terça-feira, 30 de setembro de 2014

Verbum Domini et responsabilitas christianorum!


Verbum Domini 
et responsabilitas christianorum 

 

Verbum Domini et Responsabilitas Christianorum! A Palavra de Deus e a responsabilidade dos cristãos! Terminando setembro, considerado no Brasil como “o mês da Bíblia”, somos convidados a refletir sobre ela em relação à responsabilidade dos cristãos diante de seus compromissos com o Senhor. A verdade é que enquanto mais nos aproximados da Sagrada Escritura mais nos colocamos diante de Deus, sobretudo, por meio de Jesus Cristo, Sua Palavra por Excelência. Foi São Jerônimo quem disse: “Ignorar a Sagrada Escritura é ignorar a Jesus Cristo!”. É, pois, do conhecimento de Cristo que brota toda a responsabilidade dos cristãos em face de sua Palavra. Esse santo nasceu na Dalmácia (340-430), e foi contemporâneo de Santo Agostinho, um dos maiores luminares pensantes do Catolicismo do primeiro milênio, e outro grande estudioso da Bíblia. 

 


Foi por meio de uma cantilena da Sagrada Escritura, no jardim de sua casa, que Agostinho se converteu depois de muitas andanças pelas estradas da vida e das sendas dialéticas da Filosofia, tentando saciar sua sede de Verdade. Ele estava chorando profundamente, quando no meio do desespero ouviu uma voz que lhe dizia: “Tolle Lege” – “Toma e lê!”. Abrindo a Bíblia, seus olhos caíram sobre a passagem da Carta de São Paulo aos Romanos: “Andemos honestamente, como de dia; não em glutonarias, nem em bebedeiras, nem em desonestidades, nem em dissoluções, nem em contendas e inveja. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não tenhais cuidado da carne em suas concupiscências” (Rm 13,13-14). [Por considerar essa tradução meio obscura, gostaria de apresentar outra, de tradução livre, do versículo 14: “Mas revesti-vos do Senhor e não concedais indulgências, concessões, à carne, seguindo seus impulsos desenfreados”; “dando atenção à carne para não fazer os seus desejos ou suas concupiscências”]. Em seguida à leitura, seus olhos interiores se abriram, suas dúvidas se dissiparam, e ele se deixou batizar por Santo Ambrósio, Arcebispo de Milão, que muito o ajudou em seu processo de conversão a Deus. Sua mãe, Santa Mônica, havia chorado por trinta anos esperando aquele momento. Sinal de que a oração das mães tem peso diante do Senhor. Oração feita de perseverança e confiança na bondade divina. São Jerônimo realizou estudos literários em Roma onde se fez batizar, depois quis abraçar a vida monástica e se dirigiu para o Oriente, sendo ordenado sacerdote. Voltou a Roma como secretário do Papa Dâmaso e, ao mesmo tempo, encarregou-se de trabalhar a revisão latina da Bíblia, promovendo, de igual modo, a vida monástica. Mais tarde, estabeleceu-se em Belém onde viveu 28 anos, estudando a Bíblia e ligado aos acontecimentos da vida e às necessidades da Igreja. Entre as muitas obras que escreveu, há muitos comentários à Sagrada Escritura. Hoje, apesar de muitos pensarem que a Bíblia é um livro de propriedade particular de alguns pastores ou até mesmo de padres e bispos, de religiões oficiais ou de seitas anônimas – que nem conhecemos – a Sagrada Escritura é fruto do labor do Catolicismo nascente, desde os primeiros séculos da era cristã, que a acolheu integralmente, até os nossos dias. Foi somente depois de Martinho Lutero (1483-1546), que outros grupos cristãos se recusaram aceitar a tradição apostólica, sob a autoridade do Papa, para excluir alguns livros ou partes de textos da Bíblia, acatando apenas os livros antigos presentes na Bíblia dos judeus e, claro, todo o Novo Testamento. 

