sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

 

Advento, Natal e  Ano Litútigo 

O Catecismo da Igreja Católica afirma que “ao celebrarmos cada ano a liturgia do Advento, a Igreja atualiza esta espera do Messias: comungando com a primeira vinda do Salvador, os fiéis renovam o ardente desejo de sua Segunda Vinda” (CIC, n. 524).

Essa é a motivação pela qual, de novo, queremos abrir as comportas do nosso coração para acolher o Senhor que vai chegar no mistério da Encarnação pela qual “a verdade do amor de Deus alcança o homem na história, convidando-o a acolher livremente essa novidade radical” (Papa Bento XVI). No âmbito desta “novidade radical”, a Igreja de Jesus Cristo retoma “o ciclo das [suas] festas essenciais que são o Natal, a Páscoa e Pentecostes”. (Dom Luciano Duarte).

O período do Advento coincide com o início do novo ano litúrgico, e também, chamado ano eclesiástico, que, em 2024, retoma a reflexão sobre o Evangelho de São Marcos, o ano “B”. Notoriamente, o começo do ano litúrgico não corresponde ao princípio do ano civil, o que acontece no dia primeiro de janeiro. Então, foi a partir do Concílio Vaticano II, que a Igreja de Cristo se enriqueceu com a meditação dos Evangelhos distribuídos nos chamados anos “A”, “B”, e “C”. Trata-se, respectivamente, dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, conhecidos na literatura bíblica como “os Evangelhos Sinóticos”. Essa distribuição dos Evangelhos em três anos litúrgicos foi um “dos frutos maiores do Concílio Vaticano II”. Tudo isso porque, como afirmara Dom Luciano Duarte, “a Igreja inteira vive, pende, está suspensa pela vida histórica de Jesus Cristo, e é celebrando esta vida histórica que a vida religiosa dos cristãos foi se desenvolvendo”. Em outras palavras, “o ano litúrgico é a estrutura que sustenta todo o mistério do culto cristão” (Matias Augé).

Essencialmente, do ponto de vista litúrgico, a vida da Igreja se desdobra no arco de tempo que vai do Advento até o último domingo do Tempo Comum – Solenidade de Cristo Rei do Universo – passando pelo Tempo da Quaresma, que culmina na celebração da Páscoa do Senhor. Dessa maneira, a vida do cristão é permeada por este “kairós” de Deus, o tempo da salvação que se chama “hoje”, que assume a plenitude no mistério da Encarnação de Cristo, extrapolando todos os limites e todas as dimensões do tempo e do espaço, invadindo, antropologicamente, todas as cavernas mais obscuras da imperfeição humana.

Numa atitude de abertura e conversão, todos somos chamados a mergulhar na graça da Redenção que nos é oferecida gratuitamente. Ela é a fonte da esperança de que fala o Papa Bento XVI na sua Carta Encíclica “Spe Salvi”, publicada no dia 30 de novembro de 2007, no Vaticano. “A redenção é-nos oferecida no sentido de que foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceito, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meda, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho”. (Spe Salvi, n. 1).

Falando da “transformação da fé-esperança no tempo moderno”, e fazendo uma retrospectiva histórica de momentos cruciais em que se tentou varrer Deus da convivência social para dar razão à ditadura de sistemas políticos e econômicos, o Papa afirma que “o homem não é só produto de condições econômicas nem se pode curá-lo do exterior criando condições econômicas favoráveis” (Spe Salvi, n. 21) e que, “para Deus entrar verdadeiramente nas realidades humanas, não basta ser pensado por nós, requer-se que Ele mesmo venha ao nosso encontro e nos fale”. (Spe Salvi, n. 23). E é, pois, esse encontro com Deus que queremos celebrar durante o Advento, e mais categoricamente no dia do Natal. Sim, aí, gostaríamos de experimentar, de modo pleno, a profunda satisfação do amor de Deus que nos supera em todas as nossas limitações. Todavia, para isso, o coração precisa ser dilatado, limpo e purificado. É o Papa quem afirma: “O homem foi criado para uma realidade grande, ou seja, para o próprio Deus, para ser preenchido por Ele. Mas, o seu coração é demasiado estreito para a grande realidade que lhe está destinada. Tem de ser dilatado”. (Spe Salvi, n. 32).

Citando Santo Agostinho, o Papa apresenta a bela imagem que descreve a “dilatação” do coração: “Supõe que Deus queira encher-te de mel. Se tu, porém, estás cheio de vinagre, onde vais pôr o mel?” Portanto, abramo-nos ao acolhimento festivo do Messias esperado, que chega, a fim de que rebente no nosso coração ressequido a alegria divina manifestada pelos pastores de Belém, pois, no “hoje” da nossa fé, nasceu-nos um Salvador, o Cristo Senhor. (Dr. PGRS, 2023).

terça-feira, 31 de outubro de 2023

 

A Solenidade de todos os Santos


 

“O Reino celeste é a morada dos santos, sua paz para sempre”. No dia 1º de novembro, celebramos, na Igreja Católica, a solenidade de Todos os Santos, que no Brasil se transfere para o Domingo seguinte, caso o dia 2 – comemoração de todos os fiéis defuntos – não caia em dia de Domingo.

Celebrar todos os santos significa alimentar a esperança de, um dia, também nós estarmos participando da plenitude da vida eterna, depois de vencidas todas as imperfeições de nossa humanidade pelo mistério da Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. De fato, ele nos abriu o cominho de céu, e nos tornamos herdeiros de sua vida divina, concidadãos dos céus, da vida plena em Deus. Desse modo, “já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus. Estais edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, do qual é Cristo Jesus a pedra angular. Nele, bem articulado, todo o edifício se ergue como santuário santo, no Senhor, e vós, também, nele sois coedificados para serdes habitação de Deus, no Espírito” (Ef 2,19-22).

Somente os santos poderão morar no céu! Portanto, todos somos convidados e intimados a uma vida santa diante de Deus e dos homens. A santidade é fruto da íntima e profunda união com Cristo, que faz resplandecer nos santos a glória de sua ressurreição. Ou seja, a santidade não é para os extraterrestres, como, às vezes, imaginamos. Não o é para os que vivem fora do mundo, nas nuvens imaginárias da alienação do cotidiano. Ninguém pode ser santo se não for dentro da realidade propriamente humana, vivendo as disposições interiores e espirituais na abertura transcendental que permite a ascensão para Deus. Quando Cristo pede que sejamos santos como o nosso Pai do céu é santo, isto é, perfeito (Mt 5,48), ela já está dando-nos a esperança de que isso é possível, com o auxílio de sua graça e a nossa abertura ao acolhimento das exigências e implicações que o desejo e a atitude concreta da santidade o pedem. Portanto: “A santidade cristã manifesta-se, pois, como uma participação na vida de Deus, que se realiza com os meios que a Igreja nos oferece, particularmente com os sacramentos. A santidade não é fruto do esforço humano, que procura alcançar Deus com suas forças, e até com heroísmo; ela é dom do amor de Deus e resposta do homem à iniciativa divina”. (Missal Dominical, 1995, p. 1367).

