quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Explicar Jesus Cristo

Explicar Jesus Cristo


Explicar Jesus Cristo! Que presunção terrivelmente provocativa! Mas essa é a missão da Igreja em sua pregação apostólica pelos séculos afora. Porém, como explicar Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado? Como fazer com que o seu pensamento, e, sobretudo, o mistério de sua vida humana e divina, preencha de claridade e certeza nossas inquietações mais profundas? Quem é Jesus Cristo? Por que deveríamos dar assentimento à pregação da Igreja? Embora com a possibilidade de intermináveis explicações, a brevidade do resumo do anúncio da Igreja traduzir-se-ia numa palavra: Cristo é o nosso Salvador! E de que é que ele nos salva? Ele salva-nos da perdição eterna.

Somente por meio de Cristo poderemos retomar o caminho do reencontro com Deus, uma vez que nos afastamos dele pela desobediência pecaminosa. Por isso que Cristo disse: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim” (Jo 14,6). Portanto, todo o esforço da Igreja em proclamar a verdade de Deus manifestada no Filho passa pelo horizonte translúcido de sua Pessoa. Nele nós somos refeitos na integridade mais recôndita de nosso ser dilacerado e disperso pelas consequências do pecado. Desafortunadamente, nem sempre a perspicácia de nossa inteligência permite-nos perceber com sinceridade interior a dura realidade do afastamento de Deus. Desse modo, cegos pela indiferença religiosa quanto às verdades de Deus sobre cada um de nós, fechamos os olhos à dramaticidade incisiva do pecado em nossa vida. Louvemos a paciência de Deus que espera a sinceridade de nossa conversão! O arrependimento é a chave que abre a porta da misericórdia divina e permite que Cristo habite nosso coração, iluminando toda a nossa existência com a intensidade de sua luz. Por isso que “o Senhor não tarda a cumprir a sua promessa, como pensam alguns, entendendo que há demora; o que ele está, é usando de paciência conosco, porque não quer que ninguém se perca, mas que todos venham a converter-se. [...]. Assim, esforçai-vos ardorosamente para que ele vos encontre em paz, vivendo vida sem mácula, irrepreensível. Considerai a longanimidade de nosso Senhor como a nossa salvação” (2Pd 3,9.14-15). Explicar Jesus significa anunciar o mistério de sua vida entregue em favor dos homens, seus irmãos na carne, a fim de que todos possamos participar de sua vida divina.

Com serenidade, mas com firmeza e coragem, de modo especial, diante de um mundo descrente, Cristo precisa ser anunciado com a mesma intrepidez e coragem do início da História da Igreja, logo depois de consumado no Filho de Deus o drama histórico de nossa redenção. A voz livre da Igreja deve ressoar sobre todos os telhados da vida dos homens, de modo que transforme, pela força interior do Espírito de Cristo, todas as dimensões secretas ou não da essência de seu ser restaurado por Cristo. Não por acaso, desde os primórdios da pregação apostólica, a abertura e o acolhimento à novidade de Cristo revestem-se da atitude da conversão: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos vossos pecados. Então recebereis o dom do Espírito Santo. Pois para vós é a promessa, assim como para vossos filhos e para todos aqueles que estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus chamar” (At 2,38-39). A verdade é que, de modo misterioso, todos somos chamados por Deus a tomar parte no processo de instauração de seu reino, cuja presença revela-se na Pessoa de Jesus Cristo, morto e ressuscitado. De fato: “Jesus, o Nazareu, foi por Deus aprovado diante de vós com milagres, prodígios e sinais, que Deus operou por meio dele entre vós, como bem o sabeis. Esse homem, entregue segundo o desígnio determinado e a presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o pelas mãos dos ímpios. Mas Deus o ressuscitou, libertando-o das angústias do Hades, pois não era possível que ele fosse retido em seu poder” (At 2,22-24). Eis porque o explicar Cristo inspira-se no dom sublime de sua existência humana entre nós. Mais do que isso: significa semear o mistério de sua ressurreição nas mortes cotidianas da nossa sociedade doente e depressiva nos porões de suas carências e insuficiências existenciais.

Ouvindo a pregação da Igreja, cada um deve esforçar-se no sentido da abertura ao Evangelho de Cristo. Do contrário, seria muito fácil aderir ao seu projeto de amor, sem lutar contra as incongruências pessoais que precipitam a vontade na fraqueza da indecisão. Daí que também nós devemos perguntar-nos sem medo da gravidade da resposta, que implica sempre aceitação ou recusa de Cristo: “Ouvindo isto, eles sentiram o coração traspassado e perguntaram a Pedro e aos demais: ‘Irmãos, que devemos fazer?’” (At 2,37). Se a pergunta for feita com honestidade de coração e de inteligência, sem a falsa pretensão da mera curiosidade, por certo, terá início o processo da conversão diante de Deus. O problema é que nem sempre nosso coração é sincero diante dos apelos divinos. Assim, vamos adiando o momento do comprometimento da adesão à fé, com a superficialidade própria dos incrédulos e interiormente vazios da convicção de suas razões para crer. Por conseguinte, vivemos o ateísmo prático disfarçado de fingida religião. Então, enquanto vamos tentando encontrar explicações racionais para nossas recusas, Deus apresenta-se por si mesmo, explica-se por si mesmo, colocando-se ao nível de nossa compreensão pelo seu rebaixamento até a nossa estatura. Sem deixar de ser Deus, manifestou-se sob forma humana, a fim de que pudéssemos ver o invisível e tocar o intocável, perceber o imperceptível e atingir o inatingível. Aliás, é justamente o contrário, aquele que esteve longe do nosso alcance, alcançou-nos pela misericórdia de sua bondade infinita. A cristologia paulina é muito clara nesse sentido: “Ele, estando na forma de Deus, não usou seu direito de ser tratado como deus, mas se despojou, tomando a forma de escravo. Tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em seu aspecto como um homem abaixou-se, tornando-se obediente até a morte, à morte sobre uma cruz” (Fl 2,6-8). Por meio do Filho, Deus se submeteu ao incômodo de ser igual à nossa natureza humana para que pudesse doar-nos a sua própria vida divina.

