domingo, 31 de julho de 2011

A profissão de fé num mundo descrente...

A Profissão de fé num mundo Descrente 



Uma das principais características da vida religiosa de Israel é a profissão de fé que declara à consciência do crente a existência de um ser superior, que conduz os caminhos da história coletiva e pessoal de todos os povos, independentemente do consentimento e da aceitação plena de sua inteligência. Não é o caso, aqui, de fazermos a retrospectiva histórica da vida do povo de Israel – embora devamos citar alguns personagens – mas, sobretudo, gostaria de pontuar algumas questões da fé que marcam o desafio dos crentes que vivem em um mundo totalmente avesso à religião e à própria atitude de fé.
A verdade é que, diante do subjetivismo cada vez mais influente e decisivo no comportamento das pessoas, enquanto cada um decide o tipo de fé que quer viver ou assumir na consciência de sua religiosidade, a fé em si mesma, dom de Deus depositado no coração do fiel, é muito exigente. De fato, o desafio da fé sempre constituiu motivo de galhofa e zombaria ao longo dos séculos. Quem não sabe o que aconteceu aos cristãos das primeiras horas do Cristianismo, de modo especial, durante os três primeiros séculos, de como muitos foram jogados às feras, simplesmente, por terem o nome de cristãos, isto é, por serem seguidores de Cristo? De lá para cá, o testemunho eloquente ainda provoca incômodo e rejeição. Por que será símbolos religiosos cristãos são agredidos e tratados com desprezo? Será que é porque vivemos a chamada “tolerância religiosa” e a coerência com a conhecida “laicidade do Estado”, que apregoa, erroneamente, a não religião? Mesmo assim, enfrentando fortes ventos e tempestades imprevisíveis, inclusive em meio aos irmãos e falsos irmãos, a fé exige do crente uma atitude permanente de conversão. Para o verdadeiro crente, não basta a atitude vazia de acender uma vela por alguém que se apagou da vida, que foi levado pela fatalidade da morte, sem levar em consideração as circunstâncias do envolvimento de seu desaparecimento. O mundo oco, vazio e maluco em que vivemos, dentro da dormência espiritual que paralisa o homem para a realidade mais profunda de sua transcendência, tem dado sinal de cansaço, senão, de desespero. Em que, realmente, tentamos nos segurar para não sermos engolidos pelo redemoinho do mundo moderno? O que é, de fato, importante e essencial no âmbito de todas as escolhas que devemos fazer todos os dias e a cada instante do fluir inexorável da existência, da nossa existência? Para que direção olhar? A quem podemos pedir socorro? De onde virá a nossa tábua de salvação? A fé pode não responder a todos esses questionamentos, mas, por certo, poderia indicar-nos a direção a seguir.
O fato é que, quando todo o universo parece conspirar contra toda a humanidade e seus benefícios de bem-estar e segurança – também envolvendo as questões ecológicas, espirituais, morais, éticas, econômicas, políticas, sociais, religiosas e existenciais de todo tipo – ainda podemos vislumbrar, além do aparente caos cosmológico, o apelo perseverante da fé que, reacende, dentro do espírito humano, as convicções da pureza de suas esperanças. O mundo tem dono. Ele pertence ao seu Criador, Deus. E, embora nem sempre saibamos reconhecê-Lo pelo seu próprio nome, Ele não deixa de ser quem sempre foi, longe, fora e distante de todas as nossas tentativas de apreensão de sua realidade mais intrínseca ao seu próprio ser e existir. Dizer não acreditar em Deus é uma maneira contraditória e, talvez, inconsciente, de professar a fé em sua pessoa. Com efeito, sempre acreditamos em alguém, mesmo quando imaginamos poder negar esse fato. Por isso que Deus não pode ser expulso do horizonte formativo da sociedade humana. Tanto é verdade que, por mais que nos esforcemos para conquistar a independência e a emancipação diante dele, mais cedo ou mais tarde, iremos chegar à zona da mais completa e absoluta dependência, porque já não poderemos mais nada, além do abandono radical. De fato, apesar de parecer irracional, a fé exige do homem lucidez e inteligência, para, desse modo, superar a burrice de imaginar-se senhor de si mesmo e de todos os seus fatídicos projetos de realização momentânea e fugaz como o é a sua própria vida.
Da literatura bíblica, incontáveis são os testemunhos de obediência e fé, não a um deus obscuro e inconsequente, falso, mas, ao único Deus verdadeiro. E não se trata de um deus que brota da escuridão interior da criatura, que não gera a si mesma. O Deus de Israel é o Deus criador, senhor de tudo e de todos, até a extensão máxima dos séculos inatingíveis pela pobreza limítrofe de nossa racionalidade. Nesse contexto, como afirma Marconcini, a confiança em Deus supera todos os limites e todas as objeções da razão humana, que renuncia a confiar em si mesma. Desse modo, consciente de sua própria incapacidade e da insuficiência de qualquer garantia humana, mesmo se milagrosa, duvida de si e se abre à intervenção divina. Na verdade, essa atitude de fé e de confiança total em Outro, no “Outro” que é Deus, contrapõe-se à situação de incredulidade que torna o homem fechado diante de Deus e, portanto, seguro de si e autossuficiente em suas realizações. Na concepção do autor supracitado, algumas atitudes devem traduzir-se na vida prático do crente como sinal de adesão ao projeto da revelação divina. Confiança, fidelidade, escuta e obediência, cada um desses termos amplia o arco das reações legitimamente humanas no horizonte da fé. Abel, Enoc, Noé, Jacó, Josué, entre outros, mas, sobretudo, Abraão, fazem parte da galeria de personagens bíblicos que, mesmo se em tempos totalmente diferentes dos nossos, ainda tem algo a dizer-nos do abandono, do temor, da obediência, do amor, da confiança, da esperança, da fidelidade, da espera paciente, enfim, de tudo aquilo que fundamenta a fé somente em Deus. Claro que viver a fé não significa descartar a possibilidade das trevas interiores, das dúvidas, das incertezas, dos aperreios espirituais, das torturas psicológicas, sobretudo, quando a timidez da nossa convicção desconfia de sua própria segurança.
Viver a fé significa justamente permanecer fiel e obediente, até quando tudo parece contradizer a esperança da mesma fé. Não apenas a história bíblica está repleta de testemunhos desse tipo, como na vida de Jó e no aparente silêncio divino em face das perseguições dos profetas, e seria oportuno aprofundar a vida desses “homens de Deus” em conjunturas de crises espirituais e de fé. Todavia, também na estampa da vida moderna, muitos cristãos sentem na pele o desafio de viver a sua crença numa sociedade que debocha de tudo que fale de religião, de Deus, de Cristo, de vida de santidade. O absurdo do moralismo é quando impomos aos outros aquilo que não somos capazes de viver ou, para não deixar a criatividade da hipocrisia sem resposta no discurso, quando impomos aos outros nosso modo errado de viver, como se, de fato, fôssemos donos da própria vida, do próprio nariz.
Numa prospectiva de fé, o subjetivismo não tem vez porque Deus não é criatura do homem. Pelo contrário, querendo ou não, o homem é criatura de Deus, e a fé somente é possível dentro dessa dimensão relacional de subordinação criador-criatura. Por isso que a incredulidade, para voltar ao pensamento de Marconcini, é a tentação contínua do homem destinatário da revelação, da mesma forma como a idolatria é a condição permanente do pagão. E como a sociedade moderna está permeada, invadida de paganismo!. Assim, ajunta o referido autor, diante das maravilhas sempre novas do amor de Deus subtraído a qualquer tipo de controle ou verificação, cada dia, o crente é colocado diante de um dilema: ou confiar-se unicamente em Deus ou cair na incredulidade que se torna a raiz de todo pecado. Como é lúcido o raciocínio desse autor. Realmente, para fugir a qualquer exigência de santidade e decência, de vida moral ou ética, é muito mais cômodo para a pobre e miserável criatura humana negar a Deus e, consequentemente, pensar-se isento da obrigação de qualquer moralidade. Com efeito, trata-se da mais terrível armadilha, prisioneiro da qual, o homem dificilmente conseguirá fazer o legítimo voo de sua liberdade interior, o voo da liberdade de seu espírito em direção à plenitude.
Viver e morrer sem Deus não deveria ser a conclusão lógica do único animal racional no meio dos bichos irracionais, que se deitam e se levantam, sem o vislumbre da consciência, exigindo a necessidade de olhar para o alto, para o ponto convergente de sua própria transcendência e superioridade.


