quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Somos livres, não, independentes...


Somos livres, mas não somos independentes...



O maior drama da criatura humana é não aceitar a condição do que ela é, quer dizer, de ser criatura. De fato, na raiz dessa recusa, dessa inadequação entre seu desejo de autossuficiência e a radical dependência de Outrem, está a origem de todos os dilemas da história da humanidade, de cada homem, de cada projeto de busca de felicidade. Dentre todos os seres criados e jogados dentro do universo visível das criaturas, só o homem pôde voltar as costas ao Criador. É o profeta Isaías quem o afirma, de modo contundente e sereno: “O boi conhece o seu dono, e o jumento, a manjedoura de seu senhor, mas Israel é incapaz de conhecer, meu povo não é capaz de entender. Ai da nação pecadora! do povo cheio de iniquidade! Da raça dos malfeitores, dos filhos pervertidos! Eles abandonaram o Senhor, desprezaram o Santo de Israel, afastaram-se dele” (Is 1,3-4). O profeta Isaías pinta com cores vivas e incandescentes a realidade na qual o homem está mergulhando desde que se rebelou contra seu criador. O povo de Israel, enquanto expressão da humanidade inteira, encarna e atrai sobre si o destino de todos os filhos de Adão. Racionalmente livres dentro do seu espírito, sua consciência vagueia entre o bem e o mal, o certo e o errado, a verdade e a mentira, o moralmente belo e o feio, entre a vida e a morte. A possibilidade de uma escolha livre foi o que o tornou prisioneiro de si mesmo, de sua liberdade, de suas inclinações para a própria maldade do coração. Paradoxalmente, sua liberdade o fez escravo. Querendo emancipação, encontrou escravidão.
Tudo isso está narrado no livro do Gênesis, o livro das origens, o primeiro livro da Bíblia. Deus criou tudo o que existe das coisas da natureza, viu que tudo “era bom” (Gn 1,10.12.18.25) e resolveu criar também o homem, coroando assim o trabalho criacional de seis dias, depois do que, vendo que tudo “era muito bom” (Gn 1,31), resolveu descansar. Diz o texto sagrado: “Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois de toda a obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou depois de toda a sua obra de criação” (Gn (2,2-3). “Descansar?” O relato bíblico fala do sétimo dia como sendo o sábado. Dia do repouso divino. Claro que a linguagem bíblica é simbólica e revela por trás de si a pedagogia divina da revelação, de Deus que se dá a conhecer às criaturas pelas próprias criaturas. A palavra do livro da Sabedoria é incisiva quanto a este ponto: “Sim, naturalmente, vão foram todos os homens que ignoraram a Deus e que, partindo de bens visíveis, não foram capazes de reconhecer Aquele que é, nem, considerando as obras, de reconhecer o Artífice. Mas foi o fogo, ou o vento, ou o ar sutil, ou a abóboda estrelada, ou a água impetuosa, ou os luzeiros do céu, os príncipes do mundo, que eles consideraram como deuses. Se, fascinados por sua beleza, os tomaram por deuses, aprendam quanto lhes é superior o Senhor dessas coisas, pois foi a própria fonte da beleza que os criou. E se os assombrou sua força e atividade, calculem quanto mais poderoso é Aquele que as formou, pois a grandeza e a beleza das criaturas fazem, por analogia, contemplar o seu Autor” (Sb 13,1-5). De fato, recorrendo ao início da filosofia grega, de um tempo em que os sinais da natureza eram vistos e aceitos como manifestação dos “deuses”, está a constatação daquilo que o homem primitivo via como animismo. Segundo o Dicionário Aurélio, o “animismo” é definido como “modo de pensamento ou sistema de crenças em que se atribui a seres vivos, objetos inanimados e fenômenos naturais um princípio vital pessoal, isto é, uma alma”. Assim, mais tarde, a mesma filosofia grega indicaria o estágio de superação desse tipo de mentalidade. Segundo Comparato, “No século V a.C., tanto na Ásia quanto na Grécia (o século de Péricles), nasce a filosofia, com a substituição, pela primeira vez na História, do saber mitológico da tradição pelo saber lógico da razão. O indivíduo ousa exercer a sua faculdade de crítica racional da realidade”. (Comparato, 2015, p. 21).
A partir da criação do homem, penso que Deus nunca mais descansou. Pelo contrário, desde então, vive correndo atrás da intimidade com sua criatura rebelde. Às vezes, sinto pena de Deus, porque parece que ele está perdendo para o homem em criatividade! Ele criou homem e mulher, masculino e feminino, e, agora, dizem que já há mais de 70 possibilidades de sermos algo diferente! Também me dá vontade de rir da “criatividade maligna” do homem. Tentando inverter a ordem criacional, o homem que fora criado à imagem e semelhança de Deus, agora procura um “deus” à sua imagem e semelhança. Foi, então, por inspiração do demônio que ele desejou ser igual a Deus, mas acabou imaginando poder criar o seu deus, um demiurgo à sua estatura pequena, tacanha, impotente e limitado. No entanto, refém de si mesmo, a sede humana de autonomia não dispensa o homem da necessidade de Deus. Por mais que as descobertas científicas encham seu espírito de orgulho e autossuficiência, de liberdade e sonhos, ele permanece na zona criacional de dependência e inclinação à finitude biológica e temporal diante do que ele também se debate sem alcançar o sucesso desejado.
Por conseguinte, desde o primeiro Adão até o último – querendo expressar dessa maneira a lista interminável de todos os seres humanos que habitaram a terra, em todos os estágios da duração da vida – a história da humanidade segue seu destino irrefreável na textura da criatividade com que pessoas geniais deram sua contribuição em todos os ramos das ciências, e das artes e das técnicas. Mas a genialidade humana é reflexo dos atributos divinos depositados dentro da inteligência de que a obra-prima da criação – a criatura humana – foi dotada. Inteligência, vontade e liberdade fazem parte da constituição que a luz da consciência projeta dentro do homem, permitindo-lhe dobrar-se diante de si mesmo e do seu Criador.
A inteligência ilumina o caminho da vontade, indicando a direção do voo para a liberdade. É a liberdade o que livra o homem de si mesmo, de suas armadilhas mais secretas, do calabouço de seus medos, da estranheza de suas inspirações, das tristezas da vida, da ilusão das incertezas, da tortura de pensamentos que o oprimem pelas ondas interiores das angústias, enfim, da prisão dos seus próprios receios.