Na verdade, o preço de nosso resgate para Deus, o valor de nossa redenção, foi mostrado no corpo rasgado de Cristo, totalmente desfigurado e quebrado ao modo de nossas iniquidades, à semelhança de nossas chagas interiores. Explicar Cristo aos olhos de nossa fé é, pois, deixar-nos conduzir à consciência de que nos encontramos transformados nele, a ponto de participarmos de sua estrutura espiritual de “homem perfeito”, porquanto “a cada um foi dada a graça pela medida do dom de Cristo [...] até que alcancemos todos nós a unidade da fé de do pleno conhecimento do Filho de Deus, o estado de Homem Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4,7.13). Portanto, visto que “de sua plenitude todos nós recebemos graça por graça” (Jo 1,16), poderíamos externar nossa gratidão com o hino cristológico de São Paulo: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda sorte de bênçãos espirituais, nos céus em Cristo. Nele nos escolheu antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante dele no amor. Ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por Jesus Cristo, conforme o beneplácito da sua vontade, para louvor e glória de sua graça com a qual nos agraciou no Amado. E é pelo sangue deste que temos a redenção, a remissão dos pecados, segundo a riqueza de sua graça, que ele derramou profusamente sobre nós, infundindo-nos toda sabedoria e inteligência, dando-nos a conhecer o mistério de sua vontade, conforme decisão prévia que lhe aprouve tomar para levar o tempo à sua plenitude: a de em Cristo encabeçar todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra” (Ef 1,3-10).

Grande demais é o abismo do mistério com que Deus nos envolve na imensidão de seu amor e de sua misericórdia por meio de Jesus Cristo! Deixemos, pois, que Cristo se explique pessoalmente no mais profundo de nosso espírito renovado pelos dons sublimes de seu amor, transformando-nos no mais íntimo de nós mesmos. 

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A Singular História de Israel

A Singular História de Israel



Preparando-nos para a celebração do Natal de Jesus, os textos da Sagrada Liturgia vão conduzindo nossos passos na direção do Senhor que vem. Mas, os textos, também, recordam-nos os fatos maravilhosos que o Deus de Israel realizou em favor do seu povo, escolhido e eleito. Daí brota o fato extraordinário de Israel fazer parte da singular história em que o único Deus verdadeiro entra em contato com um povo, o seu povo. Assim, no meio das nações pagãs, Israel apresenta-se grande na sua dimensão histórica e espiritual por tornar-se o sinal vivo da aliança que Deus fez com toda a humanidade. Diante da complexidade que envolve o manto da religião de Israel no horizonte da teologia da revelação, não é o caso, aqui, de entrarmos em pormenores desnecessários quanto ao que, no momento, interessa-nos, isto é, a possibilidade de fazer alguns acenos relativos à Revelação de Deus ao seu povo, especialmente, à luz da Sagrada Escritura. Mesmo por que a história de Israel, como a encontramos na Bíblia, não a temos em nenhum outro registro dos anais dos povos antigos. Trata-se, realmente, também por esse aspecto, de uma história singular, particular, privilegiada pela bondade de seu Deus que não esquece o seu povo. 

Inicialmente, gostaria de trazer a lume um pensamento impetrante do profeta Isaías em que ele diz o seguinte: “Desde os tempos antigos nunca se ouviu, nunca se havia sabido, os olhos não tinham visto um Deus que agisse em prol dos que esperam nele, exceto a ti. Sim, tu te irritaste contra nós e, com efeito, nós pecamos, mas permaneceremos para sempre em teus caminhos e assim seremos salvos. Todos nós éramos como pessoas impuras, e nossas ações como pano imundo. Murchamos todos como folhas que secam, nossas transgressões nos levam como o vento. Não há ninguém que invoque teu nome, que se erga, firmando-se em ti, porque escondeste de nós tua face e nos abandonaste ao capricho das nossas transgressões. E no entanto, Iahweh, tu és nosso pai, nós somos a argila e tu és o nosso oleiro, todos nós somos obras de suas mãos. Não te irrites, Iahweh excessivamente, não conserves para sempre a lembrança do pecado. Olha, pois, para nós: somos todos teu povo” (Is 64,3-8). Pela citação, sabemos que o texto citado faz parte do conhecido Terceiro Isaías, cuja tradição faz remontar sua pessoa ao tempo depois de quando Israel havia sido exilado, distante de todos os bens que o Senhor lhe havia favorecido nos tempos de antanho, no correr da história de infidelidade e desobediência aos mandamentos divinos, aos propósitos perenes da aliança eterna. Num contexto mais amplo, o texto está inserido em circunstâncias cruciais para o povo eleito. É um texto tremendo e luminoso. O profeta lamenta a situação a que o povo se deixou arrastar por conta da infidelidade, do materialismo e do espírito de autossuficiência longe de Deus. Sem Deus, Israel apequena-se demais. 