 
 Santo Agostinho 

Como para os santos também para nós o caminho da conversão é uma luta diária, de cada instante de nossa vida. Como costumo dizer, por uma comparação que me parece muito oportuna e significativa, o processo de conversão é como retirar o lixo da cozinha de nossa casa, quando pensamos que tudo está já purificado e limpo, tudo se completa de sujeira e mais lixo. E recomeçamos a limpeza. Ou seja, é um processo que não termina nunca durante a existência humana inteira. Infelizmente, há pessoas que gostariam de encontrar nos cristãos os anjos que não são nem podem ser antes da travessia. Somente no céu é que seremos como os anjos, segundo o testemunho do mesmo Cristo (Mc 12,24-25). O Credo Católico nos ensina que foi por causa de nós homens – isso quer dizer a humanidade inteira – e por causa da nossa salvação – “qui propter nos homines et propter nostram salutem descendit de coelis” – que Jesus desceu do Céu e se encarnou no seio da Virgem Maria. Portanto, temos de lutar contra nós mesmos, contra nossos vícios e pecados, mas também contra nossos opositores. É São Paulo quem nos orienta: “Somente deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho de Cristo, para que, quer vá e vos veja, quer esteja ausente, ouça acerca de vós que estais num mesmo espírito, combatendo juntamente com o mesmo ânimo pela fé do evangelho. E em nada vos espanteis dos que resistem [os opositores da nossa fé], o que para eles, na verdade, é indício de perdição, mas para vós de salvação, e isto de Deus. Porque a vós vos foi concedido, em relação a Cristo, não somente crer nele, como também padecer por ele, tendo o mesmo combate que já em mim tendes visto e agora ouvis estar em mim” (Fl 1,27-30). De fato, os cristãos não podem ficar escondidos conforme o indicativo de Jesus: “Vós sois o sal da terra, vós sois a luz do mundo. Uma cidade não pode ficar escondida no cimo de uma montanha... Assim vossa luz deve brilhar diante dos homens de modo que pelas vossas obras, eles glorifiquem o vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,13-16). É, pois, da intimidade com Cristo que procede a sua responsabilidade. Sua luz, brilhando sobre os cristãos, deve resplandecer sobre o mundo como reflexo do próprio Senhor que se transfigura em cada batizado em seu Nome. 

 


Nesse contexto de envolvimento com Cristo, por meio de sua Palavra, devemos considerar também que, mesmo se escondido na pobreza ínfima dos desejos humanos de felicidade e plenitude, está também presente, subjacente no fundo da alma cristã, o anseio do encontro e da intimidade profunda com o Senhor. Se assim não o fosse, qual seria, então, o sentido de nossas buscas, de nossas sedes mais recônditas? Tentamos encontrar o caminho certo e não o conseguimos porque, entremeados por tantas dificuldades de raciocínio e de ação, nos desviamos do próprio Caminho que é Jesus que disse: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida!” (Jo 14,6). Ficamos dispersos na estrada, entretidos com coisas supérfluas e desprezíveis, enquanto o Senhor nos espera no fim da caminhada. Todavia, nem por isso devemos diminuir a marcha se nos sentimos cansados, desiludidos, frustrados com nós mesmos, ou desacelerar o pedal de nossas inquietações interiores. Não é porque não chegamos lá ainda que devemos desistir. Não é porque somos infiéis a Deus e à Sua Palavra pelas incoerências das atitudes que devemos deixar de pedir o auxílio do Senhor, sua ajuda bondosa, na direção d’Ele mesmo. Foi São Paulo quem disse, talvez, para motiva ainda mais: “Onde quer que tenhamos chegado, continuemos na mesma direção”. Cristo é a nossa direção definitiva, última, suprema. 

 
 Nas exéquias de São João Paulo II 
O Evangelho esfolheado pelo vento, como esfolheou sua vida inteira