Evangelium Pacis

Evangelium Pacis 



Ao lado da palavra “reconciliação” está o vocábulo “paz”, que assume características teológicas dentro do universo do projeto que Deus instaurou por meio de seu Filho para redimir o homem. Cristo é a nossa paz. O Novo Testamento está pleno de citações sobre a paz que somente Cristo pode oferecer ao mundo, a paz que o mundo não pode dar a ninguém. Nossa paz é uma pessoa: Jesus Cristo. Se a “boa nova” da “reconciliação” que Deus estabeleceu com o homem em Cristo, é um autêntico princípio de paz, da paz verdadeira, então, essa “boa nova” é também manifestada pelo “evangelho da paz”, pois “tal é a palavra que ele enviou aos Israelitas, dando-lhes a boa nova da paz [verbum misit filiis Israhel adnuntians pacem per Iesum Christum hic est omnium Dominus] por Jesus Cristo que é o Senhor de todos” (At 10,36). Cristo é o Evangelho da paz [evangelium pacis]
Segundo N. M. Loss, o tema bíblico da paz é tão rico quanto complexo, enquanto a terminologia que a exprime é pobre, mesmo se cobrindo uma área semântica muito vasta e diferenciada. Assim, o mesmo nome hebraico “shalom” assume nos textos uma vasta gama de nuanças e matizes, sobretudo, quanto aos aspectos religiosos correspondentes aos nomes da literatura clássica como na trilogia shalom, eirēnē e pax. Relacionado à “reconciliação”, interessa-nos, de modo especial, o significado do termo “paz” dentro do horizonte cristológico do Novo Testamento, mesmo sem desmerecer o rico processo linguístico que atravessa todo o Antigo Testamente, oferecendo atribuições importantes para entendermos a paz na esfera individual, política, social, escatológica ou messiânica, como sugere o referido autor.
Quanto à concepção de paz – eirēnē – no NT, ainda segundo o autor acima referido, poderíamos sintetizá-la afirmando que sua consideração mais comum e fundamental é aquela que conecta o termo com o dom global, definitivo e supremo feito por Deus ao homem por meio de Cristo. Consequentemente, tanto Deus quanto Cristo, de alguma maneira, são definidos com expressões do tipo: “o Deus da paz” (Rm 15,33; Hb 13,20) e o “Senhor da paz” (2Ts 3,14). De modo mais claro ainda, dir-se-á de Cristo, com alusão a Mq 5,4: “Ele é nossa paz!” (Ef 2,14); e no mesmo contexto, chamá-lo-á “aquele que opera [ou realiza] a paz”, asseverando que ele “anunciou paz” (Ef 2,15.17). Embora os textos citados sejam uma pequena coletânea, eles mostram com suficiência o caráter pleno da paz, segundo o perfil essencial traçado em todo o NT. Ou seja, que a paz não se coloca simplesmente ao nível político ou exterior, de maneira que o próprio Cristo assegura claramente que a “sua paz”, proposta por ele, não exime ninguém das tribulações encontradas no mundo. De fato, trata-se da paz que será encontrada somente nele: “Eu vos disse tais coisas para terdes paz em mim. No mundo tereis tribulações, mas tende coragem, eu venci o mundo!” (Jo 16,33). Com efeito, refere-se, exatamente, à paz que contem em si a perfeita certeza da salvação que não se pode ter “nesse mundo”, mas que atinge a própria segurança pela garantia apresentada por Deus.
Em face do dom de Cristo, oferecido a todos, a paz também assume uma dimensão relacionada à vida e contraposta à morte. Em Romanos 8,6, lemos: “De fato, o desejo da carne é a morte, ao passo que o desejo do espírito é a vida e a paz [nam prudentia carnis mors prudentia autem Spiritus vita et pax], uma vez que o desejo da carne é inimigo de Deus: pois ele não se submete à lei de Deus, e nem o pode, pois os que estão na carne não podem agradar a Deus”. Portanto, por meio dessa paz, reflui no homem cristão a verdadeira vida que brota do Espírito de Deus. Destarte, seguindo a mesma linha de raciocínio, há de ler-se a menção sobre o “Deus da paz”, repetida na conclusão de várias cartas do NT, como, por exemplo, em Romanos 16,20, cuja leitura é muito sugestiva e oportuna: “Pois o Deus da paz não tardará em esmagar Satanás debaixo de vossos pés. Que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja convosco!”