Ao longo de sua história, Deus sempre tentou advertir Israel contra os perigos da idolatria, consequência do abandono de seu próprio Senhor. De modo mais incisivo, o povo era convidado a não esquecer o quanto o Senhor havia feito em seu favor, levando-o à consciência de sua memória histórica. De fato, Deus sempre carregou o seu povo em asas de águias: “Ele o achou numa terra do deserto, num vazio solitário e ululante. Cercou-o, cuidou dele e guardou-o com carinho, como se fosse a menina de seus olhos. Como a águia que vela por seu ninho, e revoa por cima dos filhotes, ele o tomou, estendendo as suas asas, e carregou em cima de suas penas. O único a conduzi-lo foi Iahweh, nenhum deus estrangeiro o acompanhou” (Dt 32,10-12). Era o modo como Deus lhe demonstrava carinho e proteção, de que Israel não deveria, jamais, esquecer-se. Sobretudo na fartura, Israel havia sido advertido: “Contudo, fica atento a ti mesmo, para que não esqueças a Iahweh teu Deus, e não deixes de cumprir seus mandamentos, normas e estatutos que hoje te ordeno! Não aconteça que, havendo comido e estando saciando, havendo construído casas boas e habitando nelas [...] que teu coração se eleve e te esqueças de Iahweh teu Deus que te fez sair do Egito, da casa da escravidão” (Dt 8,11-14). Eis, porém, o que acontecera: “Uma vez que não servistes a Iahweh teu Deus com alegria e generosidade quanto estava não abundância, servirá então o inimigo que Iahweh enviará contra ti, na fome e na sede, com nudez e privação total. Ele porá em teu pescoço um jugo de ferro até que sejas exterminado” (Dt 28,47-48). Mas, Deus é Deus, e não permitirá que Israel seja envergonhado, decepcionado, frustrado, diante das nações circunvizinhas. Israel reconhece seu pecado e sua falta, por isso que o profeta insiste, confiando na ternura, no amor e na misericórdia divinos: “Iahweh, tu és nosso pai, nós somos a argila e tu és o nosso oleiro, todos nós somos obras de suas mãos. Não te irrites, Iahweh excessivamente, não conserves para sempre a lembrança do pecado. Olha, pois, para nós: somos todos teu povo”. O grito quase desesperado do profeta implora a piedade de Deus para o seu povo. Não obstante tudo, aquele era o povo de Deus. 

Chafurdando na lama do pecado, Israel reconhece sua falta e espera na piedade de seu Senhor. Totalmente prostrado por conta do exílio na Babilônia, provocado pela infidelidade do povo que vai levado pela tirania inconsequente de Nabucodonosor, o estado de ânimo de Israel apresenta-se abatido, inconsolável, mas esperançoso. O Senhor não haverá de faltar-lhe justamente agora, pois o seu amor é sem fim, para sempre (Sl 118). Deportando de sua capital religiosa, longe do templo e das condições físicas e espirituais que favoreçam o louvor ao seu Deus, a reconstrução de Jerusalém quando do retorno do exílio é a mais viva expressão do quanto Israel precisa reencontrar-se na sua restauração interior. Tudo isso também é fruto de uma promessa divina, anunciada pela boca do profeta que clama a Jerusalém: “Põe-te em pé, resplandece, porque tua luz é chegada, a glória de Iahweh raia sobre ti. Com efeito, as trevas cobrem a terra, a escuridão envolve as nações, mas sobre ti levanta-se Iahweh e sua glória aparece sobre ti. As nações caminharão na tua luz, e os reis, no clarão do teu sol nascente” (Is 60,1-3). Apesar da humilhação diante dos povos inimigos, nem tudo está perdido para Israel, que se reconhece necessitado de seu Senhor, a quem ele se lembra de recorrer nas situações mais graves e penosas de sua dura existência enquanto povo teimoso, de dura cerviz. 

Por tudo isso, o povo de Israel é um povo feliz, mormente, quando reconhece sua radical dependência divina. Seu Deus não é invenção humana. O verdadeiro Deus de Israel, o nosso Deus bendito pelos séculos, não é criação de nossa mente vazia de explicações lúcidas e coerentes às razões da própria fé. O Deus de Israel é o Deus que se revela ao seu povo, a ponto de, na progressão histórica de sua epifania, de sua manifestação plena, visitar-nos na Encarnação do Filho. Por isso que a religião não é “um sonho da mente humana”, como afirmara Ludwig Feuerbach, citado por Rubem Alves, em que “vemos as coisas reais no fascinante esplendor da imaginação e do capricho... O homem – esse é o mistério na religião – projeta o seu ser na objetividade e, a seguir, faz-se objeto dessa imagem projetada de si mesmo, agora transformada em sujeito”. Tantos séculos passados, após a amarga experiência de Israel, não é que o cenário vivido pela humanidade, quanto ao desafio do abandono e da fé no Deus único, vivo e verdadeiro, tenha mudado muito. O homem farta-se de conhecimentos científicos e tecnológicos e pensa poder encontrar neles a segurança para sua vida, sua existência. Que o digam os métodos falidos e transtornados da economia global para os quais os grandes líderes mundiais tentam encontrar uma solução rápida e eficaz, sem o saber como. 