Um dia, um rapaz briguento, atrevido, e ainda mais indiscreto, que sempre gostou de insultar e cutucar a minha fé e a minha religião, afirmou de modo irônico que uma atriz ou cantora famosa, cujo nome nem quis decorar, dissera que os cristãos não são maioria no mundo e, no entanto, eles se consideravam e se julgam os donos da verdade, que eles estavam no caminho certo, enquanto o resto da população mundial, a maioria esmagadora, vive de maneira errada. Assim ela quis deixar a entender que minoria não é sinônimo de verdade. E ela tinha razão! Mas a maioria também não o é. Porém, o que ela se esqueceu de dizer foi que os cristãos – a “minoria” à qual ela se referia – não possuem ideias próprias, não são senhores de si mesmos, mas se identificam e estão ligados pelo único eixo que os une pelos ideais de vida espiritual centrados em Cristo. Ele é o eixo da vida dos cristãos. Desse modo, a “maioria” vive desenraizada, assumindo por conta própria e risco os caminhos de “doutrinas diversas e estranhas” (Hb 13,9). Como diz Dom Henrique Soares da Costa, Bispo da Diocese de Palmares – e eu gosto sempre de escutar e dizer para mim mesmo – os cristãos não são melhores nem piores, mas devem ser diferentes. Com efeito, como assevera São Paulo, pregando entre outros aos pagãos no Areópago de Atenas, numa cidade repleta de ídolos, “é em Cristo que nós vivemos, existimos [nos movemos] e somos” (At 17,28). E isso envolve o ser todo da pessoa mergulhada com Cristo nas águas santificantes de seu amor e redenção.  
 


Deus, que concedeu a São Jerônimo “uma consciência viva e penetrante da Sagrada Escritura”, conceda-nos também o desejo de nos nutrir, cada vez mais, do alimento de sua Palavra, fonte de vida e fruição perene dos benefícios espirituais que somente o Bom Deus poderia nos comunicar por meio de Jesus, seu Divino Filho. Amém! 

 

São Jerônimo, Rogai por nós!


segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Israel: a Terra da Bíblia


Israel: A Terra da Bíblia


 


Israel é a Terra da Sagrada Escritura para aonde o “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó” projetou e realizou a grande aventura da história do seu Povo, o Povo de Israel. Durante séculos, Ele o preparou para uma epopeia santa, sem precedentes na história antiga da região. Tão poderoso, com seu braço forte e santo, estendido para abençoar e proteger o povo escolhido, a porção de sua herança, ele mesmo se encarregou de levar adiante todos os seus projetos de amor e fidelidade incondicional à Aliança estabelecida com o seu povo para sempre. É por isso que nós lemos, muitas vezes, sem entender bem, a expressão “Deus é fiel!”. O povo peca e se afasta do seu Senhor, se rebela, protesta contra seu Deus e o seu servo Moisés. Arrepende-se, e volta atrás, mas o Deus Todo-poderoso não se cansará jamais de manifestar seus carinhos de Pai. E as portas de seu amor se arrebentaram, de modo escandaloso e definitivo, na Pessoa do Seu divino Filho, Jesus Cristo, cuja vida histórica teve lugar em Israel, em Jerusalém. Jesus não foi um fantasma inventado pela fantasia da história dos homens para a “consolação interior de um pequeno grupo de fiéis”. O texto sagrado, especialmente, do Novo Testamento, fala de lugares e personagens reais, que compõem o mosaico da história universal dos Impérios que dominaram o mundo. Mas Ele não foi reconhecido pelos poderosos desse mundo, porque o seu “Reino não era desse mundo” (Jo 18,36). É, pois, na Terra da Palavra que melhor podemos compreender o alcance concreto da imolação de Deus mesmo pela humanidade inteira, libertando-a do pecado e da morte eterna, pelo testemunho inaudito da Ressurreição de Jesus. O túmulo vazio ainda nos surpreende pela vontade que temos de reencontrar o Senhor ali. Imaginamos a aurora do primeiro “Dia do Senhor”, a manhã luminosa de sua ascensão dentre os mortos, com as mulheres que foram ao sepulcro de madrugada e não encontraram o seu corpo santo! Maria Madalena chorando no jardim da vida nova, inclinando-se para ver o lugar onde estava o corpo de Cristo, e onde ela encontrou dois anjos vestidos de branco – um na cabeceira e outro aos pés – que lhe deram a grande notícia, a “Boa Nova” do Evangelho vivo do Senhor! Ela confunde o Senhor com o jardineiro, mas o reconhece quando ele a chama pelo nome: “Maria!” E ela testemunha dizendo: “Eu vi o Senhor”. E, depois, o anúncio que chegou rapidamente aos apóstolos, que tanto se alegraram por verem o Senhor, que lhes confiou a missão de irem pelo mundo todo, pregando o Evangelho do Senhor: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. [...] Recebei o Espírito Santo”! (Jo 20). Aqueles acontecimentos ainda hoje mexem interiormente com os homens de fé. Pois, bem, estamos aqui no coração dos acontecimentos de nossa salvação. 