. Essa é a paz que compreende “todo bem” (Hb 13,20-21) e “todos os bens” (1Ts 5,23). Com certeza, a paz que Deus oferece-nos em Cristo ultrapassa todos os anseios de nossos desejos de quietude verdadeira, de plenitude verdadeira, porque, mesmo se materialmente abastecidos na ganância da insaciabilidade do coração, nada poderá substituir a paz de Deus. Olhando o mundo caótico da vida moderna, na voracidade inquietante da violência patrocinada pelos projetos nefastos da destruição da dignidade humana, a paz não será possível, sem Deus. Enquanto o terreno impermeável do nosso coração viver em conflito interior, em guerra, cada vez mais distante e afastado de Deus, não experimentaremos a paz que buscamos. Na sociedade, não basta a aparente “tranquilitas ordinis” – a “tranquilidade da ordem” – para vivermos a paz. Na verdade, sob o terreno social da enganadora “tranquilitas ordinis”, a ditadura da guerra pode solapar, escondidamente, o tecido da fraternidade. Por isso que a paz de Deus estende-se sobre o sonho da reconciliação entre todos.
Voltando ao pensamento do nosso autor, Loss, a paz com Deus deve favorecer a paz com os irmãos. Assim, ele considera que, com a estrutura e a dinâmica da paz, como vemos no NT, está estreitamente ligado outro elemento essencial, que, de um ponto de vista formal e literário, vem ligado a outros termos: é o fato de que o bem da paz apresenta-se ampliando por Deus, pela obra de Cristo, destruindo, sobretudo, o obstáculo do pecado e tudo quando a ele se liga. Nesse contexto, o autor apresenta uma breve reflexão sobre a “justificação”, a “reconciliação” e a “obra da paz”. Vejamo-la brevemente.
Em primeiro lugar, referindo-se à justificação, o autor começa acenando para o fato de que, pelo pecado, os homens se tornaram “desobedientes” a Deus e “rebeldes” contra ele (Rm 11,30; Ef 2,2; Cl 3,6), e, por conseguinte, acabaram transformando-se em objetos de sua “ira” (Rm 1,18ss) e, também, inimigos de Deus (Rm 5,10; Cl 11,21). Portanto, essa é a sua condição geral, tanto para pagãos quanto para judeus (Rm 1,18-32; 2,1-3,20). Desse modo, não há outra caminho de saída para a humanidade senão por meio da comunicação da “nova vida” – a “nova justiça” – operada por Deus em Cristo, e à qual somente se pode ter acesso por meio da fé (Rm 3,21-26). Logo, a “justificação” coloca o homem em estado de “paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem tivemos acesso, pela fé, a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos na esperança da glória de Deus”. Na dinâmica da graça divina recebida por Cristo, sua condição não é estática, mas progressiva no sentido da doação de vida, da fé à esperança, à caridade, cuja fonte é o Espírito Santo derramando nos corações (Rm 5,5). Em segundo lugar, aludindo à reconciliação, a obra deletéria do pecado não altera apenas a relação com Deus, mas, investe de igual maneira sobre as relações recíprocas entre os homens (Rm 1,26-32), a tal ponto que até o quanto Deus realizou para iniciar o processo de salvação em Israel, isto é, a sua lei, pela força corruptora do pecado, não apenas se torna causa de morte para quem vive sob a lei (Rm 7,13), mas também para quem está fora pela lei enquanto barreira divisória relacionada a Israel e causa de “inimizade” (Ef 2,14-18). O efeito da obra de Cristo cancela também a barreira da lei, tendo como objeto a “reconciliação” dos homens com Deus e entre eles mesmos, o que significa a “paz”: paz com Deus por meio da “justificação” (Rm 5,1), e paz global com Deus e com os homens na universal “reconciliação” (Rm 5,10; 2Cor 5,18; Ef 2,16; Cl 1,20-22). Enfim, no terceiro ponto da reflexão, o autor destaca a “obra da paz”, cuja realização assume uma conduta interna, interior, na vida e no comportamento pessoal do cristão, conforme a vontade de querer viver em paz com os outros. Todavia, essa atitude não é suficiente, pois, o cristão também deve “promover a paz”, com base na orientação de São Tiago (3,18). Esse aspecto já foi realizado substancialmente pela obra da reconciliação universal de Cristo (Cl 1,19-20; Ef 2,14). Para concluir, o autor lembra a bem-aventurança de São Mateus que enfatiza os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9). Nesse versículo, é antecipado, de alguma maneira, o conteúdo da exortação ao amor total e à total perfeição nele, inclusive, evidenciando o amor aos inimigos.
Enfim, construtores e operadores da paz, que começa na realização plena da reconciliação de Deus com todos em Cristo, também nós devemos dar nossa parcela de colaboração, a fim de que, realmente, o mundo seja mais pacífico e digno dos verdadeiros filhos de Deus. E o primeiro esforço na direção da pacificidade entre nós deve ser feito dentro de nossa própria casa.