Nossos altares estão cheios do exemplo luminoso de pessoas que viveram na terra como se já estivessem no céu, totalmente impregnadas pelas maravilhas que Deus realizou em sua vida: “De fato, toda forma de santidade tem seu núcleo central na comunicação por parte de Deus, que irrompe na vida da criatura humana e efetua de modo criativo uma autêntica novidade interior. Na luz da transcendência divina, o santo é atraído a entrar em íntima relação com o Pai, participa de sua riqueza salvífica, vive suas exigências e torna-se uma incessante glorificação. Imerso na santidade do Pai e animado pelo Espírito, que é santo e santificante, o santo torna-se um hino de louvor e um sinal vivo da bondade divina para com toda a humanidade, pela riqueza de sua ação”. (Dicionário de Homilética). Contudo, a vida dos santos não é vivida sem as dificuldades impostas pelas limitações humanas dos filhos de Deus, mas, sobretudo, assumindo, na concretude da vivência cristã, todos os apelativos da vontade divina. Numa dimensão de fé, isso significa não se deixar perturbar pelas vicissitudes alheias aos desejos de controle do que nos escapa, mas tudo colocar, de modo confiante e abandonado, sob o prisma da providência divina. Para os santos, nada acontece sem a permissão divina, mesmo as situações aparentemente negativas, que causam aborrecimento e desgosto pelo entusiasmo da fé. Daí que os santos experimentam momentos de terrível escuridão interior, de aparente indiferença divina, de suspeitoso silêncio divino quanto às angústias desprovidas de consolações espirituais. De fato, quantos dissabores existenciais de questionamento perturbam a alma dos santos! Santa Teresa d’Ávila já dizia que não era de admirar que Deus tivesse tão poucos amigos por causa dos “maus tratos” com que Ele saúda os que dele se aproximam.

Desafortunadamente, o mundo moderno, tão materialista quando arreligioso, tem demonstrado um grave indiferentismo quanto às realidades sobrenaturais da existência. A ciência e a técnica tentam explicar tudo e, assim, não deixam espaço para o transcendente, embora o coração do homem jamais se satisfaça com os avanços tecnológicos ou científicos. Tudo isso pode favorecer uma faceta obscura do sonhado “humanismo”, mas não conduz à plenitude do homem desejoso de infinito. Na expressão do Papa Bento XVI (2009, n. 78).), “a reclusão ideológica a Deus e o ateísmo da indiferença, que esquecem o Criador e correm o risco de esquecer também os valores humanos, contam-se hoje entre os maiores obstáculos ao desenvolvimento. O humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano. Só um humanismo aberto ao Absoluto pode guiar-nos na promoção e realização de formas de vida social e civil – no âmbito das estruturas, das instituições, da cultura, do ethos – preservando-nos do risco de cair prisioneiros das modas modernas. É a consciência do Amor indestrutível de Deus que nos sustenta no fatigoso e exaltante compromisso a favor da justiça, do desenvolvimento dos povos, por entre êxitos e fracassos, na busca incessante de ordenamentos retos para as realidades humanas”.

Portando, também dentro do horizonte das conquistas humanas, deve haver condições producentes em relação ao encontro entre o humano e o divino, a fim de que essas satisfações historicamente momentâneas não fechem o caminho progressivo da santidade ultra histórica porque nos leva a Deus. É permitindo que Deus – o Santo e Santificador, por excelência – participe da nossa vida terrena que poderemos ser agraciados pela participação futura da sua vida no céu, pois a vida no céu não será outra coisa senão a continuidade de nossa amizade com Ele vivida na terra. Com efeito, iluminados pela luz interior da fé – que é um dom da gratuidade divina – os santos conseguem contemplar um horizonte tão longínquo que poucos conseguem perceber. É, pois, lá, onde eles fazem a sua morada eterna desde o mundo sombrio da Terra. (Dr. PGRS) 

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

 

Gaudete in laetitia fratrum

 

 


Alegrai-vos na alegria dos irmãos! Esse foi o pensamento que me assaltou o espírito quando vi fotografias de Dom Genivaldo Garcia, Bispo da Diocese de Estância, em Sergipe, visitando o Santo Padre, o Papa Francisco, ou até mesmo na Basílica do Vaticano, juntamente com alguns irmãos bispos, eleitos para o episcopado entre 2022 e 2023, especialmente, aqui, no Brasil. Fico imaginando a alegria que não deve ter sido poder participar de um encontro de formação na Santa Sé, no coração da Igreja, e com a presença do Santo Padre, o chefe visível da unidade universal da Igreja de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Que outra instituição religiosa tem esse carisma ou essa organização hierárquica, para levar a cabo a determinação do Senhor Jesus, que pediu aos Apóstolos que fossem pelo mundo inteiro anunciando a todos os povos a Boa Nova da salvação eterna? Digam o que quiserem dizer, mas só a Igreja Católica Apostólica Romana tem esse privilégio!

Na Igreja Católica, o episcopado é um convite especial do Senhor a fazer parte da plenitude da vocação do Ministério Sacerdotal. Mas não é para todos! O epíscopo é uma espécie de vigia, de atalaia, alguém que olha acima dos outros – conforme a etimologia grega do termo – numa espécie de vigilância permanente, a fim de que os súditos possam caminhar, segundo as leis de Cristo e da Igreja, para chegarem à vida eterna. Assim, os bispos agem “com Pedro e sob Pedro”. Trata-se, pois, de uma beleza bastante significativa no contexto eclesial. De fato, o Concílio Vaticano II afirma: “Todos os bispos, como membros do corpo episcopal, sucessor do colégio Apostólico, são consagrados não só em benefício de uma diocese, mas para a salvação de todo o mundo. O mandato de Cristo de pregar o Evangelho a toda a criatura afeta-os primária e imediatamente a eles, com Pedro e sob Pedro”. (Ad Gentes, n. 38). Ou seja, em comunhão com o Papa, os bispos assumem ainda a responsabilidade para fazerem acontecer a “dilatação do corpo de Cristo”.