Bento XVI no Santo Sepulcro

Quantas pessoas de fé gostariam de estar aqui conosco saboreando a grandeza infinita do amor de Deus na Terra da plenitude de sua revelação. Que responsabilidade a nossa, para não deixar correrem em vão os dias aqui decorridos entre as obrigações acadêmicas e a responsabilidade pessoal com o dom que Deus se digno nos presentear! Que lendo e estudando a Sagrada Escritura nós também saibamos escutá-la, a fim de que ela fecunde no mais profundo do nosso ser a vida de Ressurreição que o Senhor nos garantiu com a sua própria Ressurreição, “primícias dos ressuscitados de Deus [daqueles que adormeceram na fé em Cristo], pois assim como todos morrem em Adão, todos reviveram em Cristo” (1Cor 15,20-22). 

 
Templo católico - Igreja

No dia 21 de setembro, domingo [Dies Domini], concelebrei a santa missa com os monges beneditinos do mosteiro de Abu Gosh, uma cidade perto de Jerusalém, com sete mil habitantes, mas totalmente islâmica. Uma celebração muito bem cantada em latim e francês. Fiquei pensando na formação dos seminaristas que não aprendem nem a cantar, lendo a partitura, nem conhecem os textos da liturgia latina. Uma pobreza intelectual que com tempo nos distancia cada vez mais da pureza do louvor dos grandes espíritos imbuídos pela sinfonia do mistério musical. Além da formação que já recebem, os seminaristas deveriam estudar profundamente música, latim e inglês. Essa última parece ter se tornado uma maldição que escraviza a mentalidade humana à submissão estrangeira dos detentores do patrimônio cultural linguístico que invadiu o comércio mundial. Mas não tempos para onde fugir. Todo país decente ensina o inglês como a segunda língua da nação. Em relação aos seminaristas e aos padres, de modo especial, aos das gerações mais recentes como a minha, basta o português mal falado para expressar o conteúdo não muito bem elaborado das elucubrações da homilia. Infelizmente, depois do Concílio Vaticano II, quando o vernáculo se tornou a língua oficial da Liturgia no mundo todo – não que isso tenha sido absolutamente negativo, muito pelo contrário – o latim foi deixado de lado como desnecessário à cultura dos homens da Igreja. Mesmo assim, ela continua sendo a língua oficial da Igreja de Roma. Os padres antigos, que estudavam e falavam latim, como alguns raros que ainda conheço, estão morrendo, e vão levar consigo uma herança filológica privilegiada sem que ninguém possa ver transmitida a outrem. E há os que pensam que estudar latim é voltar no tempo, é ser retrogrado, conservador, tradicionalista. E enquanto preconceitos desse tipo vão passando de geração em geração, a cultura eclesial perde muito de sua própria riqueza. Hoje nem os bispos sabem mais latim. Claro que estou falando dentro do contexto brasileiro, porque em alguns países da Europa o grego e o latim são estudos clássicos e fazem parte do currículo de qualquer estudante. Portanto, há pessoas desse universo acadêmico que conversam em latim. E não são da Igreja, não são atrasados nem contrários ao progresso. 