Mesmo que o Senhor da História não seja reconhecido como tal pelas manias ensandecidas da autossuficiência humana, ele continuará sendo o princípio e o fim de tudo. Todavia, sem ele, a humanidade seguirá, com desespero incontrolável e pânico paralisante, bordejando desenfreada em direção ao abismo profundo de sua autodestruição.





quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Traços da Teologia da luz

Traços da Teologia da Luz



No início do Advento e do novo ano litúrgico da Igreja de Cristo – Ele que é o caminho, a verdade e vida para o encontro definitivo com Deus – gostaria de refletir sobre alguns traços da “teologia da luz”. Na Sagrada Escritura, a concepção da claridade de Deus, que incide sobre a vida terrestre dos homens, é uma constante presença de cuidado e ternura, especialmente, quando os homens se sentem mergulhados nas trevas interiores por conta de sua infidelidade e do seu afastamento de Deus, que é a Luz por excelência. Na verdade, já nos albores da criação, Deus fez a luz, contrastando-a com a escuridão: “Deus disse: ‘haja luz’, e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz das trevas” (Gn 1,3). 

Comentando esse texto do livro do Gênesis, o pensamento de Santo Agostinho é muito complexo, e continua deixando-nos na escuridão da incompreensão de seu longo raciocínio, do qual cito apenas alguns questionamentos: “De que modo Deus disse: ‘Faça-se a luz’? No tempo ou na eternidade do Verbo [que é Cristo]? E se no tempo, certamente, de modo mutável; pois como é possível entender-se que Deus tenha dito isso a não ser por meio de uma criatura, visto que ele é imutável? E se Deus disse por uma criatura: ‘Faça-se a luz’, como a luz seria a primeira criatura se já existia uma criatura por meio da qual Deus disse: ‘Faça-se a luz’? Ou a luz não seria a primeira criatura, visto que já fora dito: ‘No princípio, Deus fez o céu e a terra, assim teria sido possível produzir-se a voz, por meio de uma criatura celeste de modo mutável e no tempo, pela qual Deus disse: ‘Faça-se a luz?”. Ou seja: o caudal de perguntas no texto de Santo Agostinho não nos leva a nenhum esclarecimento útil ao que pretendemos na brevidade desse discurso. 

Longe das elucubrações propostas pelo santo supracitado, mas, diante do mistério da salvação querida por Deus, luz e trevas são símbolos ou metáforas da graça e do pecado, da proximidade e do afastamento de Deus, da harmonia e do caos, do bem e do mal, da verdade e da mentira, do verdadeiro e do falso, do certo e do errado, enfim, de tantas outras categorias existenciais que envolvem a vida humana na penumbra do fascínio pelo paradoxo, pelo contraditório. Apenas no Antigo Testamento, o termo “luz” – em hebraico ’ôr – aparece 125 vezes nos mais variados contextos. Eis alguns exemplos: “Estendeu, pois, Moisés, a mão para o céu, e houve trevas espessas em toda a terra do Egito por três dias. Um não via o outro, e ninguém se levantou do seu lugar por três dias; porém, em toda parte onde habitavam os israelitas havia luz” (Ex 10,23-24); “Aquele governa os homens com justiça, governa como temor de Deus, é como a luz da manhã ao nascer do sol na manhã sem nuvens, que faz brilhar depois da chuva a grama da terra” (2Sm 23,3-4); “Esperei felicidade, veio-me a desgraça; esperei luz, veio-me a escuridão” (Jó 30,26); “Iahweh é minha luz e minha salvação: de quem eu terei medo?” (Sl 27,1); “Envia tua luz e tua verdade: eles me guiarão levando-me à tua montanha sagrada, às tuas Moradias” (Sl 43,3); “Tua palavra é lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho” (Sl 119,105); “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria” (Is 9,1); “Não terás mais o sol como luz do dia, nem o clarão da lua te iluminará, porque Iahweh será tua luz para sempre, e teu Deus será teu esplendor” (Is 60,19); “Não te alegres por minha causa, minha inimiga: se caí, levantar-me-ei; se habito nas trevas Iahweh é minha luz” (Mq 7,8). E tantos outros textos poderiam ser citados dentro dos limites do horizonte da “teologia da luz”, relacionada ao AT. De qualquer maneira, como vimos, em muitas circunstâncias literárias do livro sagrado, a luz identifica-se com o próprio Deus, que tira as criaturas da escuridão intensa das trevas que invade o seu universo interior. Há, na verdade, uma grande coincidência de significados profundamente teológicos nesse sentido. Deus é luz e nele não pode haver trevas. Por isso que a Bíblia afirma que para ele a noite é tão clara quanto o dia. 