Tão sublime é a missão do bispo, que outro documento destaca o seguinte: “Na pessoa dos bispos, quando coadjuvados pelos presbíteros, é o próprio Senhor Jesus Cristo que está presente no meio dos fiéis. Embora sentado à direita de Deus Pai, não se ausenta da comunidade dos seus pontífices; mas é principalmente através do Ministério excelso dos bispos que Jesus Cristo prega a palavra de Deus a todos os povos e administra continuamente o sacramento da fé aos crentes; e, graças ao ofício paternal dos mesmos (cf. 1Cor 4,15), vai incorporando por geração sobrenatural novos membros ao seu corpo; finalmente, pela sabedoria e prudência dos bispos, dirige e orienta o povo do Novo Testamento na sua peregrinação para a eterna bem-aventurança”. (Lumem Gentium, n. 21). Bonita e extraordinária missão apostólica a eles confiada, como a toda a Igreja, com a participação e a colaboração missionária dos sacerdotes e igualmente dos fiéis leigos.

Sei dos pecados dos homens da Igreja, que não são santos como gostaríamos – mas também nem anjos nem demônios; sei de suas feridas e vulnerabilidades mais profundas, diante da missão que lhe é exigida pela própria Igreja; e, aqui, não estou me referindo especificamente a um indivíduo por excelência. Refiro-me à fragilidade a que todos nós fomos expostos pela “desorientação antológica” que quebrou o eixo da humanidade quanto à relação divina; refiro-me à desobediência de Adão, que nos precipitou a todos nós nas garras da concupiscência da carne e dos olhos e consequentemente na soberba da vida. (cf. 1Jo 2,15-17). Tudo isso como consequência do pecado. No entanto, resgatados por Cristo pela generosa entrega do Filho de Deus, o novo Adão, voltamos maravilhosamente à intimidade com o Pai criador. Dessarte, o próprio Filho de Deus, Jesus de Nazaré, quis colaboradores, os discípulos, dentre os quais ele escolheu os “apóstolos”, cuja palavra significa “enviados”. (cf. Lc 6,12-19).

Agora, Dom José Genivaldo Garcia está também entre eles, na linha da sucessão apostólica, de modo que nós também nos alegramos com sua chegada ao episcopado! Ele é nosso amigo; ele é nosso irmão, saído do clero da arquidiocese de Aracaju. Por isso, alegramo-nos pelo seu chamado a tal ministério, pelo seu “sim” a Deus, pelo seu “fiat”’ – “faça se!” Que a experiência junto ao Santo Padre, com outros bispos de sua geração, anime-o imensamente, a fim de que corresponda sempre com mais generosidade à missão que lhe fora confiada pelo Pastor dos pastores, Jesus, o dono da messe. A ele, nosso abraço, nosso respeito, nossas orações por sua fidelidade. (Dr. PGRS).

 

segunda-feira, 3 de abril de 2023

O drama da paixão de Cristo

 

O drama da paixão de Cristo

 


O drama da Paixão de Cristo encerra o ministério da nossa salvação eterna! Na verdade, o que Cristo veio fazer entre nós? Qual o sentido último da sua Encarnação, da sua Paixão, da sua Morte e da sua Ressurreição? De fato, a história da salvação começa com a antiga promessa que Deus fizera de nos enviar o Salvador. E ela se encontra, lá, na origem da Criação, quando ao criar o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1,27), ele se rebelou contra o Criador mediante a insinuação da serpente tentadora, que semeou a inimizade entre Deus e a criatura humana. Assim, aquela resistência à vontade do Criador abriu o precedente radical que nos tornou prisioneiros do maligno. Contudo, o Pai, santo e misericordioso, não quis deixar-nos entregues à nossa própria sorte. E, por isso, prometeu: “Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar...” (Gn 3,15).

Esse texto do Antigo Testamento é considerado pelos grandes exegetas como o protoevangelho, isto é, a primeira boa nova alvissareira do nosso resgate espiritual para Deus. Assim, tal “versículo constata a hostilidade fundamental entre a serpente a humanidade, mas deixa entrever a vitória final da humanidade: é um primeiro clarão de salvação, ou Proto-evangelho. A tradução grega [...] atribui essa vitória não à linhagem da mulher em geral, mas a um dos filhos da mulher; dessa forma, é estimulada a interpretação messiânica já presente na tradição judaica antiga, depois retomada e explicitada por muitos Padres da Igreja”. (BJ, 2004, p. 38, nota “a”). Dessarte, “quando o homem consegue mostrar o que tem de pior e atingir seu ponto mais baixo, Deus lhe dá um recomeço”. (Wiersbe). Ou seja: no próprio alvorecer do nosso afastamento de Deus, está também a sublimidade misteriosa, bem longínqua, bem distante, da nossa Redenção, embora, no vislumbre da onisciência divina, esse rasgo de claridade intensa aconteça no relâmpago de sua visão universal, cosmogênica-transcendental. Com efeito, na intuição luminosa da divindade, a abrangência histórica da salvação é um clarão de plenitude experimentada somente por Deus, onisciente, onipresente e onipotente. Portanto, nossa visão míope, extremamente contaminada pela tiflose espiritual, reforçada pelo pecado, apenas saboreia o minimalismo radical dessa percepção, porque também é um dom da inteligência com que fomos dotados. No entanto, o Criador precisou preparar o coração da humanidade para o mistério de sua própria salvação, transcorrida na história mediante a revelação do próprio Deus.

Os séculos foram avançando, e Deus mesmo se encarregou de revelar o seu plano de amor incondicional pela criatura humana, enviou seus mensageiros, suscitou os profetas, fez resplandecer nos eventos históricos as maravilhas de seu poder, até fazer despontar a luz do Salvador outrora prometido. Desse modo, “quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a Lei, para resgatar os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial”. (Gl 4,4). Ele é o “Cordeiro imolado” desde a fundação do mundo, quando já detinha o “livro da Vida”. (Ap 13,8). E foi por meio do Filho que Deus olhou a cada um de nós, derramando sobre todos os dons infinitos e espirituais de sua misericórdia, mesmo se “O amor de Deus pelo pecador, de maneira alguma elimina sua abominação santa pelo pecado, pois, ainda que seja verdade que ‘Deus é amor’ (1 Jo 4,8), também é verdade que ‘Deus é luz’ (1Jo 1,5). Um Deus santo deve tratar do pecado, para o bem do pecador e para a glória de seu nome”. (Wiersbe). É o que Deus faz pela Pessoa do Filho, historicamente, durante o Drama da Paixão de Cristo, na Semana Santa! Por isso, somos chamados a viver esses dias com piedade, gratidão e esforço mais intenso de conversão ao seu amor. Outrossim, “Já se aproximam os dias de sua Paixão salvadora e de sua gloriosa Ressurreição. Dias em que celebramos, com fervor, a vitória sobre o antigo inimigo e entramos no mistério da nossa Redenção”. (Prefácio da Paixão do Senhor, II).

