segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A Pior parte do corpo!!


A pior parte do corpo



Alguém já disse que a pior parte do corpo é a língua. Sim, são não muitos centímetros de carne, mas, que podem levar uma pessoa à perdição. Talvez, o assunto não seja muito interessante, mas, como me é reservado o espaço nesse distinto jornal, eu posso escrever sobre qualquer coisa que me espezinhe a mente, pois, se eu tiver vida, tempo, graça e saúde, meus queridos leitores ainda poderão aprovar, ou não, muitas de minhas tempestivas reflexões. A verdade é que os temas são frutos do acaso ou de alguma provocante e oportuna situação que me favoreça a possibilidade da cogitação das ideias. Portanto, sábado passado, eu vivi uma experiência que me fez pensar, e pensar muito, sobre o poder destruidor de um comentário infeliz feito sobre as pessoas que não as conhecemos, porque não convivemos com elas. Por exemplo, eu não tenho obrigação nenhuma de gostar de quem quer que seja, como, de igual maneira, e em contra partida, ninguém tem o dever de gostar de mim. No entanto, dessa não simpatia recíproca à atitude difamatória, que leve alguém a falar mal de outrem ou a envenenar uns contra os outros, simplesmente, pelo azedume da insatisfação pessoal com algum comportamento não muito agradável, porquanto as pessoas gostam de aplausos e bajulação, isso é outra coisa.
Então, caro leitor, você tem mania de falar mal das pessoas, apenas por que elas não foram “com a sua cara”, como diz o rifão que, cotidianamente, circula em nosso meio? Quando alguém manifesta maledicência contra outra pessoa, qual é a sua reação? Você concorda, discorda, ou aproveita a circunstância para “meter a ripa”? Pior ainda! Ou será que você inventa, com toda a pujança criativa de sua fantasia, outros aspectos que possam denegrir ainda mais a imagem da pessoa falada e, de modo consequente, leva a diminuir a luminosidade projetada sobre ela? Não sei qual é a sua resposta, mas, tenha cuidado, porque, quem enlameia o outro, é porque está querendo tirar vantagem diante de suas próprias colocações. De fato, quem diminui o outro quer engrandecer-se à custa dele. Portanto, comportamento desse tipo deve gerar desconfiança, vontade e intenção de conhecer o outro lado da moeda da vida vitimada pelo mexeriqueiro.
Geralmente, o sacerdote é uma pessoa pública, pois ele lida com um grupo variado e diferenciado de pessoas, que, nem sempre, fazem parte do seu quotidiano. Quer dizer: há pessoas que vão ao seu encontro, uma vez ou outra, e, no entanto, não estão na normalidade da vida nem no circuito de sua convivência diária. Num caso mais concreto, isso tem a ver com as várias conjunturas da vida eclesial, sobretudo, em determinadas circunstâncias da paróquia, tais como: missas de formatura, casamentos com requintes de roupas, deselegantemente, extravagantes, missas de aniversários, comemorações de centenários, missas de sétimo dia e, assim, por diante. Se, por acaso, o padre recusar-se a permitir na liturgia músicas do tipo: “Amigos para sempre é o que nós iremos ser na primavera ou em qualquer das estações...”: ou: “Além do horizonte deve ter algum lugar bonito pra viver em paz...”; ou ainda: “Naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim...”; isso tudo, sem falar de outros abusos inconvenientes de gente que nunca vai à igreja nem entende de liturgia – e quando lá aparecem, querem mandar em tudo – de modo que se o padre for mais exigente ou intransigente quanto a essas “adições inoportunas”, como diria o Papa Bento XVI, ele é taxado de “mal educado”, “ignorante” e “cavalo”. Numa palavra, “a besta do apocalipse”! Quantos traumas! Quanta gente hipócrita! Quantos cristãos do pau oco! E ainda há aqueles que se dizem ou se afirmam “maduros na fé”, mas, por qualquer besteira do comportamento do padre que contrarie seu desejo de auto-afirmação, mudam até de igreja, quando não, de religião. Trata-se de pessoas de mentalidade mesquinha, que não acrescentam nada à vida da comunidade. Demonstram-se ainda infantis na sua fé, e não estão prontas para receber alimento sólido, como diria a Carta aos Hebreus: “Pois, uma vez que com o tempo vós deveríeis ter-vos tornado mestres, necessitais novamente que se vos ensinem os primeiros rudimentos dos oráculos de Deus, e precisais de leite, e não de alimento sólido. De fato, aquele que ainda se amamenta não pode degustar a doutrina da justiça, pois é criancinha. Os adultos, porém, que pelo hábito possuem o senso moral exercitado para discernir o bem e o mal [como alguns dos cristãos hodiernos deveriam possuir], recebem alimento sólido” (Hb 5,12-14).