No Novo Testamento, o mesmo vocábulo “luz” – em grego phōs – aparece somente 73 vezes, em contextos diversificados, como por exemplo: “Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte” (Mt 5,14); “O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do dia: o que vos é dito aos ouvidos, proclamai-o sobre os telhados” (Mt 10,27); “Porque meus olhos viram tua salvação, que preparaste em face de todos os povos, luz para iluminar as nações, e glória de teu povo Israel” (Lc 2,30-32); “Por isso, vê bem se a luz que há em ti não é treva” (Lc 11,35); “O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a apreenderam. Houve um homem enviado por Deus. Seu nome era João. Este veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. Ele era a luz verdadeira que ilumina todo homem; ele vinha ao mundo” (Jo 1,4-9); “Este é o julgamento: a luz veio ao mundo mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas obras eram más. Pois quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus ” (Jo 3,19-21); “Ele [João] era a lâmpada que arde e ilumina e vós quisestes vos alegrar por um momento, com sua luz” (5,35); “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12); “Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo’ (Jo 9,5); “Por pouco tempo a luz está entre vós. Caminhai enquanto tendes luz, para que as trevas não vos apreendam: quem caminha nas trevas não sabe para onde vai! Enquanto tendes a luz, crede na luz, para vos tornardes filhos da luz” (Jo 12,35); “Eu te estabeleci como luz das nações, para que sejas portador de salvação até os confins da terra” (At 13,47); “A noite avançou e o dia se aproxima. Portanto, deixemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12); “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor: andai como filhos da luz, pois o fruto da luz consiste em toda bondade e justiça e verdade. Procurai discernir o que é agradável ao Senhor e não sejais praticantes das obras infrutuosas das trevas, antes denunciai-as, pois o que eles fazem em oculto até o dizê-lo é vergonhoso. Mas tudo o que é condenável é manifesto pela luz, pois é luz tudo o que é manifesto” (Ef 5,8-14); “Esta é a mensagem que ouvimos dele e vos anunciamos: Deus é luz e nele não há trevas” (1Jo 1,5); “Já não haverá noite: ninguém mais precisará da luz da lâmpada, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e eles reinarão pelos séculos dos séculos” (Ap 22,5). 

Certamente, cada expressão colhida no AT ou no NT, poderia encher muitas páginas de reflexão e sabedoria bíblicas, concernentes ao mistério da luz divina, no sentido de apanharmos a riqueza de sua conotação e aplicabilidade frutuosa de sua compreensão diante do agir humano. De fato, como afirmara Santo Agostinho, a noite é a mãe do pecado. Com efeito, trata-se de uma tradução perfeita do pensamento de Cristo que disse: “Quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus”. Tais palavras são verdades cruciais e perenes para a consciência humana, diante das quais o racionalismo moderno prefere fechar-se para não se comprometer com os riscos de seu reconhecimento, de sua aceitação. Por isso que nós elegemos o comodismo da indiferença à leitura e vivência da palavra de Deus. E o que é pior: às vezes, imaginamos que, por desconhecermos os preceitos divinos com consciência e livre vontade, estaremos isentos de acusações e culpabilidades. Daí o fato pelo qual damos tanta atenção às luzes mortas e apagadas que enfeitam nossas casas e cidades, esquecendo-nos da verdadeira luz, que deveria brilhar, intensamente, não na coloração opaca de nossos enfeites natalinos, mas, dentro de nosso próprio coração. 

Sim, Ele virá mais uma vez na celebração de seu Natal para sacudir as consciências adormecidas pelo torpor da indiferença, do comodismo, da insuficiência própria de sua distração e acuidade existencial.


terça-feira, 15 de novembro de 2011

Apartai-vos de mim, malditos!!

Apartai-vos de mim, malditos! 



Na solenidade de “Jesus Cristo Rei do universo. Cristo, Senhor dos tempos e dos homens”, o Evangelho apresenta-nos o que acontecerá no final dos tempos, quando, como diz São Paulo, “todas as coisas estiverem submetidas a ele, então, o próprio Filho se submeterá àquele que lhe submeteu todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,28). De fato, Deus está no princípio e no fim de tudo. Ele é o A e o Z, o alfa e o Ômega. A palavra de São Paulo é uma das mais profundas quanto ao fato de que, tudo o que foi submetido a Cristo por Deus, o seu Pai bendito, no tempo escatológico, também ele se submeterá ao Pai. 