Verbum Reconciliationis

Verbum Reconciliationis



Às vezes, algumas mentes preguiçosas acusam-me de escrever difícil. É verdade que, dependendo do assunto, e eu geralmente escrevo sobre teologia, nem sempre o conteúdo se demonstra de fácil compreensão. Quanto a isso, eu dou a mão à palmatória. No entanto, eu não poderia deixar de escrever no estilo e na atmosfera literária que, paulatinamente, fui elaborando com base em minhas leituras. De modo consequente, tento transmitir ao leitor aquilo que está ao nível de como consigo e permito-me expressar. Sendo a leitura um veículo de comunicação favorável ao conhecimento, não podemos dispensar-nos aos condicionamentos que emolduram o peculiar modo de percepção das verdades transmitidas no bojo da dialética. Não obstante a consideração apenas feita, brinco dizendo que para testar a capacidade de elucidação de meus textos, apresento-os a uma senhora da roça no interior de Carira, a fim de ver se, numa leitura imediata, e, portanto, sem muito tempo de reflexão, ela consegue dizer-me com suas próprias palavras, pelo menos, o núcleo expositivo do que acabara de ler. E ela, na simplicidade de sua colocação, sempre tem uma palavra compreensível e significativa quanto ao conteúdo do texto. Conclusão: seguirei o caminho na concepção enfática pela qual estabeleço com meus queridos leitores o singelo esforço de comunicação. Então, coragem!. Vamos lá, mais uma vez! Que a luminosidade do pensamento paulino ajude-nos a transpor os umbrais e as sombras das letras de sua teologia, projetando-nos na convicção de sua doutrina cristológica.
No coração da pregação de São Paulo, fruto de sua própria experiência pessoal com Cristo pela inundação espiritual de graças recebidas, está o fato de que Deus reconciliou o mundo consigo pela entrega generosa de seu divino Filho: “Tudo isso vem de Deus que nos reconciliou por Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação. Pois era Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo, não imputando aos homens suas faltas e pondo em nós a palavra da reconciliação [verbum reconciliationis]. Sendo assim, em nome de Cristo exercemos a função de embaixadores e por nosso intermédio é Deus mesmo que vos exorta. Em nome de Cristo, suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus. Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos justiça de Deus” (2Cor 5,18-19).
Falar de “reconciliação”, sobretudo, quando o nosso coração está cheio de ressentimentos, não é tarefa fácil. Mas, temos de fazer o esforço, de modo especial, pensando no peso da atitude concreta que desfaz os laços da perversidade dos sentimentos mesquinhos que carregamos em nossas ações. Essa seria a primeira e legítima dimensão do que poderíamos entender por “reconciliação”. Porém, não se trata apenas do “ato ou efeito de reconciliar-se” como quando alguém “reata uma amizade”. Mais do que isso – embora haja uma coincidência de vocabulário – o significado teológico e cristocêntrico a que São Paulo se refere sobre o tema da “reconciliação”, vai além do aparentemente perceptível. Infelizmente, a pobreza de nossa terminologia nem sempre abre as janelas do conhecimento para o valor extenso do alcance do seu conteúdo, pois dentro do horizonte paulino no que concerne ao tema da “reconciliação”, está presente todo o mistério da salvação encerrado na Encarnação de Cristo. Somente ele pode reconciliar-nos com Deus, o seu Pai, o Pai de todos nós. Através dessa reconciliação, graça e paz são-nos concedidas abundantemente. A passos largos, Deus mesmo prepara a humanidade para receber o toque definitivo de seu amor reconciliador. Cristo é a manifestação plena desse amor, aos olhos humanos, desconcertante. Assim, “Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores” (Rm 5,8). Com efeito, se o afastamento de Deus pelo pecado da desobediência quebrou a imagem do homem na sua essência divina e espiritual, Cristo veio justamente para refazer as rachaduras dessa imagem, ligando-as pela perfeição de sua humanidade. Sendo “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”, ele resgata a integridade originária pelo dom de sua graça divina estendida sobre a natureza humana.
No Antigo Testamento, a noção de reconciliação passa pela interpretação não tanto vaga do sentido de “resgate” (do hebraico: kōper), que nos leva a “entender melhor o significado de kāpar. Significa ‘expiar mediante o oferecimento de um substituto’. A grande maioria dos usos diz respeito ao ritual realizado pelos sacerdotes de aspergir o sangue sacrifical, assim ‘fazendo expiação’ pelo adorador. Existem 49 casos de tal uso apenas em Levítico, e nesse livro não há confirmação do uso da palavra com qualquer outro sentido. O verbo é sempre empregado com relação à remoção do pecado ou da contaminação [...]. Parece claro que esse vocábulo ilustra com grande propriedade a teologia da reconciliação do Antigo Testamento. Requeria-se a vida do animal sacrificado, simbolizada especificamente pelo seu sangue, em troca da vida do adorador. O sacrifício de animais na teologia do AT não era mera expressão de gratidão à divindade por parte de um povo criador de gado. Era a expressão simbólica da vida inocente dada em lugar da vida culpada”. Embora numa dimensão bem antiga e remota, o AT intuía a plenitude do resgate que Deus preparava para o povo da nova e eterna aliança, porquanto a situação de Cristo oferecido como vítima inocente no lugar de todos os homens pecadores, deixa claro o que o sentido do sacrifício vicário anunciava, isto é, como ele assumiria em sua pessoa, qual cordeiro imaculado e sem mancha alguma, a culpa de outros. O justo pelos injustos, o inocente pelos culpados. No entanto, não podemos cair naquela de que, se Cristo já nos reconciliou com Deus pelo sacrifício de sua cruz, não precisamos fazer mais nada para levar a termo, em cada um de nós, a riqueza de sua graça definitiva.
Não por acaso, diante do laxismo moral das consciências presunçosas, São Paulo insiste na declaração parenética, exortativa, de seu discurso: “Reconciliai-vos com Deus” (2Cor 5,20). Portanto, “contra os seguidores entusiásticos que acreditavam que seu batismo trazia a salvação toda aqui e agora e contra os mestres intrusos que consideravam a moralidade irrelevante depois do espírito ter sido salvo, Paulo contestou o ‘dispositivo escatológico’, o ‘ainda não’ da reconciliação que, ao contrário da justificação, ainda continua e precisa ser renovado permanentemente. Daí o chamado aos cristãos de Corinto: ‘Deixai-vos reconciliar com Deus’ (2Cor 5,20), para não deixarem sem efeito a graça recebida de Deus (2Cor 6,1) e não deixarem de perceber o perdão que ele oferecia (2Cor 5,5-11; 6,11-13) [...]. Deus realizou uma reconciliação definitiva do mundo, mas os homens e as mulheres precisam aprender a viver com sensibilidade e vigilância a moral até o fim”. Ou seja, que não estamos dispensados de colaborar com a graça, como diria Santo Agostinho: “Quem te criou sem ti, não te salva sem ti”. De fato, é preciso o assentimento de nossa inteligência e vontade ao querer divino da salvação.
Essa dimensão da teologia da “reconciliação” podemos inferir também do próprio vocabulário grego “katallagē”, que, no NT, ocorre somente quatro vezes em São Paulo (Rm 5,11; 11,15; 2Cor 5,18.19). Segundo Fr. Büchsel, trata-se do novo relacionamento que Deus instaurou com o homem através de seu divino Filho, Jesus Cristo. Assim, a pregação e a atividade apostólica são entendidas como uma “mensagem”, apresentada pelo “mistério [ministério, diaconia, serviço, conforme o original grego] da reconciliação” (2Cor 5,18.19). Na verdade, o apóstolo traz aos homens o anúncio de que Deus quer reconduzi-los a si; aqueles que acolhem o convite e se abrem à vontade divina, recebem, de fato, a reconciliação (Rm 5,11). No fundo, a teologia de São Paulo vem dizer-nos que não somos salvadores de nós mesmos. Deus enviou o seu Filho para ser o nosso salvador bendito, e fora dele não há salvação possível. Em outras palavras, ninguém tem autoridade sobre si mesmo para decidir como quer ser salvo. O caminho é um só, e passa por uma única e exclusiva pessoa: Jesus Cristo. E não adianta tentar buscar nem encontrar subterfúgios racionais na lógica humana para camuflar a objetividade desse anúncio, cuja verdade não está condicionada ao livre arbítrio de nossa decisão. Ou passamos por ele, isto é, por Cristo, “Caminho, Verdade e Vida (Jo 14,6) ou não encontraremos, jamais, a salvação verdadeira.



terça-feira, 26 de julho de 2011

No dia dos namorados...

