”. E a inclinação da árvore da nossa vida depende, muito, ou quase exclusivamente, da direção demente ou lúcida, favorável ou desfavorável, que lhe damos. Num certo sentido, como pensamos a vida podemos pensar a morte, sobretudo, na qualidade de cristãos. Se a nossa vida cristã é inspirada em Cristo, também sê-lo-á a nossa morte, pois “quer vivamos, quer morramos, é para o Senhor que o fazemos” (Rm 14,8). Por isso é que o tema incômodo da morte não pode sair ou desaparecer do horizonte das expectativas da fé dos cristãos. Na consciência insofrida dessa realidade da nossa existência, não podemos nos comportar como se a morte fosse uma questão secundária ou mesmo banal. Há muitos anos, o Cardeal Ratzinger, hoje o Papa Bento XVI, numa entrevista, dizia o seguinte sobre o assunto: “A questão da morte é tão somente tocada de leve e, na maior parte das vezes, é apenas para se interrogar sobre como retardar a sua chegada, ou para lhe tornar menos penosas as condições. Desaparecido em tantos cristãos o sentido escatológico, a morte foi envolvida pelo silêncio, pelo medo ou pela tentativa de banalizá-la. Durante séculos, a Igreja ensinou-nos a rezar para que a morte não nos surpreenda repentinamente, dando-nos tempo de nos preparar; agora, é exatamente a morte repentina que é considerada uma graça. Mas não aceitar e não respeitar a morte significa não aceitar e não respeitar a vida”. Aqui, mais uma vez, parece que o discurso cai numa aparente contradição dialética. E, no entanto, não é verdade! Com efeito, o que significa “respeitar a vida”? Significa saber que ela não é dom pessoal, do qual podemos usar e abusar a nosso bel-prazer ou segundo os critérios de quem se julga dono de algo que não lhe pertence. Subsequentemente, se soubermos cuidar bem deste tesouro que nos foi depositado nas mãos, ou no corpo inteiro, por certo, estaremos respeitando a morte na serenidade da futura prestação de contas da vida, o que poderia acontecer hoje mesmo. Que faremos, então? Acolheremos e abraçaremos a nossa irmã, a morte, esperando Cristo como Salvador, “que transformará nosso corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso, pela força que lhe dá poder de submeter a si todas as coisas” (Fl 3,20). Lembro-me de um sacerdote que, no campo de concentração de extermínio do nazismo, confortava seus iguais dizendo que não tivessem medo, mas que aceitassem a morte que, de uma forma ou de outra, chegaria para todos. Depois, perguntava-se ele, e se não morrêssemos, o que faríamos da vida?!! Interessante como cada um encontra uma maneira diversa de enfrentar as situações limites na congruência serena da esperança que lhe bate à porta com dissabores emergenciais da sufocação do momento. Sim, acolhamos a morte! Porém, que seu acolhimento seja marcado pela esperança, teologicamente escatológica, de quem não morre, mas reveste-se de perene imortalidade, pois “embora em nós o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior se renova dia-a-dia. Pois nossas tribulações momentâneas são leves em relação ao peso eterno de glória que elas nos preparam até o excesso. Não olhamos para as coisas que se vêem, mas para as que não se vêem; pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno” (2Cor 4,16-18).
Que bom seria se conseguíssemos aprofundar, o mais ricamente possível, o sentido extraordinário desse mistério com o qual deveríamos ter o coração e a mente mais ocupados ou menos distraídos! Na verdade, depois de termos percorrido todos os caminhos da terra e contemplado todos os seus horizontes; depois da canseira pesada dos dias vividos, seremos precipitados na contemplação do horizonte de Deus, que nos criou e para o qual estamos sendo encaminhados. Destarte, os olhos se fecharão, oprimidos e pisados pelo pó da terra, e abrir-se-ão, livres, para o clarão intenso do resplendor incansável da visão do mistério.