No último domingo do Tempo Comum da Liturgia da Igreja, todos os textos apontam para uma realidade futurista, escatológica, de final de cena do projeto criacional divino, mas, esse momento não acontecerá sem a devida incidência nas vicissitudes atuais da história do homem. Muito pelo contrário, o esforço da pregação da Igreja de Cristo é justamente no sentido de que, durante sua permanência na terra, os homens se preparem espiritualmente para o grande confronto final com as realidades de sua própria existência. Sabiamente, a Igreja, preparando-se para mais um novo ano litúrgico, que se inicia com o primeiro domingo do Advento, coloca no topo de suas celebrações litúrgicas Aquele que é o Senhor de tudo e de todos. Com efeito, como reconhece o Concílio Vaticano II, “a Liturgia é o cimo para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte donde emana toda a sua força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se tornaram filhos de Deus pela fé ou pelo batismo, se reúnam em assembleia, louvem a Deus na Igreja, participem no sacrifício e comam a Ceia do Senhor” (Sacrosanctum Concilium, n. 10). É, pois, na liturgia da Igreja que se realiza a plenitude do mistério da presença de Deus e de Cristo no seio da comunidade de fé. Todavia, a fé celebrada na Liturgia da Igreja deve estender-se pela vida afora do cristão, não apenas levando a todos as maravilhas realizadas no culto divino, mas, de igual modo, permitindo que o amor recebido pela ação litúrgica seja manifestado a todos os homens, especialmente, aos pobres e marginalizados por tantas barreiras do separatismo social que macula a sua dignidade. Dar pão a quem tem fome, vestir os nus, dar de beber aos sedentos, acolher os estrangeiros – tal e qual Israel também habitou em um país estrangeiro, no Egito – visitar os presos, entre tantas outras possibilidades de estender a mão ao próximo, tudo isso é exigido por Cristo se quisermos ouvir, diferentemente do “apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos”, o “vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo” (Mt 25,31-46). 
Levando em consideração essa palavra forte de Cristo, muitos santos deixaram-se levar e mover-se por suas motivações interiores mais profundas na direção dos irmãos mais necessitados, marginalizados e colocados de lado pela sociedade gananciosa e opulenta, que olha para os irmãos com indiferença. Testemunhos bonitos e recentes, temos nas Beatas Madre Tereza de Calcutá e a Irmã Dulce dos Pobres. Nelas, o testemunho do amor ao próximo é uma mistura inseparável de coragem e fé. Muitas dificuldades são interpostas no caminho do amor aos pobres, aos portadores de necessidades especiais, sejam eles com obstáculos permanentes ou circunstanciais. Conta-se que, certa vez, em 1982, Madre Tereza quis visitar o Líbano num momento em que se combatia duramente muitos “deficientes” – o conceito mudou tanto a esse respeito, que, para não correr o risco do preconceito, é melhor colocá-lo entre aspas, assim deixamos a interpretação ao leitor – em Beirute. Muitos não estavam de acordo com sua ida, por conta do grave perigo que ela poderia correr. No entanto, aos que a desaconselhava, ela mostrava-lhes uma vela diante da qual havia uma imagem de Nossa Senhora “Rainha da Paz”. E ela afirmava: “Em Beirute, acenderei e rezarei à Nossa Senhora, a fim de que o cessar fogo venha proclamado”. Desse modo, pontualmente, entre os dias 12 e 15 de agosto, festa da Assunção de Nossa Senhora ao céu, as milícias contrapostas declaram uma trégua, de maneira que Madre Tereza pode transportar mais de setenta doentes, todos mulçumanos, a um lugar de recuperação em Beirute. Com certeza, o segredo dos santos é a convicção de que eles não estão sozinhos no seu agir fraterno e missionário. Cristo mesmo os acompanha como confirmação constante de sua promessa: “Eis que eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). 

O fato é que o amor verdadeiro, inspirado na própria caridade de Cristo por todos os homens, inclusive, por aqueles que se consideram autossuficientes e, portando, não necessitados do seu amor, não mede esforços, e se entrega generosamente à aventura e ao desafio da entrega de si mesmo. Sim, mais do que doar coisas, feliz e beato diante de Deus, é aquele que consegue doar-se a sim mesmo sua – sua vida, seu tempo, seus bens mais preciosos, sua generosidade – desgastando-se, no tempo e na história, em favor dos irmãos, pois foi isso o que Cristo fez por mim, por você, caro leitor, e por todos nós. Para Madre Tereza, ajudar os pobres era uma maneira de trazer luz aos que viviam na mais completa escuridão. Outro exemplo salutar e edificante de amor ao próximo, encontramos na Beata irmã Dulce dos Pobres, “o anjo bom da Bahia”. Muito justo o título que lhe deram por ocasião de sua beatificação, visto que nem todo mundo está disposto a fazer o que ela fez, recolhendo tantos irmãos pelas ruas da indigência e da miséria, para dar-lhes acolhimento, carinho, amor, dignidade. Eis, aí, o seu depoimento: “Muita gente acredita que não devemos dar aos pobres a mesma atenção que damos às outras pessoas. Para mim, o pobre, o doente, aquele que sofre, o abandonado, é a imagem de Cristo [...]. Se virmos o pobre com esses olhos, o seu exterior, o estar sujo, cheio de parasitas, com grandes chagas, não nos incomodará, pois na sua pessoa está presente o Cristo sofredor [...]. Cada um de nós não gostaria de ser bem recebido, de ser bem tratado? E o pobre não possui o direito de ser bem acolhido, de receber todas as atenções espirituais e materiais? [...] Fazemos muito por eles? Eu pergunto: é muito o que fazemos por Deus?”. 

Os santos são, assim, perdidos de amor por Deus e pelos irmãos, sem se amedrontar nem se acovardar diante das reações negativas e inesperadas dos inimigos que atravessam na encruzilhada do amor cristão, isto é, vivido por Cristo, porquanto “cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). O efeito contrário dessa verdade de Cristo também tem suas implicações na omissão flagrada e surpreendida na inoperância da vivência cristã. Ou seja, não é somente a pobreza espiritual de nossa humanidade que Cristo assume no seu rebaixamento a cada pessoa humana. Ele também se reveste da pobreza material que leva muitos de nossos irmãos a perderem as condições necessárias à superação de suas dificuldades, sobretudo, no que diz respeito à sua própria dignidade. Nunca na história humana, alguém ousou dizer que estaria nos presos, nos doentes, nos famintos, nos despidos de sua dignidade. Consequentemente, o desprezo aos necessitados, aos pobres, é o retrato vivo do vilipêndio ao mesmo Jesus. Assim, Cristo apresenta-nos uma palavra dura e muito radical: “Apartai-vos de mim, malditos!”. A lógica de Cristo é diferente da lógica humana, por isso precisamos estar mais atentos aos fundamentos do amor a Deus, que se expressa, de modo incisivo e radical, no amor ao próximo. Quem vive sem Deus não poderá nunca olhar o outro como próximo, muito menos como irmão. E esse é o sintoma mais contundente e grave que encontramos na sociedade moderna tão violenta e distante de Deus. 

