terça-feira, 23 de abril de 2013

Entretenimentos dialéticos com Santo Agostinho

Entretenimentos dialéticos com Santo Agostinho 

 

Na obra literária As Confissões, Santo Agostinho aborda o problema da existência e da natureza de Deus, verdade que ultrapassa transcendentemente a própria natureza humana e é constitutiva de todas as verdades que o homem conhece. Ao lado disso, também surge a questão da alma e do homem, aquele elemento e princípio vital desse, porém, distinto dele, enquanto rica de verdade e imortal, como a parte melhor do homem, cuja dignidade se realiza e reside no livre arbítrio. Quanto ao mal moral, Santo Agostinho considera-o e o define com “um ato insuficiente da vontade, uma escolha corrupta para não cair e, portanto, para usar o livre arbítrio é indispensável a intervenção divina. Alcançar a Deus, isto é, conhecer e amar a verdade, é a única felicidade que pode satisfazer o espírito humano; toda satisfação nos bens terrenos, imperfeitos e caducos, está destinada a desiludir amargamente a aspiração inata do homem”. Destarte, encontramos no que fora acima referido os fundamentais princípios ou motivos filosóficos que se estendem ao longo dos dez primeiros livros de “As Confissões”. No décimo livro, é apresentada uma prolixa reflexão concernente à faculdade chamada memória, compreendida do ponto de vista mais profundo, quase de consciência. De fato, é mediante a memória que o homem caminha para Deus, o qual se encontra na memória, mesmo se parcialmente notado, porquanto só podemos procurar o que conhecemos, e o que conhecemos está na memória, de modo que procuramos a nossa felicidade, que é Deus mesmo. O autor coroa sua obra, concluindo-a com uma especulação, o que constitui verdadeiramente a parte de maior ênfase, ao lado da exegese do Gêneses. Basta-nos acentuar a demorada análise que Santo Agostinho faz do conceito de tempo cotejado à compreensão do termo de eternidade. 

Ao lado das Confissões, Santo Agostinho deu sua imensa contribuição ao secular “monumento do espírito” que consolidou boas novas até mesmo e, sobretudo, no campo da Teologia. Foi, pois, a ele, mais do que a qualquer outro, que se deu realizar a síntese do pensamento antigo e do pensamento cristão, que viveu longos séculos na civilização ocidental. Por ele e nele, a cultura Greco-latina fez aliança com a Bíblia, a sabedoria platônica deu a mão à “loucura da cruz”; uma tradução nova foi criada, de modo que trará, nutrirá e fará frutificar os mais belos gênios do gênero humano. Do ponto de vista, especificamente, cristão, ele foi o doutor incomparável que a Igreja elevou aos altares, um dos “engenheiros” mais ativos do progresso dos dogmas: o teórico da queda, da reparação, da graça. Combatente infatigável, desde que refuta os maniqueus, donatistas, pelagianos e arianos, ele precisa e define a doutrina e, como o rigor da concepção que é inseparável do rigor do vocabulário, ele acaba por dar à Teologia a sua linguagem. 

Aqui, deixamos tais considerações mais gerais sobre sua inestimável contribuição ao patrimônio cultural da humanidade, constituído de todos esses “monumentos do espírito”, que a inteligência e a genialidade humana traduziram em literatura, e voltamos ao último fôlego inspiratório que levará a termo as referências derradeiras Às Confissões de Santo Agostinho, enquanto apreciações gerais. 

As Confissões constituem a obra-prima, imortal, de Santo Agostinho, e expressam o drama interior de “uma alma em busca de luz” e claridade para dissolver as trevas espessas de seu “cor inquietum” – “coração inquieto”. E, mais uma vez, solene e penetrante, o testemunho de nosso amigo Daniel Rops aponta para essa direção, e “se hoje conhecemos nos seus detalhes todo o drama interior desta alma em busca de luz, é porque o homem que viveu em si mesmo, fixou os seus rasgos e assinalou-lhe as fases num livro de uma sinceridade absoluta”. E o mesmo autor acrescenta: “As Confissões de Santo Agostinho pertencem ao tesouro mais precioso de nossa civilização, e são uma das cinco obras que desejaríamos ver sobreviver a todos os desastres da história, para testemunharem, junto das gerações futuras, o que terá sido, em toda a sua plenitude, esse tipo de homem, hoje ameaçado de desaparecer – o civilizado do Ocidente”. Literariamente, As Confissões revelam uma obra-prima, talvez, imitada, contudo, jamais igualada; à mercê da ótica cristã, são componentes de um texto em que o “arroubo místico atinge os cumes mais elevados”. Nessa obra, Santo Agostinho também vai dentro do “coração inquieto” de tantos homens de nossa geração, de nosso tempo, de nossa civilização. Quantos, lendo e relendo “As Confissões”, aí não encontram e descobrem, debaixo do véu de sua própria singularidade e exposta vulnerabilidade, as dimensões superiores de seu próprio ser, que o orientam aos páramos eternos onde está Deus, causa e origem de todas as coisas que existem, mormente, do próprio homem, feito à sua imagem, segundo sua semelhança?! 

 

Pelo menos ao nível das possibilidades a que tivemos acesso sobre as considerações quanto Às Confissões de Santo Agostinho, ninguém melhor do que Daniel Rops para envolver-nos na grandeza profunda da alma que o Santo manifesta na obra: “Simultaneamente tão humano e tão iluminado pela graça, o livro das Confissões é uma obra única, que atinge o leitor na profundidade de seu ser e que é sempre nova e inesgotável para quem a lê frequentes vezes. Talvez apenas os Pensamentos de Pascal, nos seus melhores trechos, possam rivalizar com a obra de Agostinho pelo impulso espiritual que provocam e por essa espécie de misteriosa gratidão que suscitam em nós. Basta abrir-lhe o livro ao acaso para ficarmos impressionados com as palavras e com o raciocínio, que modelam, como que cunhando-nos num metal indestrutível, não só a expressão literária, mas também os dons do Espírito Santo. Já vimos o inquietum cor nostrum, que é talvez a mais célebre de todas essas joias; mas, como é que podemos escutar, sem a reconhecermos como sua, esta patética confissão: ‘Onde posso estar, não quero; onde quero estar, não posso: dupla miséria?’ Não sentimos estremecer dentro de nós qualquer coisa mais essencial que a própria vida, quando lemos este apelo ao nosso próprio mistério: ‘Então, pus-me diante de mim mesmo e disse: E tu, quem és? Respondi: um homem?’ Conta-se que, subindo certa vez a um monte, num claro dia de abril de 1336, e tendo aberto lá no alto, perante aquele sublime panorama, o livro das Confissões, de que nunca se separava, Petrarca, o poeta do Canzomére, ficou chocando ao deparar com estas linhas: ‘Os homens vão longe para admirar os cimos das montanhas, mas passam ao lado de si mesmos’. Quantos de nós, e quantas vezes, não teremos feito essa experiência? Neste livro, encontramos de corpo inteiro o homem que somos, tal como o modaram dois mil anos de cristianismo”. 

Imediatamente, a supracitada obra agostiniana faz surgir novo horizonte, luminoso e radiante, num estilo místico e espiritual profundo, que revela, de modo literário, por meio de suas páginas comoventes, o perfil psicológico de um homem que “amava amar”, ainda se na penumbra interior de suas inerentes inquietações – o que já é um bom sinal, pois, como afirmou o Cardeal Newman, “uma alma sem inquietação é uma alma em perigo”. É, portando, assim, na consciência plena de um “coração inquieto”, que somente descansará da inquietude quando repousar em Deus, que Santo Agostinho se torna, na busca incessante da verdade, um exemplo ainda vivo e concreto para todos os homens da civilização dita pós-moderna.






terça-feira, 16 de abril de 2013

E se fosse com o seu filho?

E se fosse com o seu filho? 

 



Ultimamente, tem-se reacendido no Brasil inteiro a possibilidade de reduzir a maioridade penal para os crimes graves e hediondos que algum adolescente possa cometer, tais como estupro, latrocínio e assassinato. Não sou perito no assunto, mas imagino que a discussão é muito mais complexa do que nossa vã filosofia existencial possa conceber ou intuir. O fato é que todos nós ficamos indignados com a assustadora onda de crimes contra a vida humana, em várias raias da sociedade brasileira e, inclusive, com motivações banais: um celular, uma bicicleta, um tênis, um bate-boca frívolo no trânsito, e por aí vai a torrente bestial do comportamento humano que se precipita na usurpação dos bens e da própria vida alheia. 


O estopim incendiário da polêmica é um fato acontecido recentemente em que um jovem assaltante matou um rapaz para roubar-lhe o aparelho celular, poucos dias antes de completar 18 anos de idade. Apenas mais uma amostra corriqueira do quanto vale a vida humana diante da agressividade dos delinquentes de plantão que espreitam suas vítimas acobertadas pela possível e cabível impunidade pelos seus delitos. A sacralidade da vida é devorada pelo sistema frágil e vulnerável da educação e do respeito pelo outro, cuja estrutura não consegue oferecer-lhe segurança nem proteção. A impunidade escancara as portas da criminalidade. Aí, somos tomados pela raiva, pela ira, pela indignação e até pela vontade de “vingança”, o que, geralmente, substituímos pelo desejo de “justiça”.  Porém, que justiça? Difícil mesmo é a gente colocar-se no lugar do outro, assumir o grito desesperado da dor que o invade, num piscar de olhos, sem que nada mais possa ser feito diante de quem lhe foi, assassinamente, tolhido de sua convivência. Pessoalmente, talvez, eu não tenha uma opinião formada sobre o assunto, de modo especial, pela complexidade dos fatores que envolvem o cerne da questão da maioridade dentro dos limites de suas penalidades. Mas, será que um adolescente que se considera apto a votar antes dos dezoito anos não estaria também consciente de suas responsabilidades criminais perante a sociedade? A quem, de fato, interessaria ou não a redução da maioridade penal? São perguntas que deixo aos espíritos mais argutos, que lidam diretamente com as malhas da confusão dos elementos múltiplos que dizem respeito à argumentação. 

Na verdade, quando as coisas trágicas acontecem na vida do vizinho, tudo parece mais suscetível de critérios e possibilidades de remediar o ocorrido. Com efeito, longe do circuito do drama que pervaga a casa e a vida das pessoas, não me permitindo o envolvimento na rede instantânea dos sentimentos que se instaura na emoção das aflições experimentadas e vividas, é mais tranquilo avaliar os estragos alheios. Assim, nada parece falar abertamente à nossa consciência civilizatória, para não dizer o contrário. No entanto, e se o acontecido fosse com o nosso filho, nosso irmão, um parente próximo, alguém dos círculos de nosso convívio, será que reagiríamos com a mesma frieza e indiferença de opinião com que nos arvoramos em juízes da causa alheia? Que ninguém se coloque inume ou acima do rastro de violência e agressividade que golpeia, fatalmente, a vulneração da segurança em que nos julgamos estar protegidos. Quando a dor dói em nós, deixamos extravasar o caudal impetuoso da revolta que poucas palavras ou menos gestos ainda não podem minimizar no âmago de nós mesmos o fulcro operante dos ressentimentos. O governo federal já se posicionou contra a possibilidade da redução da maioridade penal. E, aqui, não estou defendendo nenhuma posição que seja a convicção acertada da superficialidade de meu pensamento. Porém, do mesmo jeito que algumas questões são debatidas abertamente pela sociedade, considero que valeria a pena a sustentação da troca de ideias entre os vários componentes dos grupos sociais. Infelizmente, na contramão de tudo o que poderia ser a manifestação clara, honesta e aberta de altercações pertinentes ao interesse da maioria democrática, que não se sente representada pelas minorias fechadas no pedestal da delegação ou representatividade que lhe fora atribuída, inclusive, por voto direto nas urnas, quando tais minorias querem aprovar certos “direitos” da liberdade das pessoas, fazem-no à surdina e sorrateiramente, sem a participação legítima de todos os afetados nas questões. 


É verdade que as palavras podem provocar associações indesejáveis, mas quando alguns grupos, que se dizem legais representações da maioria, tomam o direito de decidir pela maioria, e contra a maioria, que nem sequer foi consultada, sem colocar a pauta em discussões francas e honestas, eles impõem sua decisão como norma civilizatória de respeito – falso respeito – pela dignidade de terceiros, em detrimento dos direitos sagrados de outros. Somente para soprar o pó da memória esquecida de alguns distraídos pelo afã do vai e vem do quotidiano, não foi justamente isso o que aconteceu quando o Conselho Federal de Medicina [CFM, que alguém o classificou como Conselho Federal da Morte] defendeu a liberação do aborto até a décima segunda semana de vida, desde a concepção? Tudo isso sob o dogma do cinismo de quem, hipocritamente, diz-se “a favor da vida”, contanto que seja “respeitada a autonomia da mulher”. Se patrocinar a morte do feto dentro do útero da mulher não é assassinato, isto é, a imposição de limites à sobrevivência de uma vida própria, o que seria, então? 


Não são comportamentos e palavras que vão além do absurdo de premissas contraditórias e de aberrantes que não justificam a lógica de sua exposição? É como se eu dissesse que gosto muito dos animais, no entanto, se pela estrada eu encontrasse uma filharada de gatos indefesos estendidos no meio do caminho, passaria com o carro por cima deles sem dó nem piedade. Ou que sou a favor da lei seca, contanto que o bafômetro do policial não me flagre embriagado ao volante. Em síntese, tento defender alguma situação comportamental pela qual manifesto atitudes totalmente contrárias ao meu estilo de vida. Como já disseram, a corrupção não é uma invenção nossa, isto é, dos brasileiros, mas a impunidade, sim, é uma criação, originalmente, nossa. Quanto ao mais, o resto que se dane!