O Catecismo da Igreja Católica (CIC, n. 41), é bastante esclarecedor quando afirma: “Nenhum homem, ainda que o mais santo, tinha condições de tomar sobre si os pecados de todos os homens e de oferecer-se em sacrifício por todos. A existência em Cristo da Pessoa Divina do Filho, que supera e, ao mesmo tempo, abraça todas as pessoas humanas, e que o constitui Cabeça de toda a humanidade, torna possível seu sacrifício redentor por todos”.

A semana santa nos ajude a ver o Senhor da Glória no seu caminho de humilhação, de sofrimento e de morte – pela via sacra – e desperte nosso coração renovado no resplendor de sua Ressurreição. Assim, Senhor, “que o nosso pecado seja assumido pela tua graça redentora e santificante; nossa fraqueza, pela tua força; nossas lágrimas, pela tua consolação; nossa inquietação, pela tua serenidade; nosso egoísmo, pela tua mortificação; nossa covardia, pela tua coragem de amar até o fim; nossa impaciência, pela tua paciência; nossas feridas, pelas tuas chagas; nosso dilaceramento, pela plenitude de tua integridade; nossas lamentações, pelo teu silêncio; nosso fracasso, pela tua vitória; nossa nulidade, pela tua perfeição; nossa vida, pela tua morte, que gera a verdadeira vida; nossa morte, pela tua Ressurreição; nossa ressurreição, pela eternidade de Deus...” Amém! (Dr. PGRS).

 


segunda-feira, 13 de março de 2023

Araujo, o octogenário

 

Araujo, o octogenário

Conheci o professor José Araujo Filho, o octogenário, depois que ingressei no Seminário Menor “Sagrado Coração de Jesus”, em Aracaju, no dia 14 de fevereiro de 1987. Há pouco mais de trinta e seis anos. Àquela época, a CNBB havia instituído o chamado “ano propedêutico”, com o qual Dom Luciano Duarte (1925-2018) concordou plenamente, em virtude de que os estudantes vinham de colégios públicos e havia grande déficit de inteligência ou de conhecimento. Éramos considerados como “tábula rasa”, isto é, desprovidos do devido nível do saber para seguirmos no estudo do “Segundo Grau”, como era apodado o hoje “Ensino Médio”, de modo que, por essa razão, deveríamos parar um ano, aprofundando algumas disciplinas de cunho científico, mas também eclesiástico.

Naquele comenos, Dom Luciano Duarte, que era um exímio investigador das ciências filosóficas, teológicas e de outros saberes plúrimos, inclusive preocupado do a visão rasteira que possuíamos da realidade estudantil, requisitou, compulsoriamente, um grupo de professores intelectuais de Sergipe, seus amigos, formados na Europa, para nos administrarem as aulas preparatórias. Entre eles, estava o então ainda meio jovem professor José Araujo Filho. Portanto, ali nascia a possibilidade da estrada aberta para o conhecimento e a amizade com o dileto professor, que, às vezes, de perto, às vezes, de longe, seguia o processo formativo que, no meu caso, durou onze anos: quatro anos no Seminário Menor e sete no Seminário Maior, em Brasília, de onde voltei, no final de 1997, para ser ordenado diácono e, depois, sacerdote.

No Seminário Menor, fui seu aluno de latim e de língua portuguesa. Mas seu universo intelectual já abrangia um leque de sabedoria filológica e de outros ramos da cultura erudita – história, geografia, literatura clássica e moderna, entre outras – o que tornava interativa e envolvente sua exposição em sala de aula. Desse modo, a semente de seus conhecimentos fora plantada no coração de muitos seminaristas. Na dinâmica do ensino do português, ele sugeria que lêssemos textos para melhorar a prosódia e a compreensão do conteúdo, e todos participávamos, cada um por sua vez. Nunca esqueci a frase que, por sorte, me coube ler numa daquelas experiências na incipiência do aprendizado: “Ele espremia os olhos, porque não enxergava direito!” Aquela expressão quase me chocou, pois era justamente o que fazia quando perlustrava um texto. E foi Dom Luciano quem, um dia, descobriu que eu era quase cego!

Habitualmente, o então arcebispo frequentava o seminário menor toda semana, a fim de nos fazer uma palestra, e jantar com os seminaristas. Sempre pedia que o Reitor, Pe. Raimundo Cruz (1941-2014), desligasse a campainha e o telefone, porquanto ele desejava estar exclusivamente com os seus pupilos. O caudal de conteúdo e a motivação que derramava sobre nós eram algo apoteótico, mas também despertava melancolia e apreensão, porque ele fazia muitas perguntas para as quais, dificilmente, encontrávamos resposta. Contudo, era muito contagiante! Um dia, ele quis ensinar-nos uma música em latim, escrevendo-a na lousa, para todos copiarem. Foi quando, depois de perguntar se todos já haviam copiado, eu respondi que ainda não. No entanto, eu copiava do colega ao lado e não da lousa. Percebendo-o, perguntou por que não escrevia diretamente do quadro. Respondi: “Porque não enxergo direito”! Então, ele fez uma brincadeira, quase me chamando de “cego”, e pediu ao Reitor que me providenciasse, com urgência, um oftalmologista. Fiz os exames, e comecei a usar os óculos! Nas leituras seguintes, quando o professor Araujo pedia, eu não espremia mais os olhos! E voltei a ver o mundo mais festivo.

Pois bem, o tempo passou, conclui os estudos de filosofia e teologia, fui ordenado sacerdote, e nossos encontros eram esporádicos, mas sem nunca perder a possibilidade dos contatos. Em 2000 e 2001, fui Reitor do Seminário Menor, e eis que o professor seguia ministrando aulas de latim, participando ativamente das atividades acadêmicas da referida casa de formação. Uma fileira inumerável de alunos, hoje, padres – e há um bispo, Dom Valdemir, auxiliar de Fortaleza-CE – beberam da fonte cristalina de sua sapiência. Ou, pelo menos, tiveram o privilégio de seu desgaste intelectivo, ao tentar instrui-los com maestria e competência. Uma vez, tivemos a oportunidade de sermos colegas de turma, durante uma semana, em São Paulo, na Faculdade Assunção, num curso de hebraico moderno. Soube depois que um dos companheiros de viagem, o obrigou a dividir com ele os gastos que eu teria naquela semana, especificamente, com a hospedagem. Foi o bom velhinho, o Dr. Paulo Machado, grande jurista sergipano, que depois se tornou meu aluno no curso de Teologia do Seminário Maior da Província Eclesiástica de Aracaju. Ele que dizia: “Daqui a alguns dias, Paulo Machado será Paulo Foi-se!” Era muito espirituoso, e fazia esse trocadilho!