O fato é que a raiz do problema da imaturidade de fé, amiúde, está na ausência de convicções mais profundas pelas quais estamos na Igreja e, portanto, consideramo-nos discípulos de Jesus Cristo, e, não, dos padres. Do mesmo modo como o padre deve ter a consciência tranquila e serena de que sua missão evangelizadora está centrada no Cristo, vivo e ressuscitado, e em mais ninguém. Às vezes, por conta da falta de clareza quanto à certeza dessa verdade, não conseguimos distinguir a prioridade dos fundamentos da nossa fé, e nos perdemos nas repercussões de situações acidentais, não essenciais, desviando-nos da legitimidade do seguimento fiel ao Senhor que nos chama.
Agora, convém retomar ao que me aconteceu, recentemente, como acenei no início do discurso. Eu fui convidado para fazer uma palestra, uma meditação, para um grupo de pessoas que estavam reunidas no Congresso Bíblico-catequético da Arquidiocese. No final, uma senhora puxou a revista “Igreja em Notícia”, o boletim jornalístico informativo da Arquidiocese, e conferiu se a fotografia ali contida, encabeçando um artigo, seria realmente a minha. Ou seja, ela queria saber se o que estava falando, correspondia ao da foto. E era eu mesmo. Com muita liberdade, ela confidenciou ao grupo que há mais de dez anos ouvia “falar mal de mim”, e, um dia, tinha a esperança de constatar se, ao vivo, o padre Gilvan Rodrigues seria, realmente, conforme ela ouvira dizer ao longo de tantos anos. Convencida de ter sido enganada tanto tempo, viu evaporarem-se no horizonte de sua consciência anos a fio de preconceitos e mitos desnecessários à imaginação de alguém desconhecido para ela.
Não podemos permitir que outros construam, por nós, pré-conceitos sobre as pessoas. Infelizmente, há pessoas que passam a vida toda sem saber nada sobre os circundantes por conta própria, conhecendo-os apenas pelas fofocas inimigas dos invejosos e incompetentes, dissimulados, fingidos, hipócritas, disfarçados de boa gente, mas encobertos de mediocridade e vazio interior. Não é possível conhecer alguém sem o dom precioso da convivência, o que, inclusive – e ninguém é ingênuo nesse sentido – pode revelar características inesperadas e sombrias sobre os que habitam no círculo do convívio entre os iguais. Como aquela senhora, eu imagino quantas outras pessoas ainda se deixam levar pela inconveniência maldita de discursos difamatórios e levianos, de pessoas que preferem a primeira impressão à proximidade da convivência que dissipa os preconceitos e possibilita à pessoa o direito de provar quem ela é de verdade. Línguas malditas! Nem o câncer é capaz de conseguir detê-las! Lá no sertão do Carira, aprendemos que há pessoas que possuem uma língua tão grande que, quando morrerem, terão de ser levadas ao cemitério em dois caixões: um para o corpo e outro para a língua.
A língua é a mãe da maledicência, embora, às vezes, ela comece nos olhos. São Tiago não dispensou seu comentário sobre esse pequeno órgão do corpo humano: “Se alguém pensa ser religioso, nas não refreia a língua, antes se engana a si mesmo, saiba que sua religião é vã” (Tg 1,26); “Aquele que não peca no falar é realmente um homem perfeito, capaz de refrear todo o corpo. Quando pomos freio na boca dos cavalos, a fim de que nos obedeçam, conseguimos dirigir todo o corpo. Notai que também os navios, por maiores que sejam, são, entretanto, conduzidos por um pequeno leme para onde quer que a vontade do timoneiro dirija. Assim também a língua, embora seja pequeno membro do corpo, se jacta de grandes feitos! Notai como pequeno fogo incendeia floresta imensa. Ora, também a língua é fogo. Como o mundo do mal, a língua é posta entre os nossos membros maculando o corpo inteiro e pondo em chamas o ciclo da criação, inflamada como é pela Geena. [...] Mas, a língua ninguém consegue domá-la: é mal irrequieto e está cheia de veneno mortífero. Com ela bendizemos ao Senhor, nosso Pai, e com ela maldizemos os homens feitos à semelhança de Deus” (Tg 3,2-9).
É verdade que todos somos vítimas desse hábito perverso da difamação barata, gratuita. Todavia, seria muito bom que pudéssemos rever as motivações e os critérios que nos impulsionam a proceder, de modo irrefletido e apressado, na hora de julgar as pessoas pela aparência. Refletir sobre essa realidade corriqueira da vida, que provoca estragos e destruição sobre a imagem das pessoas alheias, especialmente, se não nos são simpáticas, nunca será demais, e poderá melhorar a convivência entre todos, pois ninguém é melhor do que ninguém. Cada um possui o seu “calcanhar de Aquiles”. Quem pensar que não, cuidado para não ser destruído por suas próprias certezas e convicções traiçoeiras.