O Papa Bento XVI tem razão quando, falando da “comunhão”, assevera: “A comunhão tem sempre e inseparavelmente uma conotação vertical e uma horizontal: comunhão com Deus e comunhão com os irmãos e irmãs. Essas duas dimensões encontram-se misteriosamente no dom eucarístico. ‘Onde se destrói a comunhão com Deus, que é comunhão com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo, destrói-se também a raiz e a fonte da comunhão entre nós. E onde a comunhão entre nós não for vivida também na comunhão com Deus-Trindade não é viva nem verdadeira’”. Numa palavra, os pequeninos de Cristo somos todos os homens que devemos amar-nos e acolher-nos reciprocamente, se quisermos participar da plenitude de seu reino nos céus. De fato, o amor fraterno e gratuito é o passaporte para o reino de Cristo no céu. Reflita, pois, com sinceridade, sobre suas atitudes cotidianas de amor em relação aos seus circundantes, e tente ser melhor com eles.



domingo, 13 de novembro de 2011

Morrer antes de morrer...


Morrer antes de Morrer 



Caro leitor, você já parou para pensar como deveria ser o seu velório? Ou melhor, quem seriam as pessoas que deveriam aparecer lá para o último adeus? Que assunto estranho e bizarro, hein? Mas, caiamos na real: mais cedo ou mais tarde, o fatídico dia chegará para todos nós. Esse dia chegará para seus amigos mais próximos, para seus parentes, seu pai, sua mãe, seus irmãos e irmãs, enfim, chegará também para você, queira ou não queira. Sim, nossa beleza, nossa juventude, nossa feiúra, nossos aleijões, tudo o que somos e temos será engolido pelo bocado definitivo da morte. Como em relação a algumas amizades já perdidas na poeira do tempo, nosso coração desenganado deve serenar-se diante da ideia da morte. Então, não custaria a gente colocar a massa cinzenta para funcionar, fantasiando a visibilidade do que deveria ser o nosso “ciao” ao mundo. Que tal pensar como seria se a gente pudesse morrer antes de morrer, somente para descobrir as figuras indesejadas presentes às condolências derradeiras dadas aos nossos parentes no final do existir? 

Se a gente morresse antes de morrer, talvez, pudéssemos descobrir algumas pessoas distraídas que passaram a vida inteira tentando dizer que nos amavam, sem nunca ter tido a coragem de manifestá-lo por conta dos atropelos acidentais do querer bem. Sim, querer bem é muito complicado na terra dos vivos. Na terra dos mortos, não sei como seria a possibilidade de externar o belo sentimento da amizade. O fato é que a contramão dos sentimentos provoca acidentes inesperados e, às vezes, traumáticos. Para os adultos, não é possível a manifestação do amor como fazem as crianças na simplicidade amorosa de seu jeito inocente de ser. O amor das crianças é um amor despretensioso, desinteresseiro. No mundo da indiferença, é preciso que, vez por outra, saímos do circuito cansativo dos afetos sem expressão, sem vida, sem cumplicidade ou parceria. Quer ficar bom ou virar santo? Morra ou se mude! As pessoas distantes, talvez, não agradeçam ou o esqueçam mais depressa ainda, mas, você vai sentir-se melhor. Claro que no nosso universo imaginativo, a morte pode não ser real nem deva acontecer em algum lugar geográfico ou temporal, mas, na interioridade de cada um. Na verdade, ela pode estar presente na intenção de mudança, no desejo de transformação e abertura a novas maneiras de relacionamentos. Trata-se de atitudes de morte, de mudança. Não podemos fazer viagens maravilhosas no interior de nós mesmos? Então, podemos mudar-nos para bem longe da rotina cotidiana e enfadonha dos falsos amigos que não gostaríamos de reencontrá-los em nosso velório. O problema é que o morto não tem vontade. O melhor seria fazermos a lista dos presentes antes do empacotamento fúnebre. Mas, como isso seria possível? Realmente, ninguém se prepara para morrer como somos preparados para nascer, ou para sermos acolhidos ao nascimento. Aliás, Rubem Alves fala da “morienterapia”. Qual seria o seu conceito para esse vocábulo? Falando sobre “a morte e o morrer”, assim se expressa ele: “A ‘reverência pela vida’ exige que sejamos sábios para permitir que a morte cheque quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à abstetrícia: a morienterapia, o cuidado com os que estão morrendo. A obstetrícia é a especialidade que recebe a vida quando ela chega. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe das UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a Pietà de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe, o morrer deixa de causar medo”. Sua reflexão tenta trazer um pouco de alívio e suavidade à problemática suscitada pela necessidade do morrer com dignidade, mas, não sei até onde a sua “morienterapia” deixaria os moribundos serenos se a certeza da finitude próxima causa profunda angústia existencial, interior. Precisaríamos estar mais sonolentos do que acordados para viver com suspeita serenidade a terapia do morrer. Não por acaso, já disseram que o sono é o irmão da morte. Ademais, mesmo em situações limites da contingência humana, ninguém morre pensando que vai morrer, mas somos obrigados e constrangidos a aceitar o rito da passagem indesejada, e fazemo-lo sem querer e, totalmente, contrariados. 