Bem mais tarde, em 2007, depois que eu voltei de Roma, onde fiz o mestrado em Teologia Bíblica, na Pontifícia Universidade Gregoriana, tornamo-nos colegas do Corpo Docente no já supracitado Seminário Maior. E, assim, ao lado de outros intelectuais de grande envergadura epistemológica, d’uma imensa capacidade de síntese gnosiológica – como era o caso, por exemplo, do Pe. Gilson Garcia (1936-2020) – tínhamos diálogos francos e frutíferos do ponto de vista da abrangência da formação acadêmica como deveria ser o ambiente dos Seminários. Mas, como o saber de um homem não deve se deter nos limites das ciências puramente humanas, o professor Araujo, desde cedo, também se demonstrou afeito às moções do Espírito, fomentando no fundo da alma o esteio da espiritualidade. Talvez, aqui esteja a essência do que veio a se tornar o nosso amigo octogenário, que teve todos os estágios das estações de sua existência alimentados pela ceiva do divino. E, com certeza, isso tornou mais luminoso seu caminho, e ainda mais convincente a trajetória do testemunho em relação aos que o cercam. Com efeito, é no silêncio e na solidão que o homem tempera melhor seu estado de alma para alcançar os páramos da felicidade que almeja. Melhor: “A verdadeira solidão será sempre o lugar do autoconhecimento e da elevação espiritual”. (Galvão, 2019, p. 147).

De algum modo, mesmo elevando hoje muitas ações de graças pelo dom de sua vida, inclusive na solene celebração eucarística, na Igreja, a vida do professor Araujo poderia ser resumida como dom e partilha, durante todo o seu passando. Assim, para concluir, recorro ao pensamento do autor moderno, um sacerdote paulino, que nos ensina: “O amor de Deus esconde uma plenitude que o amor humano não pode desvelar totalmente. Faz parte dos limites de nossa humanidade. Contudo, essa limitada compreensão, não nos exime do compromisso de multiplicar e partilhar esse amor no cotidiano da nossa vida. A experiência do amor divino não pode ser algo que nos isole das contradições do mundo, mas, antes, uma experiência que nos integra: à natureza, aos seres humanos, à vida compartilhada. [...]. Amar é fazer a experiência de despossuir-se continuamente”. (Galvão, 2019, p. 142).

Parafraseando ou quase repetindo Dom Luciano Duarte, o problema não é fazer oitenta anos, o grave é tornar-se octogenário, professor. Assim, pois, foi a vida do nosso amigo, agora, octogenário, que “se despossuiu” para enriquecer todos aqueles que, algum dia, estiveram ao seu lado, na vida, na escola, na universidade, na Igreja, no coração dos que o admiram e o amam. (Dr. PGRS, Aracaju, 11 de março de 2023).

sábado, 18 de fevereiro de 2023

 

Saudades do Carnaval?

 


Saudades do Carnaval? Sim! “Saudades do Carnaval” é o sentimento de folia que tem repaginado a vida de muitas pessoas, Brasil afora, depois da suposta passagem da pandemia do Covid-19, uma tragédia humanitária que, só no país “verde e amarelo”, fez desaparecerem quase 700 mil pessoas. Então, as ruas começam a ser tomadas pelos foliões que se reúnem para a “celebração da vida”, diriam alguns. Por mais de dois anos afastados das passarelas do samba, eis que tudo parece voltar a todo vapor! E a pandemia já nos deixou em paz? Quanto aos que morreram, esses, sim, descansam em paz, porque o tumulto das nações silencia nos cemitérios.

O carnaval não é uma necessidade essencial da alma nem do espírito humano. Desse modo, sua substância é, sobretudo, de sede espiritual e de fome de Deus! Ou melhor: De Saudade de Deus! E esse deveria ser o grito dos cristãos: “Saudade de Deus!”. Infelizmente, com o afastamento moroso da sombra da pandemia, que assustou a todos no mundo inteiro, parece que a maioria das Igrejas ainda vazias sinaliza que vivemos, de veras, esquecidos de Deus. Alguns não voltaram, talvez, porque se descobriram não necessitados de Deus; outros, por acomodação mesmo, imaginando uma igrejinha doméstica, que não alcança o sentido pleno da eclesiologia; e outros ainda, porque esfriaram na fé, perderam o sentido da vida em comunidade e, assim, se isolaram. Mas Deus não nos esqueceu! Portanto, precisamos recobrar o caminho da gratidão, voltar à vida da comunidade na Igreja e nos alegrar com o fato de ainda estarmos aqui, vivos, celebrando os louvores do nosso Deus Criador e Salvador. É, pois, nessa direção que queremos caminhar durante o tempo forte, de oração e penitência para os cristãos católicos, com o advento do período da Quaresma!

Não é por acaso que “a Quaresma, que nos conduz à celebração da Santa Páscoa, é para a Igreja um tempo litúrgico muito precioso e importante, em vista do qual me sinto feliz por dirigir uma palavra específica para que seja vivido com o devido empenho. Enquanto olha para o centro definitivo com o seu Esposo na Páscoa eterna, a Comunidade eclesial, assídua na oração e na caridade laboriosa, intensifica o seu caminho de purificação no espírito, para haurir com mais abundância do Mistério da redenção a vida nova em Cristo Senhor (cf. Prefácio I da Quaresma”). (Bento XVI). Uma palavra do saudoso Bento XVI ainda em vigor! É a perenidade da Palavra de Deus que se desdobra nos ensinamentos da Igreja de Cristo através dos papas, do magistério, da tradição e da doutrina católica. Tudo, porém, fundamentado nas Sagradas Escrituras, sobretudo nos Evangelhos de Cristo.

Ou seja, um universo de diretrizes éticas e espirituais que devem elevar os homens à transcendência própria de sua altíssima dignidade. A dignidade de Filhos de Deus: “Com efeito, não recebestes um espírito de escravos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai! O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus. E se somos filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo, pois sofremos com ele para também com ele sermos glorificados”. (Rm 8,15-16). Sofrimento e glória, dois termos que São Paulo aponta aos cristãos, a fim de que não esqueçamos a dinâmica do binário espiritual aqui enfatizado. De fato, à luz cristológica, não há glória sem sofrimento. Aliás, essa é uma das tentações de satanás contra o Filho de Deus: para que passar pelo sofrimento, se é possível a glória sem ele? (“Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares”, Mc 4,9). Trata-se, pois, de uma enganação do diabo que tem inspirado a vida de muitos falsos discípulos de Cristo, porque tentam criar a sua própria religião.