terça-feira, 20 de setembro de 2011

Lex Dei, lex hominis

Lex Dei, lex hominis 



Será que a lei de Deus é igual ou superior a lei dos homens? O que será que é mais fácil colocar em prática, a lei de Deus ou a lei dos homens? Quem tem mais autoridade para fazer valer e impor os seus mandamentos? Qual delas devemos seguir, obedecer? Lex Dei, hominis! É a lei de Deus a lei do homem?. Há pouco tempo uma criança de onze anos – onze anos, imaginem só? – saiu-me com esta consideração: “Padre, para o senhor que é entendido no assunto, eu acho que já está na hora de escreverem o mais novo testamento, porque os dois que estão, aí [o Antigo e o Novo Testamentos], já não estão servindo mais para nada!”. Sem esperar uma ideia desse tipo da cabeça de uma criança, minha reação imediata foi de sorrir, e de sorrir muito! Julguei não apenas criativa a colocação, mas, também, contundentemente provocativa. Passado o expediente da recreação, depois de tentar arranjar-me com alguns comentários oportunos à sua inquietação, comecei a pensar sobre o assunto com mais seriedade. Eis, pois, que a reflexão a seguir, é fruto da inteligência aguçada de um menino.
Não é que a lei de Deus, nem seus mandamentos, nem sua proposta de conduta para elevação espiritual e interior do homem, tenham perdido a sua validade para os conturbados dias de hoje. Aliás, uma coisa que sempre julguei muito curiosa é o fato de que os mandamentos divinos nunca se perderam no meio dos caminhos tortuosos que os homens escolheram seguir por conta própria, inclusive, quando eles não são capazes de assumir as consequências infelizes de suas falsas convicções. Há quem pense que há no coração da lei de Israel “dois pesos e duas medidas”, como se aqueles que se sentem mais perto de Deus, pudessem prevaricar, ao nível de suas satisfações egoístas, o santo mandamento divino. Será, por exemplo, que a lei é uma para o povo de Deus e outra para as autoridades constituídas, isto é, aquelas que estão revestidas de algum serviço ou ministério no meio do mesmo povo? O fato é que ninguém pode considerar-se isento de colocar em prática a palavra de Deus, por meio da qual, não apenas o homem descobre a vontade divina a seu respeito, mas, sobretudo, nela, ele pode encontrar a dimensão mais profunda de sua felicidade. Não por acaso, pegando o caso específico do povo de Israel, a quem Deus confiou o Decálogo por meio de Moisés, toda a sua vida deve ser orientada para o cumprimento da lei divina sob pena de ganhar ou perder a felicidade ou as bênçãos e tudo aquilo que delas decorrem. Portanto, dentro desse contexto de apelação divina, a lei é uma só, tanto para o povo quanto para aqueles que fazem as vezes de ponte ou mediação entre Deus e o povo, como é o caso dos sacerdotes do Antigo e do Novo Testamento.
Depois que Moisés recebeu os mandamentos divinos no monte Sinai, também conhecido como monte Horeb, onde ele passou quarenta dias e quarenta noites, para desespero do povo que ficou embaixo, no pé da montanha, a vida do povo escolhido não poderia mais ser levada pelo vento dos caprichos pessoais. Desse modo, o Decálogo contém todos os tesouros da vontade divina, destinados a felicidade do homem. Eis, pois, o que afirma o livro do Deuteronômio: “Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade. Se ouvires os mandamentos de Iahweh teu Deus que hoje te ordeno – amando a Iahweh teu Deus, andando em seus caminhos e observando seus mandamentos, seus estatutos e suas normas – viverás e te multiplicarás. Iahweh teu Deus te abençoará na terra que estás entrando a fim de tomares posse dela. Contudo, se o teu coração se desviar e não ouvires, e te deixares seduzir e te prostrares diante de outros deuses [retratos da idolatria e do afastamento do verdadeiro Deus, deixando-se arrastar por situações abomináveis e pecaminosas], e os servires, eu hoje vos declaro: é certo que perecereis. [...] Eu te propus a vida ou a morte, a benção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência. Amando a Iahweh teu Deus, obedecendo à sua voz e apegando-te a ele. Porque disto depende a tua vida e o prolongamento dos teus dias” (Dt 30,15-20). Embora o texto seja extenso, ele dá-nos a dimensão exata do quanto o mandamento do Senhor é importante para a devida orientação espiritual da vida de seu povo.