Se na vida, as pessoas se indispõem por qualquer motivo, na morte, tudo poderia ser o fechamento de círculos temporais vencidos pela caducidade dos relacionamentos. Na indisposição recíproca, infelizmente, as pessoas carregam as mágoas pelos dias afora, pelos meses, pelos anos. Precisaríamos descobrir uma terapia eficaz para as mazelas do espírito, para as nódoas psicológicas da alma. O pior é que nem sempre conseguimos encontrar uma saída justa, favorável, à reaproximação das pessoas feridas, machucadas, ofendidas, injuriadas. Os antídotos da alma não são remédios encontrados na farmácia da esquina, e a criatividade da recomposição do estado de ânimo bate à porta da superação sem muita eficiência regenerativa. Para a psicologia, é importante que as pessoas se sintam amadas, acolhidas, sem discriminação nem preconceito. Por isso que a indiferença e o desprezo não aparente têm levado muitos à depressão, ao alheamento circunstancial de tudo que os envolve. 

Velório é festa de ninguém, ou de todo mundo que não é convidado. Qualquer curioso pode entrar sem ter sido convidado. Quando eu estive em Londres, onde passei alguns dias, contaram-me que na Inglaterra havia morrido uma senhora que tinha deixado toda a sua riqueza para a primeira pessoa que assinasse o livro de presença em seu velório. Por acaso, passou por lá um bêbado, que resolveu registrar-se no livro. Ele foi o primeiro a registrar o seu nome lá. Resultado, ganhou a fortuna da velha senhora que não tinha parentes. De fato, ela fora encontrada morta em sua habitação, sem que ninguém estivesse cuidando dela. É, na Inglaterra, defunto tem vontade. Se fosse no Brasil, com tanta gente corrupta, arrogante e estúpida, jurando inocência, e pensando não poder ser, jamais, abatida pelo redemoinho violento das denúncias, duvido que aquele “bebum” visse a cor da herança. Com certeza, dar-se-ia um jeito de esconder os haveres da morta com o embrulho corrompido do testamento. Todavia, os ingleses possuem o senso da honestidade, pelo menos, naquela época, em que a corrosão da unidade monetária ainda não tinha elevado o nível da pobreza em toda a Europa. 

Outro caso curioso, sobre o senso da honestidade dos ingleses, contou-me um amigo na mesma ocasião. O fato aconteceu com ele. Até parece piada, mas, não o é. Então, ele contou que, certa feita, ele fora buscar uma lata de refrigerante em uma daquelas máquinas que vomitam o recipiente com o líquido desejado, depois de depositadas algumas moedas ou cédulas. E a máquina inteligente também calcula o troco e oferece-o ao cliente. No caso desse amigo, a máquina ficou com tudo. Não entregou nem o refrigerante nem o troco. Por conseguinte, ele refletiu e pensou: “Que devo fazer, se fui roubado por esse latão?”. Não pensou mais duas vezes, e procurou a polícia. Era um direito seu, receber a bebida solicitada e pedir o troco. A polícia foi ao local, abriu a máquina enganadora, e não encontrou nenhum dinheiro colocado ali. Até hoje não sabemos que fim levou a referida pecúnia. No entanto, a polícia, não desconfiando do cidadão, perguntou, mais ou menos, qual teria sido a hora em que ele visitara a máquina. Imediatamente, foram ao terminal de câmeras, que registraram o momento, fizeram a devida observação, aproximando a imagem, e, tendo constatado a quantia que fora colocada na máquina, a polícia pegou uma nota, de igual valor, e entregou-a ao meu amigo. Para quem não sabe, Londres é uma das cidades mais vigiadas do mundo. Até pouco tempo, ela detinha mais de sessenta por cento de todas as câmeras do resto do mundo. Quando o brasileiro chegar a esse nível de honestidade, precisaremos trocar o nome da nação. No entanto, ao tempo em que isso não acontece, que país vergonhoso, o nosso. Quem rouba para comer vai preso, e os ladrões de colarinho branco ou colorido continuam soltos, levando a melhor. Porém, voltando ao propósito inicial do “morrer antes de morrer”, pelo menos, a morte é honesta com todos os mortais. Ela não trai nem engana ninguém. 

A verdade é que nenhum homem é capaz de viver plenamente a vida sem pensar na morte, ou melhor, sem vislumbrar o horizonte circundado e banhado da luz que o aparente pôr do sol tenta esconder-lhe sem o conseguir. Nem sei se deveríamos decidir o como morrer. Talvez, assim, na roça, sob o alpendre de uma casa velha no meio do mato, refesteladamente cômodos e lúcidos, numa cadeira de balanço, bem velhinhos, num final de tarde de primavera, com a chuva fina caindo entrecortada pela luminosidade dos raios do sol se pondo, enquanto fosse sentida uma brisa leve, mágica, tênue, empurrada pelo sopro frio da morte, depois do que, ela dar-nos-ia o abraço letal, mortífero... Silêncio! Epitáfio! Túmulo sombrio e emudecido pela bruma esperada do anoitecer definitivo da existência na terra.