Que o tempo novo da liturgia da Igreja, que é a Quaresma, conduza-nos a melhor entender o caminho da Cruz percorrido por Cristo para nossa salvação eterna. Piedade, amor, jejuns e orações, tudo isso ao lado da esmola – que é mais do que o simples gesto de doar algo a alguém – inspire-nos a bem viver esse período de penitência. Na verdade, contemplando o Cristo da cruz, de algum modo, contemplamo-nos a nós mesmos pelo mistério da Encarnação daquele que carregou sobre si as nossas feridas espirituais mais profundas, como consequências do pecado da desobediência de Adão e Eva.

O tempo santo da Quaresma deve ser também para nossa infinita gratidão ao Pai Criador, ao Filho Salvador e ao Espírito Santificador, pelos benefícios advindos da Cruz do Senhor nosso Jesus Cristo. (Dr. PGRS).

Feliz e Santa Quaresma!

2023

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

 

Dom Luciano Duarte e a ousadia dos gênios

 


(1925-2018)

Se vivo fosse, nesse dia 18 de janeiro de 2023, Dom Luciano Duarte estaria comemorando 77 anos de consagração sacerdotal. A admiração que sempre nutri por Dom Luciano Duarte (1925-2018) nasceu quanto eu ainda era jovem vocacionado, e, depois, seminarista, no final da década dos anos oitenta, participando dos encontros vocacionais no Seminário Menor de Aracaju. Como esquecer aquele tempo e suas visitas frequentes aos seminaristas? Pelo menos, para mim, foi um tempo de desejo ardente de florescimento multicultural, ouvindo e aclamando, com tantos encômios dignos de sua autoridade pessoal e eclesiástica, o então Arcebispo Metropolitano da Arquidiocese de Aracaju. O fulgor de sua inteligência era, realmente, contagiante. Portanto, o que trago aqui outra coisa não é, senão, um breve memorandum sobre o mítico de multifacetada personalidade que ficou conhecido no meio intelectual de Sergipe e na própria Igreja católica simplesmente como Dom Luciano Duarte.

Grande visionário, intelectual de profundo e rico veio oratório e dialético, versátil na exposição vocabular de seu conhecimento linguístico. O homem da palavra ligeira e cortante, da réplica espontânea, no belo estilo polido da finesse dos grandes espíritos argutos, sábios, mas também capaz de ajudar os menos afeitos ao rico patrimônio do saber, da “sabedoria acumulada” de que fora dotado pela própria natureza de sua insistência na formação do caráter e da individualidade. Mas nada aconteceu por acaso, no sentido de que ele não tenha se esforçado para atingir os páramos mais elevados da grandeza que a envergadura de sua genialidade poderia lhe favorecer. Com efeito, a intensidade da educação que recebemos pode tornar-se uma referência que determina, negativa ou positivamente, a vida de quem se abre ou se fecha aos dotes cognoscitivos dos próprios recursos que brotam dentro da claridade dos pensadores.

Grande estudioso, insaciável na ânsia pelo saber, de raciocínio investigador, extremamente inquieto e saliente nos limites das aquisições já adquiridas, Dom Luciano era um espírito sempre desejoso de ir mais além, alfinetado pelas respostas prontas que trazia sob os riscos ou traços da pena literária, lúcido até onde lhe permitiram os rasgos do brilhantismo intelectual. Dom Luciano Duarte sabia se posicionar, de modo categórico e certeiro dentro dos vários ambientes em que se encontrava, sob qualquer tema ou assunto, mesmo não agradando nem convencendo. No entanto, estava convencido de suas certezas, de suas convicções pessoais, fundamentadas no fértil solo do conhecimento erudito de que se servia para expor seus argumentos.

Embora o caráter e a personalidade de uma pessoa possam crescer e amadurecer no tempo cronológico de sua formação educacional ou acadêmica, levando em consideração outros efeitos da conceituação antropológica do indivíduo – sua infância e adolescência, o meio onde foi criado e educado, o acesso que pôde ter às letras e aos livros, a oportunidade de leituras e elaboração do pensamento etc. – o fato é que algumas mentes privilegiadas podem se destacar, desde cedo, mediante o mistério inebriante da acuidade espiritual e intelectiva de suas percepções mais tenras. Penso que isso tenha acontecido com o homenageado, Dom Luciano Duarte. Gênios brincam como gênios, mesmo que o alcance de sua criatividade seja traído pela não concretude de seus anseios na vida futura. Aliás, quem pode garantir a vida futura? Ouvi um dia, numa pregação da quinta-feira santa, na missa do lava-pés, Dom Luciano dizer que quase morreu quando criança, muito doente. Mas conseguiu se tratar e sobreviver, e não apenas não se tornou mais um número nas estatísticas do governo federal, aumentando o índice da mortalidade infantil no país, mas, sobretudo – dizia ele – havia se tornado alguém importante e influente no seio da sociedade sergipana e alhures. Na verdade, ele se referia, no contexto da celebração, ao modo como, muitas vezes, o Senhor Jesus poderia nos lavar os pés, servindo-se daquela maneira.

Nos vários “recreios culturais”, que tive e tenho com a amiga Ana Maria Medina, da Academia Sergipana de Leras, ela me contou que, num episódio narrado em seu diário seminarístico, consta que, numa brincadeira de menino, ele dizia que queria ser “gente grande”, no sentido da importância de uma personalidade que se destacasse pelos seus talentos, numa espécie de peça de teatro, o que ele escreveu aos onze anos. Desse modo, ele já se colocava como aquele a quem todos deveriam obedecer, isto é, a “Dom Luciano Duarte”. Certamente, adormecida nas dobras da alma pueril do menino levado, inteligente, jazia o tom brincalhão de quem, futuramente, se tornaria, de verdade, importante e influente. Esse fato, narrado por ele mesmo, fez-me acordar dentro das lembranças da fantasia da alma, algo que li, por sua influência, sobre Geovanni Papini, um dos tantos convertidos do século XX, entre os quais podemos destacar também o filósofo Maurice Blondel (1861-1949) e escritor Léon Bloy (1846-1917), sobre os quais ele falava com largueza de conhecimento e riqueza de detalhes da vida dos dois.

Geovanni Papini, que dizia nunca ter sido criança, sisudo na fisionomia do rosto, já era tratado e apelidado como “velho”, aos sete anos de idade. Não brincava como as outras crianças de sua contemporaneidade, mas, penetrado por uma inteligência brilhante e astuciosa, rivalizava com o próprio Deus em peças de teatro que imaginava, querendo concretizar o acontecimento bíblico de quando a serpente disse a Adão e Eva que eles seriam como o próprio Deus.