Deus Enamorado, Cristo Apaixonado 



No dia dos namorados, gostaria de trazer a lume uma reflexão sobre o relacionamento de Deus enamorado de sua obra-prima, o homem, de modo especial no que concerne seu amor pelo povo de Israel, e consequentemente, pela humanidade inteira. Em qualquer relacionamento humano propriamente dito, há muitas atitudes que revelam desconfiança, desamor, desafeto, decepção, frustração e, assim, por diante. Todavia, nem sempre os recursos da psicologia humana favorecem o amadurecimento da pessoa em circunstâncias tão desastrosas no confronto com o outro.
Por sua vez, a história de Israel demonstra, de maneira muito clara, que Deus, sempre enamorado de seu povo, nunca se cansou de amar por conta das conjunturas de infidelidade do povo. Nunca, comportamentos desse tipo contrariaram a essência do amor divino, porque ele é gratuito, generoso e desinteresseiro. Em Deus, o amor mostra-se invencível e impossibilitado de ser quebrado, rompido, partido, enfim, traído. Ou seja, Deus ama de modo diferente dos homens. No entanto, mesmo sem se adequar às deficiências do amor humano, sem se permitir contaminar pelas suas fraquezas e desencantos, a perseverança do amor divino poderia indicar caminhos de superação recíproca no desgaste do quotidiano. O fato é que somente pode amar verdadeiramente quem é capaz de respeitar a individualidade do outro, mormente, no que concerne o ser da pessoa na sua inteireza, na sua incomunicabilidade, na singularidade livre com que os trejeitos individuais solicitam ou reivindicam sua própria autonomia. Nesse contexto da singularidade da pessoa, nem exploração nem abuso do outro, mas cumplicidade relacional; nem mentira nem desconfiança, mas simplicidade confidencial; nem cara feia nem mau-humor, mas simpatia e boa vontade; nem traição nem falsidade, mas confiança e verdade. Para irmos mais além, se Deus não nos amasse como nós somos, não seríamos merecedores de seu amor. Contudo, nem por isso a generosidade de seu amor dispensa a superação dos defeitos do amado, e, justamente, por isso, o perdão coincide com o desejo de ultrapassar as barreiras que ferem a autêntica reciprocidade.
Por que será que nos relacionamentos humanos há tão pouca gratuidade e, menos ainda, espírito de sacrifício? Até onde, realmente, as intenções para com a pessoa amada são puras e sinceras? Mais ainda: como vencer os incômodos imprevisíveis do fastio amoroso que deteriora o compromisso sadio com a cara-metade? Que valor tem a perenidade do amor circunstancial do “ficar” ou do tempo do “namorito”, para usar a gíria moderna, isto é, de um namorado, cuja presença assemelha-se ao de um marido? Como escrevi há algum tempo, a “amizade não se negocia. Não como no dia dos namorados, em que muitos vão às lojas comprar presentes de declaração de amor, fidelidade, compromisso com a pessoa amada. Tudo fruto da comercialização que se pode fazer com a troca de presentes, entre trejeitos de manifestação amorosa e desconfiança embaraçosa da suspeita de infidelidade. Até onde se pode perceber a sinceridade de amores passageiros e ameaçados pela força do hábito, que gasta as boas intenções do verdadeiro querer bem? Como traduzir, na brevidade de segundos efêmeros, o significado profundo de um olhar entre dois amores? Pode a densidade deste amor se concentrar na comemoração de um dia? Hoje, festa, emoção e entrega, e amanhã, quem sabe? Na insegurança de um relacionamento estável, e que ‘seja eterno enquanto dure’, pode-se tudo apostar na perenidade inconsistente de fantasias modernas? No terreno movediço de relacionamentos de amizades, de namoros e de amigos, o que conta, realmente, na superação de suas imperfeições e limites?” E o raciocínio desdobrava-se assim: “Se o olhar trai o gesto, e o gesto não expressa o sentido do olhar, cria-se um clima de suspeita que dilui o sentimento do outro no rio da ilusão. Mas, namoro também é feito de ilusão, de incerteza, de desafio em acreditar na verdade do outro. Verdade que me desfaz de mim mesmo para ser um no outro. Ou seja, trata-se da cumplicidade inerente à peleja amorosa que impõe riscos, vontade de equilíbrio, apoio seguro no árbitro do destino. [No entanto], existe um amor sublime, superior a todos os outros amores. Esse é um amor que faz resplandecer, no vitral das vicissitudes volúveis do passadouro do tempo, a finitude de amores rasteiros de duração limitada”. Com certeza, o “amor sublime” acima referido é o próprio amor de Deus, reflexo perfeito das incongruências de todas as frustradas experiências humanas.
Quem ama não mata, mas se permite morrer para defender a vida do amado. Evidentemente, nenhum outro testemunho é mais eloquente do que o de Cristo, que dá a vida pelos seus amigos. Por isso que Cristo é apaixonado pela sua Igreja. Em Cristo, a “paixão” não se trata de uma disposição afetiva vazia e condicionada pelos agrados momentâneos de namoricos falsos nem de galanteios superficiais e feitos por divertimento. Dizem que a “paixão” – talvez, vista como uma doença – é passageira, e voa com os ventos desiludidos e desencantados das frustrações com o amado, depois de fazer sofrer, e sofrer muito. Quantos de meus leitores não teriam uma experiência para contar nesse sentido? Mas, dizem também que o “amor” é duradouro, isto é, mais permanente que a “paixão”. Claro que são concepções rasteiramente humanas, e, portanto, não coincidem com os sentimentos do coração de Cristo. São Paulo apresenta-nos uma palavra esclarecedora e rica quanto à incondicionalidade do amor de Cristo por sua Igreja, através da entrega total, radical, sem o mínimo possível de reservas pessoais e egoístas como acontece na manifestação inconstante e, às vezes, até leviana, de nossos amores. Eis o pensamento de São Paulo: “E vós, maridos, amai vossas mulheres, como Cristo amou a sua Igreja e se entregou por ela, a fim de purificá-la com o banho da água e santificá-la pela Palavra, para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa, sem mancha nem ruga, ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível. [...] Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo, pois ninguém jamais quer mal à sua própria carne, antes alimenta-a e dela cuida, como também faz Cristo com a Igreja, porque somos membros do seu corpo. [...] É grande este mistério: refiro-me á relação entre Cristo e sua Igreja” (Ef 5,25-32). Que belo paralelismo, entender a história do amor de Deus pela humanidade e de Cristo pela Igreja, constituída de todo o povo de Deus, à luz do amor esponsal! O discurso merece aprofundamento, mas, vamos limitar-nos, aqui, apenas, ao essencial à nossa imediata compreensão.
Segundo o Antigo Testamento, foi somente por meio da literatura profética de Oséias que, com base em sua vida pessoal, seu casamento se transformou em valor simbólico da relação de Deus com Israel. Assim afirma uma nota da Bíblia de Jerusalém sobre o assunto: “Oséias, contudo, é o primeiro a representar sob a imagem da união conjugal as relações de Iahweh com o seu povo desde a aliança do Sinai, e a qualificar a traição idolátrica de Israel, não apenas de prostituição, mas de adultério. Depois dele o tema será retomado pelos profetas (Is 1,12; Jr 2,2: 3,1; 3,6-12). Ezequiel desenvolveu o tema em duas grandes alegorias (caps. 16 e 23). O Dêutero-Isaías apresentará a restauração de Israel com uma reconciliação com uma esposa infiel (Is 50,1; 54,6-7, cf. Is 62,4-5). É necessário, também, ver as relações de Iahweh e de Israel expressas com imagens nupciais do Cântico dos cânticos e do Sl 45. Finalmente, no NT, Jesus representando a era messiânica como núpcias (Mt 22,1-14; 25,1-13), e sobretudo revelando-se como o esposo (Mt 9,15, cf. Jo 3,29), mostra que a aliança nupcial entre Iahweh e o seu povo realiza-se plenamente em sua pessoa. São Paulo utilizará igualmente esse tema (2Cor 11,2; Ef 5,25-33; cf. 1Cor 6,15-17), que será finalmente retomado pelo Apocalipse 21,3. – Os caps. 1-3 formam, no livro de Oseías, uma unidade claramente definida”.
Aprofundando os textos bíblicos sobreditos, será que não teríamos nada a aprender, a fim de melhorar nossos relacionamentos, não apenas com a pessoa amada, mas, também, e com maior intensidade e verdade, com todas as pessoas ao nosso derredor? Deixo, pois, a indicação.