 
Uma mesquita, templo muçulmano de Abu Gosh

 Mas voltemos à história da Abadia de Santa Maria da Ressurreição, de Emaús das Cruzadas de Abu Gosh. A comunidade sempre recebe turistas do mundo todo e de várias religiões. Ela está situada no Monte de Judá, a uma altitude de 770 metros no espaço de um anfiteatro formado por três colinas, no coração da cidade mulçumana de Abu Gosh por onde passa uma antiga estrada que ligava Jerusalém à costa. A presença humana no local data de 6000 anos A.C., remontando ao período Neolítico. Nômades aí se estabeleceram por causa de uma fonte. Mais tarde, o sito é mencionado na Bíblia com Kyriat Baal (Js 15,9-10), cidade fronteira entre as tribos de Judá e Benjamim; e Kyruat-Yéarim, colina que domina a cidade, onde esteve a Arca da Aliança (1Sm 6,21) antes que Davi fizesse conduzi-la para Jerusalém (2Sm 6,2). Depois, bem mais tarde, os romanos ali se instalaram, a fim de guardar a água da fonte. Durante o período árabe, o local se transformou em albergue de caravanas que se deslocavam de diversas regiões. No ano 1143, os Cruzados – Ordem de São João do Hospital, hoje Ordem de Malta – identificaram o local com a cidade de Emaús e construíram a cripta e a igreja, utilizando o reservatório romano como fundação. Abandonado durante o Reino latino de Jerusalém (1187), a igreja permaneceu em pé. Embora a história seja ignorada, é provável que ela foi usada como abegoaria pelos habitantes da região. Bem mais tarde, em 1873, a igreja foi oferecida à República Francesa pela “Porta Sublime” – uma expressão relacionada ao Império Otomano (Turco – de 1299 a 1922), que dominava a região da Anatólia, do Oriente Médio, de parte do norte da África e do sudoeste da Europa. Em 1900, no início da nave da igreja, um monastério foi construído pelos monges beneditinos da Província Francesa da Congregação do Subiaco – “Subiaco” é um monte relacionado à vida de São Bento de Núrsia, na Itália do século V. Ele é considerado o “pai” do monaquismo do Ocidente, ele criou a regra monástica, que conduzisse a vida da comunidade. Presentes ali até 1953, os monges de Belloc deixam em seguida o local para os padres lazaristas. Depois, em 1976, os monges beneditinos retomam o local, com a chegada de um grupo de monges vindos da Abadia de Bec-Hellouin, da Normandia, na França, e da Congregação de Santa Maria do Monte Olivet, perto de Sena, na Itália. Pouco tempo depois, se junta a eles um grupo de monjas oblatas também vindas de Bec-Hellouin. 

 
Monges rezando

Os monges, muito alegres e gentis, nos convidaram para o aperitivo e o almoço. Uma verdadeira festa entre irmãos. Durante esses últimos tempos que anteciparam minha chegada a Jerusalém, há pouco mais de um mês em que deixei o Brasil, aquela foi a refeição mais completa, rica, nutritiva e solene que eu tive. Vez por outra, isso é bom. Tendo conhecido a estrada, fui convidado a voltar, inclusive, para me hospedar, quando quisesse. Levam a vida comunitária com simplicidade fraterna por meio das atividades que lhes são comuns. Fazem a oração pessoal e comunitária. Realizam trabalhos que ajudam na manutenção da abadia, como o cultivo de ervas e frutas para licores que são vendidos com outros objetos de artesanato local e também artigos religiosos. Quando a comunidade foi formada, no início do século XX, uma das orientações mais levadas em consideração era o fato de que eles estavam sendo enviados ali, não como conquistadores, mas para ser uma “presença cordial” no meio de um ambiente já torturado pelas contendas religiosas históricas e multisseculares. “Presença cordial”: duas palavras que encerram todo um programa de vida que deve ser embalado pela oração, mas também pelo acolhimento a todos os visitantes, independentemente, de sua religião ou profissão de fé. Tudo isso como expressão de que, não obstante as diferenças, mesmo aquelas de enorme peso cultural, é possível viver a autêntica fraternidade.




domingo, 21 de setembro de 2014

Mudanças Culturais

Mudanças culturais


Sonho com o dia em que a região do Próximo Oriente Médio – e de todo o Oriente – se torne um lugar tão democrático e livre em suas questões políticas e sociais, inclusive, envolvendo as profundas dimensões religiosas que acobertam a fé do seu povo, de tal modo que seja seguro passear ali e visitar todos os lugares com a mesma sensação de segurança e liberdade que encontramos em alguns países da Europa e da America Latina. Tendo passado por Londres e Paris, conforme estava no roteiro de minha viagem, cheguei a Tel-aviv na madrugada do dia 17 de setembro de 2014, às 00h33min. Depois, segui para Jerusalém aonde cheguei às 02h00. Uma mudança quase brusca de realidade geográfica e cultural, histórica e religiosa. Só o caminho do tempo para me revelar os mistérios e os segredos das aventuras que me aguardavam em terras tão distantes do meu inesquecível Brasil. 


De Paris para Jerusalém, acabei indo parar em Bucareste, na Romênia. Nunca pensei que um dia pudesse passar por lá. A empresa aérea Air France estava em greve, e muitos voos foram cancelados, inclusive, para o Brasil. A greve nada tinha a ver com Jerusalém ou Israel. Era um problema da dinâmica interna com alguns funcionários. No entanto, fomos muito bem atendidos. Meu medo era que não pudesse viajar logo. Viajar é muito bom, mas carregar bagagens para lá e para cá é muito desgastante. No aeroporto Charles De Gaulle, encontrei algumas freiras que estavam embarcando para os Estados Unidos. Fui cumprimentá-las, e a responsável me disse em espanhol: “Se o seu voo foi cancelado, padre, não se preocupe. Ficarei com o senhor e irei ajudá-lo. E, se não for viajar hoje, pode ir para nossa casa”. Era um bom sinal. Então, ela permaneceu comigo e me orientou durante todo o trajeto de remarcação da passagem. Graças a Deus, tudo foi resolvido a contento, não paguei excesso de bagagem por causa do cancelamento, e ainda ganhei dinheiro para “um lance” que a irmãzinha me presenteou. Peguei o voo de número 1588 da Air France para Bucareste, às 15h44, e de lá segui para Jerusalém no voo 153 da Tarom, uma empresa aérea local, da qual nunca tinha ouvido nem falar como também nunca havia escutado alguém falando romeno, uma língua neolatina, cujo vocabulário, vez por outra, faz saltarem algumas expressões tão compreensíveis como se fossem em português. Confesso que me despertou a curiosidade em aprofundar o conhecimento dessa língua. É a única das línguas neolatinas mais conhecidas da qual não sei nada.
Em Tel-aviv, tudo transcorreu na mais absoluta normalidade. Na alfândega, um lugar que sempre preocupa os turistas por causa do interrogatório, tudo tranquilo. No clichê por onde passei, havia um rapaz muito simpático e sempre sorridente. Quando chegou a minha vez, ele quis brincar dizendo que eu não tinha o visto necessário. “Como, não tenho? Ele está aí dentro, e, segundo, informações, eu terei um mês para me apresentar no Ministério do Exterior para convalidar o visto prolongando-o por um ano”. Depois, ele quis saber quanto tempo eu pretendia fica no país e me liberou. Deixou-me passar, entregando-me o papel no qual falava do tipo de visto, sem permissão para trabalho, e com a validade até o dia 17 de outubro, isto é, um mês. Tendo recuperando as bagagens, saí para pegar o transporte em direção a Jerusalém. Hoje, há uma organização de vãs, patrocinadas pelos judeus, que fazem o transporte de muitos turistas, cobrando um valor baixo e deixando cada um no seu próprio endereço. Um serviço eficiente e cômodo para todos que aqui chegam. No grupo que viajou comigo, havia uma brasileira com o seu pai. 

 