Assim sãos os gênios e sua ousadia intelectual, tempestivamente provocados por suas intuições mais profundas. Às vezes, tento fantasiar em minhas especulações a ousadia da genialidade de meninos assim, abertos aos ventos do espírito, com as asas da inteligência volitando sobre os encantos de suas criações inocentes. Devaneios ou sede de autoafirmação mesmo? Consciência plena dos caminhos de suas buscas ou enlevos francos de sua esperteza em arrebatamentos idealistas? Não sei! Mas tenho certeza de que as sementes dos grandes sonhos plantados na alma dos pequenos gênios podem ser sinais de virtude, de coragem ou de desejo de realizações oportunas. Contudo, a vida é o caminho dessas vitórias e conquistas, mas os limites são os desafios impostos pela superação dos grandes ideais e aspirações do espírito humano. Aquele menino virou padre e, depois, também Arcebispo da Arquidiocese de Aracaju.

O tempo é o senhor de todos os sonhos! Para os ideais daquele menino também. Levantando-se do chão pelo crescimento da força física, mas também intelectual, seu caminho estaria marcado pela lucidez com que, sempre, se embrenhou pelas florestas altas do saber e do conhecimento, percorrendo o mundo pela construção acadêmica que a Igreja lhe abriu durante a formação, porém ampliando, cada vez mais, o horizonte das inquietações que lhe perturbavam o espírito. Não se deteve no conhecimento das coisas da Igreja, apenas, mas igualmente se deixou desassossegar pela conjuntura mundial das ideologias que, de um modo ou de outro, espezinhou e vilipendiou a dignidade humana em conflitos revolucionários de governos caudilhistas e déspotas. Ele, que costumava citar o pensamento de um pastor inglês, metodista, John Wesley (1703-1791) – que dizia que, ao abrir a janela de sua casa pela manhã, contemplava o mundo inteiro como se fosse sua paróquia – também saiu das sacristias e elevou seu pensamento e suas preocupações sobre os telhados do mundo em decomposição moral, espiritual, ética, deteriorando-se nos seus valores mais prementes.

Outrossim, a alma dos gigantes não se contenta com o mundo pequeno de suas percepções, mas com a grandeza e a elasticidade de suas inquietações mais profundas. Não quis somente ser o padre ou pastor, especializado nas coisas da Teologia e da Igreja, mas também se abriu para o mundo, fazendo seu doutorado na Sorbonne de Paris, aos pés de grandes filósofos e amigos como Jean Guitton e Paul Ricoeur, também egrégios inspiradores de grandes ideais pela elevação espiritual da humanidade. (Dr. PGRS). 

 

 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

 

Signore, Ti amo 


 
Joseph Aloisius Ratzinger (1927-2022) - Bento XVI 

Jesus, eu Te amo! Dizem que essas foram as últimas palavras do Papa Emérito, Bento XVI, ao morrer no dia 31 de dezembro de 2022, derradeiro dia do ano. Certamente, uma palavra síntese do que foi a sua vida inteira, porque a ousadia dos santos passa pela brevidade de um discurso, que resgata, solenemente, na introspecção da alma, a coerência da fé e da vida dos amigos de Cristo. Jesus eu Te amo! Quantas vezes nós tivemos a coragem de dizer isso? Mas não, levianamente, da boca para fora, como manifestação do que, na verdade, não corresponde aos nossos atos ou às nossas atitudes cotidianas diante d’Aquele a quem dizemos amar! Eu não ousaria responder! Infelizmente, na maioria das vezes, nosso comportamento contradiz a essência do que falamos ao sabor das incoerências mais devastadoras do nosso agir. Mas Bento XVI sabia o que estava dizendo!

Percorrendo o histórico de sua vida pessoal, do seu amor a Cristo e da sua fidelidade incondicional à Igreja do Senhor, a lucidez de sua consciência é comovente. Com efeito, tudo o que fez e viveu – inclusive enfrentando os inimigos internos e externos da Igreja, a fim de não negociar com o mundo moderno os valores da pregação do Evangelho – foi para fazer valer o depositum fidei – o depósito da fé – em detrimento das falsas doutrinas ventiladas por supostos teólogos e liturgistas, entre outros “pensadores” convertidos às ideologias mais diversas dos dias que correm. Dentro desse contexto, “como seu posto na Cúria o obrigara a defender a ortodoxia católica contra a heresia e a inovação, os sentimentos por ele antes da eleição iam da idolatria ao puro ódio”. (Coulombe, 2022, p. 502). E, assim, a sua vida se derramou, do início ao fim, custodiando o patrimônio multissecular da Igreja contra os lobos ferozes, que tentam enganar o rebanho para satisfazer o modismo de egoísmos penetrados de autodeterminação e vontades mundanas. Ele não era um homem de visão míope e limitada pela cegueira dos que imaginam os valores da fé e da doutrina da Igreja como acidentais e passíveis de mudança ao sabor das modas contemporâneas. Por isso, ele condenou a “ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades”.

No evangelho que ouvimos (Jo 1,35-42), a expressão do Apóstolo André dirigida ao irmão Simão Pedro é bastante significativa: “Encontramos o Messias, que quer dizer Cristo”. Joao Batista estava com dois de seus discípulos que o ouviram dizer: “Eis o cordeiro de Deus”’, indicando Jesus. Depois, eles seguiram a Jesus que lhes perguntou: “O que estais procurando?”. E, então, eles quiseram saber: “Rabi, onde moras?”. Em seguida, vem o suave convite de Cristo: “Vinde e vereis!”, e foram ver onde ele morava, de modo que permaneceram com ele naquele dia. Certamente, foi um dia muito agradável e de muitos ensinamentos. Foi, pois, naquela ocasião que André fez o anúncio a Pedro, conduzindo-o até Jesus que lhe disse, fitando-lhe os olhos: “Tu és Simão, filho de João; tu serás chamado ‘Cefas’ (que quer dizer pedra)”. Para compreender bem essa passagem do Evangelho, não é suficiente recorrermos apenas às ideias pessoais que tentam elaborar a dimensão mais profunda de seu conhecimento. Trata-se, pois, de um acontecimento cristocêntrico, que traz à vida dos Apóstolos a amizade fiel, até a morte, ao seu Senhor e Mestre. Assim, o pano de fundo exegético indica-nos melhor o alcance de sua abordagem. Pensemos com os estudiosos!