Do jeito de que o diabo gosta!!!

Texto publicado em janeiro de 2011 no Jornal Correio, de Aracaju, circulou por vários sites na internet...

Do jeito de que o Diabo gosta 



O diabo tem se tornado tão profundamente íntimo das pessoas, que quase ninguém se importa mais com ele. Ele veio chegando de mansinho, instalou sua morada no nosso meio, e a gente vai fingindo que ele é nosso amigo. Sim, quando escancaramos as portas da nossa vida para ele, é porque, embora, inconscientemente ou não, queremos que ele fique conosco aprontando as suas perversas maquinações. De fato, tinha razão o poeta francês, Charles-Pierre Baudelaire, “considerado um dos precursores do Simbolismo”, quando afirmou que “a maior alegria que se pode dar ao diabo é duvidar da sua existência”. E nós vivemos, assim, como se do diabo não existisse mesmo, pois é o que estamos vendo, todos os dias, na confusão silenciosa e, às vezes, irreversíveis de suas investidas, trazendo ao relento espiritual de suas provocações não poucas situações indigitadas pelo dedo destruidor de sua própria natureza. Ele destrói todo tipo de harmonia que possa haver entre Deus e os homens e, também, aquela que existe nos relacionamentos humanos.
No horizonte na teologia bíblica, a figura do diabo assoma logo nas primeiras páginas da Sagrada Escritura. Infelizmente, sua presença varre todas as folhas históricas da frágil realidade humana. A multiplicidade de seu nome indica a pluralidade de suas artimanhas para nos desviar do caminho de Deus. Eis algumas declinações de sua multifacetada personalidade: diabo, demônio, Satanás, espírito, Belzebu, entre outros cognomes dados pela tradição popular, tais como “rabudo”, “espelho sem luz”, “Anjo-caído”, “Anjo-do-mau”, “Anticristo”, “Aquele que Desvia”, “Asmodeus”, “Besta”, “Bicho-ruim”, “Boi-chumão”, “Cabruno”, “Canhoto”, “Capa-verde”, “Capiroto”, “Cão Miúdo”, “Chifrudo”, “Cinzento”, “Coisa-ruim”, “Cramunhão”, “Dragão”, “Exu”, “Ferrabrás”, “Homem-elefante”, “Lúcifer”, “Pai da mentira”, “Sete-peles” “Tinhoso” e “Tranca Ruas”. Nomes são o que não falta!. Tão presentes em nossa criatividade “onomástica”, eles traduzem a gravidade operante das obras do demônio.
Segundo o relato bíblico, na origem da criação, o demônio apresenta-se como aquele que tenta – e consegue – contrariar a harmonia de tudo o que Deus criou dentro do círculo de sua intenção primária, ou seja, da vontade de que tudo pudesse concorrer para o bem estar supremo de todos, inclusive, dos limites intrínsecos às leis da natureza. Mas, a tentação inicial levou o homem a rebelar-se contra Deus, imaginando-o seu concorrente, de modo tal, que ele começou a competir com Deus. Desde lá até o final dos séculos e do mundo, acontecerá essa luta interminável em que o “tentador” por excelência, com todos os atributos que já lhe foram consignados, seguirá, perfidamente, sua trama infernal no intento de submeter todos a si. Na verdade, ao transpor dos séculos, ele tem mostrado suas unhas. Sim, ele está presente em todos os lugares dos quais Deus foi expulso de modo cínico e impiedoso.
Quando perguntaram ao Cardeal de Paris, Jean-Marie Cardeal Lustiger, falecido no dia 5 de agosto de 2007, se ele já tinha visto o demônio, sua resposta deixou o repórter completamente desorientado e perplexo: “Sim, já o vi!”. E o encarregado da reportagem prosseguiu, contundentemente: “Onde?”. E o Cardeal, judeu, depois de presenciar o massacre desumano e implacável de mais de seis milhões dos de sua raça, começou a citar os campos de concentração e de extermínio do nazismo – esse fantasma assombroso, que vez, por outra, ainda tenta renascer das cinzas dementes de alguns microcéfalos inimigos da dita civilização humana. Com efeito, todas as vezes em que o homem tentou emancipar-se de Deus, colocando-o fora da circuito vital de sua dignidade, barbáries desse tipo encheram e enchem de sangue assassino a sociedade que luta para ver seus direitos respeitados e levados a sério nas conjunturas mais vulneráveis de sua sustentabilidade.
Manifestando-se em forma de serpente, “que era o mais astuto de todos os animais do campo” (Gn 3,1), na modernidade, sem deixar de ser o mesmo, ele se apresenta sob muitas outras roupagens tenuemente sutis. E a gente vai atrás dele, conduzidos pelos apelos fascinantes de sua discrição, pois com certeza, ele não faz alarde. De esperteza o diabo entende, e entende muito bem. Tanto, que até nos instiga a viver esquecidos dele. Aliás, nos lugares onde ele sabe que tudo já lhe pertence, ele tem pouco trabalho. Assim, muitas festas mundanas e pagãs são patrocinadas por satanás e as pessoas não se dão conta disso. Portanto, não quero dizer que uma festa como o pré-caju seja totalmente patrocinada por ele, mas as pessoas sensatas deveriam questionar mais o que se esconde por trás de carnavais que arrastam multidões ao descalabro da imoralidade, em atitudes nada producentes quanto à decência e à dignidade das pessoas. É verdade que o Estado tenta proteger os foliões de consequências mais dramáticas, favorece empregos circunstanciais, e até manda distribuir preservativos – quem sabe? – mas, no final, permanecerá, sempre, o gosto amargo das frustrações que continuarão pela vida afora, tornando-a vazia e sem sentido.
Enquanto isso, nossa Igreja tem de ser fechada por conta do barulho insuportável dos trios elétricos ritmados por de todos os sabores musicais. Há alguns meses, eu julguei por bem fechar a Igreja para um casamento que seria assistido pelo Pe. Fábio de Melo. Não demorou muito tempo, para eu receber insultos pessoalmente e por telefone, inclusive, de pessoas da comunidade paroquial. Foi um “Deus, nos acuda!”. O fato é que muita gente se preocupa, cinicamente, com certas “atitudes” da Igreja, e tentam tirar proveito dela na efervescência raivosa de seu sensacionalismo, mas nunca estão verdadeiramente interessadas em entender, nem de longe, as reais causas de suas atitudes. Olham somente o lado interesseiro de suas pretensões mesquinhas, contanto que dêem vazão às inconsequentes e bisbilhoteiras incoerências acintosas de suas ambições. Na verdade, quantas vezes, somos obrigadamente constrangidos a fechar nossas igrejas por causa da balbúrdia leteia nas proximidades do recinto sagrado? Nos interiores, as prefeituras são autorizadas a armar palanques em frente da igreja com dias seguidos de programação barulhenta, sem que o padre tenha o direito de rezar uma missa na tranquilidade esperada para o ato litúrgico! Sobre isso ninguém se pergunta, ninguém critica. Pior ainda, tudo é legalmente permitido.
Se o Brasil é um país sem dono, onde tudo pode acontecer, especialmente, para os que já são detentores da maioria de sua riqueza pecuniária e material, com direito a deboche e tudo das autoridades propriamente constituídas – como fez o ex-presidente, quando os parlamentares aumentaram seus salários – imagina se, realmente, não está tudo do jeito de que o diabo gosta. Inescrupulosamente, o Brasil é – ou não é? – o país das maravilhas.


domingo, 24 de julho de 2011

O Véu de Verônica...


O Véu de Verônica



A sexta estação da Via-sacra nos diz que “Verônica enxuga o rosto de Jesus”. Reza a tradição cristã que, ao simples gesto de compaixão de Verônica, o rosto desfigurado de Cristo ficou estampado sobre o véu que lhe acariciava o semblante sofrido e castigado pelos opróbrios extremos de seu angustiante suplício. Mas que “véu” é esse? Que significado teológico ele poderia ter para o exercício penitencial de nossa conversão? Na verdade, o termo “Verônica” se tornou um nome próprio, cujo significado etimológico é “verdadeiro ícone”. E o “ícone”, como sabemos, tem sua origem numa palavra grega [eikón] que significa “imagem”. Segundo Jacques Maritain, o nome de Verônica poderia ser Berenice, uma piedosa mulher da família de Herodes, que, com outras mulheres, acompanhava Jesus no caminho do Calvário.
O profeta Isaías, numa palavra luminosa e carregada de profundo mistério sobre a vida do “Servo Sofredor”, diz o seguinte: “Era desprezado e abandonado pelos homens, homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento, como pessoas de quem todos escondem o rosto; desprezado, não fazíamos caso nenhum ele. E, no entanto, eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si, nossas dores que ele carregava” (Is 53,3-4). Os sofrimentos de Jesus têm a ver com os pecados de nossa humanidade ferida pelos insultos da desobediência à vontade do Pai. Criados para a felicidade e a intimidade com o projeto de harmonia original estabelecido pelo Criador no paraíso, preferimos nos afastar dele e andar errantes, seguindo nosso próprio caminho, desgarrados como ovelhas sem Pastor. Mas, Jesus aceitou sobre si o preço de nossa reconciliação com Deus. Assim, a imagem de Cristo desfigurado, que aparece no véu de Verônica, é o retrato vivo de nossa maldade, de nossas iniquidades, de nossa desobediência, de nossas traições. Como se expressou Dom Luciano Duarte: “Nós somos o véu de Verônica”. Mas, atravessando a imagem desfigurada desse véu, diante do qual todos nos encontramos, atingimos a plenitude da reconciliação que Deus nos mereceu por meio de Jesus, seu Divino Filho.
Sob a ótica de um tempo novo instaurado por Cristo no altar da cruz, “passaram-se as coisas antigas; eis que se fez realidade nova. Tudo isto vem de Deus que nos reconciliou consigo por Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação. Pois era Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo, não imputando aos homens suas faltas e pondo em nós a palavra da reconciliação” (2Cor 5,17-19). Nele, o véu de Verônica se transfigura, transfigurando-nos também no mistério de sua redenção. Porém, essa sublime novidade apresentada por Cristo quer ser para todos nós um apelo fremente de conversão. Somente reconhecendo os nossos pecados, e buscando atualizar a reconciliação com ele, por meio dos Sacramentos da Igreja, é que podemos mitigar e suavizar os sofrimentos que desfiguram, a cada falta nossa, o semblante místico do nosso Salvador. Nessa direção, devemos encaminhar nosso empenho de conversão e mudança de mentalidade e de vida durante o tempo santo da Quaresma.
Vivendo, pois, o esforço concreto de conversão na ascensão espiritual para Deus, perguntemo-nos que lugar nós ocupamos na Via-crúcis de Cristo Jesus. Nela, há lugar para todos. Tem lugar para as mulheres piedosas; para os Cirineus; para as Verônicas; para o bom e o mau ladrão; para Maria, a Mãe de Jesus; para cada um dos Apóstolos, na singularidade de sua resposta ao convite do Mestre e, também, para Judas Iscariotes. Sim, muitas vezes, somos mais traidores do que amigos de Cristo. Todavia, como dissera o Papa Bento XVI, a respeito dos que se enfileiram por entre os inimigos de Cristo e da Igreja, “embora não faltem na Igreja cristãos indignos e traidores, cabe a cada um de nós contrabalançar o mal por eles praticado com o nosso testemunho cristalino a Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador”. E para vivermos tal testemunho, mesmo sabendo que Deus respeita a nossa liberdade humana, devemos, com humildade, reconhecer que nossa generosidade também é fruto de sua graça e de sua misericórdia. Nada deve ser tido como mérito nosso. Pelo contrário, foi Jesus quem nos alcançou quando “Deus o fez pecado” (2Cor 5,21) por causa da nossa salvação.
Superando nossas dificuldades e limitações; vencendo nossos pecados e nossas rebeldias, pequenas ou grandes, estaremos sempre mais identificados com o Cristo glorioso, não mais desfigurado por nossos pecados, mas transfigurado no resplendor de sua Ressurreição, que é, ao mesmo tempo, a garantia eterna de nossa própria Ressurreição. Assim, com esse pensamento de amor, piedade e gratidão a Deus, por nos ter garantido “tão sublime Salvador”, preparemo-nos para viver os dias sagrados da Semana Santa, com o olhar e o coração voltados para o nosso Redentor, Jesus Cristo. E que possam ressoar, silenciosamente, em nosso interior, as palavras de adoração e reconhecimento ao Senhor, quando rezamos os mistérios de sua generosa doação através da via-sacra: “Nós vos adoramos, Santíssimo Senhor Jesus Cristo e vos bendizemos, porque, pela vossa Santa Cruz, remistes o mundo”. Amém.

Big Bang

Big bang



A aventura humana começa com a explosão do “big bang” do amor de Deus que não conseguia mais se conter em si mesmo. O amor de Deus esquentou de mais no interior de seu coração, e ele pensou em nós. Mas, antes de sua carreira inicial no estopim da existência, Deus realiza a criação de uma obra maravilhosa. Ele é o Senhor do céu e da terra! Ele é o Senhor criador de tudo! O caos inicial da experiência do cosmos ganha harmonia, cores e iluminação. As cortinas do palco do mundo são abertas pelo Todo-poderoso. Tudo acontece pelo poder de sua Palavra: “Faça-se a luz”; “Haja a luz”; “Seja a luz!” (Gn 1,3). Basta o imperativo divino para que tudo passe da inexistência ao ser. É o mundo encantado onde a Palavra se fez evento nos acontecimentos. A História toma fôlego no “A”, “B”, “C” das criaturas. Olhando a beleza de sua criação, ele percebe que tudo é bom (Gn 1,10). Árvores, plantas, seres vivos de todas as espécies no céu, na terra e no mar; astros incandescentes de luminosidade, contrastando com a escuridão da noite primeira, embelezam e provocam o estupor divino. Todavia, parece faltar algo na completude de sua originalidade. A inconsciência da criação precisa despertar pela consciência de um ser superior a ela, ainda que, mesmo pela condição de superioridade diante das coisas criadas, ele não deva se excluir da situação de criatura. “Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança” (Gn 1,24). Dotado de inteligência, vontade e liberdade, a obra-prima da criação precisa dormir para que dele seja feita uma auxiliar para a sua solidão: “Iahweh Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda” (Gn 2,18). Aparece a mulher, tirada de sua costela: “Então, Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar” (Gn 2,21). O criador faz o homem dormir a fim de que acorde mais feliz e completo, satisfeito com a companheira que é “osso de seus ossos e carne de sua carne” (Gn 2,23). Agora, sim, a obra da criação que antes parecia “boa” (Gn 1,10), é “muito boa” (Gn 1,31). O criador contempla o criado e se extasia. Tudo saiu de suas mãos, de seu poder criativo, infinitamente criador. Que maravilhas aos seus olhos, aos nossos olhos! Os Salmos transbordam de referências às suas maravilhas: “Eu te celebro, Iahweh, de todo o coração, enumero todas as tuas maravilhas” (Sl 9,1); “Quantas maravilhas realizaste, Iahweh meu Deus, quantos projetos em nosso favor: ninguém se compara a ti. Quero anunciá-los, falar deles, mas são muitos para enumerá-los” (Sl 40,5); “Cantai a Iahweh um cântico novo, pois ele fez maravilhas, a salvação lhe veio de sua direita, de seu braço santíssimo” (Sl 98,1); “Cantai para ele, tocai, recitai suas maravilhas todas!” (Sl 10,2); “Ele deixou um memorial de suas maravilhas, Iahweh é piedade e compaixão” (Sl 111,4). São maravilhas, não apenas no que concerne os seres criados, mas, também, quanto aos prodígios de seu poder que traz a salvação de seu povo. Enfim, a beleza do criador se derrama para seu deleito nas criaturas. Mas, até quando? Até onde?
Uma lenda dos hebreus conta que quando Deus intencionou criar o homem, resolveu consultar os anjos, seus conselheiros, para saber sua opinião. Numa intuição quase profética, de quem é capaz de perceber de longe a arrogância da inteligência humana, muitas legiões de anjos tentaram dissuadir Deus de seu propósito criacional, porquanto o homem, sentindo-se senhor de si mesmo e dominado por pretensões inconsequentes, rebelar-se-ia contra Deus. Todas as legiões contrárias ao referido projeto divino foram fulminantemente dizimadas pelo Senhor Deus. Mais tarde, desconfiados de que também seriam destruídos, uma legião se reuniu em conselho para decidir, não apenas apoiar a intenção divina, mas, também, colocar-se de acordo, no intento de colaborar para que o homem não se insurgisse contra Deus, mesmo prevendo sua rebeldia. Uma vez consultados, eles não somente concordaram, como ainda, de igual maneira, dispuseram-se a ajudar no desejo de que o homem fosse temente a Deus e, consequentemente, obediente ao seu criador. A história avançou na dinâmica dos fatos, e o homem, desobediente, resolveu afastar-se do seu Criador como que lhe devolvendo a imagem e a semelhança que Deus tinha depositado em seu coração. A partir de então, deu-se início à trágica trajetória humana em que o homem, presunçoso, tenta colocar-se no lugar de Deus, seu Criador. Uma batalha sem precedentes que se estenderá até o final dos tempos. Se foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo, será por inveja dele que o homem perderá o sossego aconchegante do colo do Pai, do qual ele sempre se sentirá saudoso e distante. Na verdade, a sabedoria de Salomão afirma: “Deus criou o homem para a incorruptibilidade e o fez imagem de sua própria natureza; foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo: experimentam-na aqueles que lhe pertencem” (Sb 2,23-24). Mesmo tendo-se arrependido de ter criado o homem (Gn 6,6), Deus não o abandonou à sua apropria sorte. Esse é, pois, o vislumbre apaixonante do Deus-amor que nunca, jamais, se cansará de favorecer o retorno do homem rebelde à sua intimidade. Expulso do Paraíso e, portanto, da proximidade com Deus, ele terá a oportunidade de se reaproximar dele através do trono da graça: “Aproximemo-nos, então, com segurança do trono da graça para conseguirmos misericórdia e alcançarmos graça como ajuda oportuna” (Hb 4,16). Mas, até lá, o palco da história amorosa de Deus vai se ampliando, escandalosamente, de esforço em esforço, até que sua intenção pedagógico-salvífica seja plenamente realizada. De fato, na encruzilhada da História, Deus se arrepende de ter criado o homem porque “a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo desígnio de seu coração” (Gn 6,5). São as páginas sagradas da Bíblia – Palavra Revelada – que vão guiando nossos passos na compreensão da trama que envolve a disposição amorosa de Deus em direção à criatura. Aos olhos divinos, a humanidade está completamente desorientada, quase perdida, de modo que já não há mais quem faça o bem (Sl 14,1).
Essa desorientação é o reflexo do abandono de Deus pela criatura. Então, acontece uma catástrofe sem precedentes, de maneira que seja revelado ao próprio homem o desgosto divino quanto à sua pessoa: “Farei desaparecer da superfície do solo os homens que criei – e com os homens, os animais, os répteis e as aves do céu – porque me arrependo de tê-los feito” (Gn 6,7). Todavia, conforme o longo percurso da História da Salvação, Deus mesmo, o Criador do céu e da terra, encontrará o caminho do resgate de sua rebelde criatura.