Se em Paris, eu me sentia em casa, mais em casa ainda, eu me senti desde que entrei no país de Jesus, a chamada “Terra Santa” – ‘admat raqqodesh, diz a expressão hebraica – como ficou conhecida na história. Como chegar aqui sem se lembrar das palavras comoventes de Cristo que chorou sobre Jerusalém: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os enviados de Deus, quantas vezes, eu quis agasalhar os teus filhos como a galinha acolhe os seus pintainhos debaixo de suas asas, e tu não me quiseste, e tu me rejeitaste!”? (Mt 23,37-39). A verdade é que essa palavra sempre volta quando nos permitimos colher os sentimentos de Cristo por nós mesmos, tão relutantes e rebeldes que somos quanto à aceitação de seu amor misericordioso. Quanta experiência bonita e marcante foi vivida nessa terra pelas pessoas escolhidas pelo Senhor durante todo o seu processo de autorrevelação. A Sagrada Escritura transborda, sobejamente, de exemplos edificantes de benções, mas também de provações pela dureza com que Deus tratou o seu povo e pessoas singulares, como no caso dos profetas, por causa da infidelidade. Um caso típico poderia ser tirado da vida do profeta Ezequiel, apenas enfatizando o exemplo, quando Deus lhe diz que tirará de diante dele a alegria de seus olhos, exigindo que ele não desse nem um pio: “Filho do homem, eis que, de um golpe tirarei de ti o desejo [a alegria] dos teus olhos, mas não lamentarás, nem chorarás, nem te correrão as lágrimas. Geme em silêncio, não faças luto por mortos; ata o teu turbante, e põe nos pés os teus sapatos, e não cubras os teus lábios, e não comas o pão dos homens. E falei ao povo pela manhã, e à tarde morreu minha mulher; e fiz pela manhã como me foi mandado” (Ez 24,15-17). Deus tirou de sua vida, a luminosidade da presença de sua esposa, que era o encanto de seus olhos. No entanto, o Senhor vê além da própria pessoa do profeta e projeta sua reflexão sobre o povo de Israel: “Assim diz o Senhor DEUS: Eis que eu profanarei o meu santuário, a glória da vossa força, o desejo dos vossos olhos, e o anelo das vossas almas; e vossos filhos e vossas filhas, que deixastes, cairão à espada. E fareis como eu fiz; não vos cobrireis os lábios, e não comereis o pão dos homens. E tereis nas cabeças os vossos turbantes, e os vossos sapatos nos pés; não lamentareis, nem chorareis, mas definhar-vos-eis nas vossas maldades, e gemereis uns com os outros. Assim vos servirá Ezequiel de sinal; conforme tudo quanto ele fez, fareis; quando isso suceder, sabereis que eu sou o Senhor DEUS” (Ez 24,21-24). 


Já pela manhã, encontrei uma brasileira que se hospedaria no Instituto Ratisbonne por duas semanas. Ela me levou para passear no primeiro dia de minha chegada. Saindo pela estrada, pedimos informações a um jovem judeu que passava sobre que direcionamento tomar na rua. Qualquer pessoa pela estrada fala inglês. Isso faz parte da cultura dos povos civilizados. Ninguém precisar ir a uma escola particular para aprender inglês. Pelo sotaque, o jovem quis saber de onde éramos. E ele concluiu: “Então, é melhor a gente falar em português mesmo!” Era um brasileiro que fora enviado pelos pais para estudar o hebraico moderno, a língua de sua família. Então, sendo que eu iria fazer o mesmo curso, quis saber como era, e ele me motivou dizendo: “É muito gratificando, mas o bagulho é tenso! Cada dia é um dia!”. Demos boas risadas, e fomos cada um para o seu lado. Todo curso intensivo é “tenso”, sobretudo, pela carga de exercícios e obrigações que impõem ao estudante o concentrar-se, trabalhando em casa com afinco e perseverança, no aprimoramento de qualquer língua estrangeira. Eu sei muito bem do que é que se trata porque foi essa a experiência que fiz durante dois meses na Alemanha, em Bonn, estudando a língua daquele país, em 2005. Não é fácil chegar em um país para aprender um idioma diferente do seu, ainda mais se ele tiver outro alfabeto, como é o caso do hebraico, que não é uma língua moderna, sem nenhum vocábulo da língua que mais livremente passeia pela inteligência do estudante, como o seu vernáculo. A batalha é dura, mas vencível. Só o fato do reconhecimento inicial dos códigos que compõem o texto da nova língua estudada já é uma grande alegria. É uma compensação. Assim que descobri por meio de um francês que veio estudar hebraico, aonde ir à missa numa comunidade cristã, comecei a frequentá-la. Tendo estudando o texto da celebração antes, pude segui-la sem dificuldades, embora, não estivesse em condições de ler com muita fluência. Mas já era um avanço. 

 

Curiosamente, quem celebrou a missa foi um padre do Instituto Bíblico de Jerusalém que conhecera em 2005, quando de minha primeira estada em Israel. Ele fora com os padres estudantes de Roma, que faziam estágio. Depois, por todos os lados, nos deparamos com frases e nomes nessa língua. Ela enche os olhos de novidade, e, aos poucos, o universo interior se transforma pela fonética musical ouvida pelas rádios e pela televisão. Há canais de desenho animado para crianças. Como elas falam com fluência, embora de modo mais vagaroso, isso ajuda o iniciante na conquista de suas novas descobertas. E, assim, motivados, seguiremos adiante!