Na visão de Poppi (2006, p. 568), o chamado não é uma escolha humana, mas nos evangelhos sempre aparece como consequência da iniciativa de Cristo. “O que estais procurando?”. Na Bíblia, com frequência se fala da procura pela sabedoria personificada, que convida os homens a acolher suas instruções, a seguir as suas vias e a participar do seu banquete (Pr 8-9); e ela, por sua vez, vai a procura daqueles que são dignos do seu seguimento. (Sir 6,18ss: Sb 6,12-16). Portanto, parece eu seja necessário reconhecer uma aproximação intencional entre Jesus e a sabedoria divina, que o homem deve procurar (zēteîn) para conhecer a verdade e encontrar e encontrar a salvação. Com certeza, iluminado pelas moções do Espírito Santo, Bento XVI percebeu essa realidade de busca ou de esforço de reposta ao chamado de Cristo durante a sua existência. Não por acaso, ele se colocou como um entre tantos outros “Cooperadores da Verdade”! Mas que verdade? A única revelada por Deus ao homem, à criatura humana, fazendo descer dos céus o Seu Filho eterno para ser o nosso Salvador. Foi ele mesmo, o Filho, quem assim se nos manifestou: “Eu sou o Caminho, e a Verdade, e a Vida!” (Jo 14,6).

Bento XVI foi um papa de muitas surpresas, inclusive com o ineditismo de sua renúncia! Renunciou por amor à Igreja, que sempre a reconheceu como não sendo sua nem nossa. A Igreja é de Cristo! A Igreja é de Deus! E ele o sabia! Mas renunciou também por fidelidade ao Fundador, que, um dia, disse a Pedro: Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam, et portae inferi non prevalaebunt adversus eam (Mt 16,19).

Bento XVI foi um gigante na pregação e defesa da fé católica, pela qual consumiu todas as suas forças, do início ao fim da vida, para que grandes e pequenos pudessem saborear a alegria da experiência do encontro com Cristo. Diante de um mundo raivoso e apóstata, longe das sublimes exigências da dimensão da fé concreta, ele foi o último bastião de uma era. Portanto, rezemos pelo Papa Defunto, Bento XVI!

Que o Senhor da messe, a quem ele amou incondicionalmente, conceda-lhe contemplar nos céus a luz de sua face, dizendo-lhe: “Servo bom e fiel, entra na alegria do teu Senhor!” (Mt 25,23). Amém! (Dr. PGRS).

 


terça-feira, 3 de janeiro de 2023

 

Um padre na vitrine da Arquidiocese

 

 

Um dia, há muito anos, eu fui visitar o Pe. Raul com outro sacerdote que não o conhecia ainda, e ele ficou bastante entusiasmado com o reverendo. Depois, voltando para casa, ele me disse: “Rapaz, o Pe. Raul deveria ser colocado numa vitrine da Arquidiocese para admiração e inspiração do clero mais jovem e, sobretudo, dos seminaristas”. Contudo, infelizmente não é assim que, às vezes, a Instituição ver os padres mais avançados nos anos.

Eu tive o privilégio de ser coroinha do Pe. Raul, lá atrás, nos idos da década de setenta e oitenta, em Carira, e fui testemunha do seu zelo pastoral, ao dedicar-se incansavelmente ao pastoreio do rebanho que lhe fora confiado. Tanto que sou fruto de seu ministério sacerdotal naquelas terras tórridas e inclementes em tempos de seca prolongada, onde o duro chão nada fazia florescer, castigando, então, o sertanejo que até passava fome e tinha dificuldades para alimentar os filhos. Foram tempos sofridos no meio daquela gente, mas o Pe. Raul, no frescor da juventude sacerdotal, era uma motivação para a fé simples do povo. Carismático no sentido prático do evangelho, dedicado à cura das ovelhas, assistia espiritualmente, não apenas a sede paroquial, no caso, a matriz, mas se desdobrava para ir aos povoados, construindo capelas, pedido ajuda à própria comunidade, não deixando faltar-lhes oportunamente a missa nas localidades. Com ele, fiz a Primeira Comunhão! Também o acompanhei pelas redondezas, no verão, no inverno, nas estações de chuva, em meio aos riscos das estradas inundadas, etc. Ou seja, vi de perto seu desgaste pelo bem da comunidade.

Mais tarde, fui para o seminário menor de Aracaju, e, lá, fui seu aluno de latim, em 1987, quando ele se mudara para o Grageru, na capital. Na nova comunidade, assumindo a missão do pastoreio, igualmente revelou seus dotes como escritor e poeta, publicando livro de poemas. Homem da palavra fácil, ainda teve tempo de desenvolver a inteligência engenhosa para a pintura, uma obra de arte que exige criatividade e vislumbres pontuais da mente do artista. Pinturas em tela, com tinta; gravuras rabiscadas a lápis de cor ou apenas de grafite; tudo isso mostrava o gosto pela cultura polivalente que lhe rebentava na alma. Mais tarde, em 1996, voltou a Carira para preparar as minhas ordenações diaconal e sacerdotal. Fez tudo com muito carinho e generosidade, junto à comunidade. Seu “primogênito” tornava-se padre no dia 21 de janeiro de 1998. Há 25 anos!

Ao celebrar o Jubileu de Ouro Sacerdotal nos brindou com o livro “Cartas para Francisco”, em 2013, retratando, através de missivas endereçadas ao pobrezinho de Assis, suas preocupações pastorais no vicariato de Carira. Na verdade, um belo resgate de boas lições vividas como sacerdote. No final dessa obra, há uma coleção iconográfica de sua autoria que resume a história de São Francisco. Feita a lápis de cor, parecem figuras tridimensionadas pela percepção da acuidade do criador. Ainda há outras obras suas que não foram publicadas por falta de recursos pecuniários, inclusive uma que auxiliou muito a Ir. Morais na sua obra “Província Eclesiástica de Aracaju: Evangelizando para a vida” (2014). Sua colaboração foi muito valiosa, e a autora lhe agradeceu condignamente a generosidade da pesquisa.

Agora já octogenário, no dia 3 de janeiro de 2023, comemorou mais uma primavera, no alto de seus 86 anos de vida, e caminha para o sexagenário aniversário de ordenação sacerdotal, no dia 7 de julho do ano em curso. Vive numa casinha em Itabaiana, na solidão de seu peregrinar, ajudando no que pode às religiosas de um hospital, desgastando seus dias com alegria testemunhal e espírito de bom humor. Sim, sua pessoa deveria ser colocada na vitrine da arquidiocese de Aracaju, não somente para ser reconhecido como consagrado do Senhor, mas, também, elevado ao pedestal da dignidade do que foi sua vida derramada pela Igreja e pelos cristãos por onde passou. Enfim, um testemunho vivo, fiel e alegre do serviço ao Senhor. (Dr. Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos).