Textos de espiritualidade paulina

Verbum Crucis 
Caríssimos leitores, antes de tudo, gostaria de agradecer-lhes a disponibilidade de seu precioso tempo para apreciar, com abertura de espírito e desejo de enriquecimento, a inspiração de nosso circunstancial discurso. Falando sobre leitura, Gabriel Perissé afirmou o seguinte: “A leitura é uma lente de aumento que nos permite avaliar melhor a realidade. [...] A leitura nos devolve, em forma de maturidade, o tempo que lhe dedicamos”. De fato, ninguém pode permanecer o mesmo depois de uma leitura sadia e edificante. E no garimpo de tantas perlustrações banais, devemos discernir criteriosamente o que poderia fazer bem ao nosso espírito, ao consolo espiritual de nossas inquietações mais prementes. Portanto, usufruindo bem da oportunidade que nos é apresentada nesse distinto espaço online no qual debuto como o mais novo refletor de ideias, sejam bem-vindos ao passeio literário que iremos fazer no caminho espiritual das reflexões teológicas sobre a literatura paulina, ou em outras sendas de variada coloração literária, conforme forem soprando os ventos dialéticos de nossa tempestiva argumentação.
Logo no início da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, encontramos o título com que descerramos as cortinas de nosso pensamento: “Pois não foi para batizar que Cristo me enviou, mas para anunciar o Evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim de que não se torne inútil a cruz de Cristo. Com efeito, a linguagem da Cruz [o original latino traduz “verbum crucis” – a palavra da cruz] é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,17-18). Portanto, o plano da pregação de São Paulo tem como fundamento “Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado” (1Cor 2,2). Sem dúvida, será dentro desse horizonte da “sabedoria cristã”, contrastada com a “sabedoria do mundo”, que o anúncio do Evangelho vai se desenvolver ao longo da história do Cristianismo.
Escrevendo aos Coríntios, São Paulo se dirige a uma comunidade desarrumada na sua organização interna; desorientada quanto ao verdadeiro sentido da unidade em torno de Cristo; desencontrada por causa das rixas existentes dentro dela, cada um decidindo pertencer a outrem que não a Cristo (1Cor 1,11-12). De fato, parece uma comunidade em que o espírito mesquinho do partidarismo não consegue perceber o essencial ou a motivação maior de sua própria identidade cristocêntrica. Todavia, querendo esclarecer a situação pela qual se desgasta para propagar “a palavra da cruz”, São Paulo, primeiro apresenta-se à comunidade, revelando-lhe a autoridade de que está revestido em sua missão. Ele foi “chamado a ser apóstolo de Jesus Cristo por vontade de Deus” (1Cor 1,1). Assim, a consciência de sua missão não é fruto de uma iniciativa pessoal. Muito pelo contrário, pois antes de se tornar apóstolo [“enviado”] de Jesus Cristo, ele perseguia os seguidores do Senhor Jesus, como ele mesmo escreveu a seu respeito: “De modo que, pessoalmente, eu era desconhecido às Igrejas da Judeia que estão em Cristo. Apenas ouviam dizer: quem outrora nos perseguia agora evangeliza a fé que antes devastava, e por minha causa glorificavam a Deus” (Gl 1,22-24). De perseguidor, uma vez convertido (At, 9,1), São Paulo não descansará nunca mais no serviço da pregação do Evangelho de Cristo Jesus. E a exigência de sua missão impõe-lhe um preço: estar crucificado com Cristo (Gl 2,19). A dimensão da cruz é uma vertente radical dos seguidores de Cristo. Sem ela, nenhum testemunho se revela verdadeiramente autêntico na lógica incompreensível da doação total e generosa de Cristo aos homens, seus irmãos.
A cruz de Cristo será a marca registrada da pregação do Evangelho por todos os tempos. Tudo começou quando o Filho de Deus bem-amado aceitou ser pregado sobre ela para nos salvar. Morrendo sobre ela, Ele matou a morte e renovou a nossa vida. Todavia, o mistério de nossa salvação não é para ser entendido de maneira racional como gostaríamos. O racionalismo somente nos faz perder de vista o alcance salvífico do amor de Deus pela humanidade. A salvação oferecida por Deus não está ao nível de nossa compreensão humana, enquanto abaixamento total daquele que é o Senhor da vida, daquele que é a própria Vida por excelência. Como Ele pôde, tão grande e tão supremo, tornar-se igual a nós em tudo, exceto no pecado? Mas Ele quis assumir todas as nossas limitações para vencer na sua carne ferida e ensanguentada pelos nossos pecados todas as nossas fraquezas advindas com o afastamento de Deus. A palavra é de São Paulo: “Tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em seu aspecto como um homem abaixou-se, tornando-se obediente até a morte, à morte sobre uma cruz” (Fl 2,1-8).
De fato, Ele foi à nossa frente para nos ensinar o caminho da Cruz que devemos percorrer lavando a nossa cruz sobre os nossos próprios ombros. E se cairmos, Ele nos reerguerá na firmeza perseverante dos passos de sua Paixão Redentora. 

Crux nostra Cottidiana 

Falando da Cruz de Cristo, não podemos nos esquecer da nossa cruz, pois foi Ele mesmo quem disse: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me” (Lc 9,23). É a cruz nossa de cada dia que devemos levar sobre os nossos próprios ombros. Evidentemente, não se trata de um pedaço de madeira colocado sobre nós. Entendê-lo assim seria esvaziar completamente o sentido teológico profundo da nossa Redenção e do testemunho pessoal dos cristãos em face de tanto sofrimento e perseguição por causa de Jesus. Nesse sentido, São Paulo apresenta-nos uma palavra luminosa, fruto de sua vivência íntima com Cristo do qual brota toda a riqueza de sua força e a perenidade de seu testamento espiritual: “Incessantemente e por toda parte trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada em nosso corpo. Com efeito, nós, embora vivamos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus seja manifestada em nossa carne mortal” (2Cor 4,10-11). Assumindo a nossa cruz caminhamos com Cristo em direção ao Calvário onde começa o ingresso do Senhor na glória definitiva à qual nos uniremos pelo poder de sua Ressurreição.
Se não aceitamos a cruz, acabamos tornando-nos “inimigos da cruz de Cristo”, como São Paulo confessa chorando (Fl 3,18). E quantos no mundo moderno ainda se comportam assim! Embora seja uma palavra incômoda, suas quatro letras escondem atrás de si a plenitude do ato salvífico de Deus, que nós recusamos com tanta facilidade. Indubitavelmente, ela contém o mistério inaudito da nossa salvação. Instrumento de dor e de suplício, ela nos escancara as portas do paraíso, cuja eternidade não possui o seu fundamento definitivo sobre a transitoriedade dessa terra. Desse modo, a teologia da cruz está mais próxima de nós do que possamos imaginar. Com efeito, ela traduz, na radicalidade mais profunda do nosso ser, o misterioso confronto de nossas imperfeições com “o estado de Homem Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4,13) no mistério insondável de sua Encanação.
Referindo-se ao sentido profundo da verdadeira cruz e, evidentemente, inspirado no Cristo Crucificado, José-Fernando Rey Ballesteros considera que, de modo paradoxal, no ser humano a dor cresce tanto quanto o amor, pois quem ama muito, sofre muito, porquanto o amor acentua a sensibilidade em tudo o que diz respeito ao ser amado. Assim, nossas desgraças são sentidas pelos que nos amam, mas, ao mesmo tempo, deixam mais frios e indiferentes os que não nos conhecem ou até mesmo nos detestam. Nessa mesma linha de raciocínio, o sobredito autor reconhece que o amor infinito de Cristo pelo seu Pai, Deus, faz com que bastasse um único de nossos pecados para que o sofrimento produzido em sua alma, ao contemplá-lo, tivesse-o levado à morte. Por conseguinte, não podemos fazer ideia do quanto Cristo sofreu por cada um de nós do alto da Cruz do Calvário. Na extensão limítrofe de nosso olhar, não queremos fazer-nos conscientes do efeito salvador do amor de Cristo, e não queremos olhar até às profundidades mais baixas para ver de onde fomos resgatados e salvos, acolhendo assim Cristo como nosso verdadeiro Salvador. Pelo contrário, fechamos uma cortina sobre o abismo do pecado, da morte e do Inferno, de modo que nos é mais cômodo viver sem enfrentar diretamente as profundezas dessas realidades.
A cruz traduz o sentido do sofrimento que vivemos e experimentamos por causa da nossa fé, da nossa aceitação em seguir os passos de Cristo. Mas, ela também significa tudo aquilo que dentro de nós mesmos balança o nosso espírito e nos prostra diante das dificuldades e insuficiências da vida; diante das carências mais recônditas da nossa sede de plenitude; diante dos insucessos aparentemente definitivos de nossas realizações. Somente ao lado de Cristo evidenciamos a resposta satisfatória à calmaria interior das agitações intrínsecas ao âmago profundo do nosso ser. Apenas olhando a cruz de Cristo, somos capazes de perceber a luminosidade própria do mistério sublime que nos envolve: participar da vida de Cristo, permitindo que a dele resplandeça sobre todas as nossas limitações. Assim, nessa fonte ligeira de raciocínio, bebemos à saciedade da nascente irrefreável da graça santificante com que Cristo quis nos “alcançar” (Fl 3,12) para nos conduzir à salvação eterna.
Portanto, embora muitas vezes nos percamos em nossas próprias ambições de esforço de realização meramente pessoal, apenas Ele, unido de modo profundo e radical à vontade do Pai, pode oferecer-nos a proximidade do trono da graça da intimidade divina.