Onde estaria, então, a tênue separação comportamental que pode levar alguém a intuir que há “dois pesos e duas medidas” quanto à exigência da prática dos mandamentos divinos? Essa divisão de águas comportamentais está dentro da consciência de cada um que pensa poder descartar os mandamentos divinos como se eles não fossem importantes para uma vida de santidade diante de Deus. Há aqueles que obedecem e aqueles que não obedecem. Há aqueles que fundam sua própria religião, criando seus próprios deuses e, consequentemente, inventam, de igual modo, seus mandamentos, suas concessões e regras de comportamento que nada têm a ver com a instituição religiosa do “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó”, isto é, o Deus que se deu a conhecer no Antigo Testamente e de modo pleno, no Novo, na pessoa do Filho, Jesus Cristo. Ele veio ao encontro do homem. O Beato João Paulo II já dizia que a grande diferença entre o Cristianismo e as outras religiões, era o fato de que, enquanto nas outras, o home vai à procura de Deus, no Cristianismo, Deus mesmo vem ao encontro da sua criatura, ele vem ao encontro do homem para manifestar-lhe o seu amor e a sua misericórdia. Por isso que o Deus de Israel, o Deus da Bíblia, educa o coração de seu povo, a fim de que ele lhe seja obediente e fiel, não obstante todas as dificuldades que a pobre criatura humana tem no sentido de corresponder a esse amor.
Como é possível que, depois de tantos séculos passados da escritura ou do registro da experiência do povo de Israel, na Bíblia, suas palavras ainda conservarem o mesmo frescor e vigor de há tanto tempo? Será que, realmente, a palavra da Bíblia não está ultrapassada e caduca, diante das conquistas científicas e tecnológicas da modernidade? O que a Bíblia poderia ainda dizer ao homem contemporâneo? Como pode essa mesma palavra ainda causar incômodo à consciência de tantos e servir de critérios para a distinção entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre a vontade de Deus e a vontade dos homens, tão incompatíveis com o seu desejo de autossuficiência e plenitude, longe da plenitude autêntica que é o próprio Deus? Vários rasgos da luminosidade bíblica comprovam que a vontade de Deus não mudou em relação aos homens. Manifestando seu amor eterno para com todas as suas criaturas, especialmente, para com o homem, ele desvela-se em cuidados de Pai, independentemente do que os homens pensem a seu respeito. Mudam-se os tempos e as possibilidades que favorecem ao homem progresso e civilidade mais requintada, mas, não mudam no interior do homem as dilacerações permanentes de seu desejo de infinitude, de sua sede eterna de Deus. As leis divinas são perenes, eternas, e não sofrem variação conforme soprarem os ventos da moda humana, passageira, circunstancial, totalmente, presa às conjunturas provocadas pelos métodos de libertinagem e arrogância, que somente precipitam o homem no abismo do descalabro moral e espiritual.
Precisamos ter uma consciência crítica e realista também diante das coisas de Deus, cujo pensamento não muda conforme as necessidades humanas ou segundo o exibicionismo de suas modas. Nem Jesus, o filho de Deus invalidou a lei do Antigo Testamento: “Não penseis que eu vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vi revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado” (Mt 5,17-18). Portanto, ele veio dar o sentido pleno àquilo que Deus, o seu Pai, sempre pensou e desejou como projeto de felicidade para todos e que, na expressão de São Paulo, reflete-se no sonho divino “que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus e mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus, que se deu em resgate por todos” (1Tm 2,4-6).
Enfim, o que estiver fora desse belo sonho divino de salvação, depois de todos os apelos de sua benevolência e misericórdia, não é mais responsabilidade de Deus. E, para terminar voltando ao desafio dialético de meu querido interlocutor, não será preciso escrever nenhum testamento mais novo, pois tudo já foi dito às claras. Quem tiver ouvidos, ouça.




Planta verde!


Planta Verde



Embora o título pareça ecológico, não quero apresentar, aqui, um discurso de apologia relacionada à beleza natural, que deve ser preservada por todos nós. Mesmo assim, não podemos esquecer-nos de que a Campanha da Fraternidade desse ano levou em consideração o tema da “fraternidade e da vida no planeta”. Trata-se, pois, de um esforço de reflexão no sentido de termos de levar mais a sério a urgente necessidade da preservação do “planeta azul” dentro do qual a própria sobrevivência humana corre graves riscos. E o lema “a criação inteira geme e sofre as dores do parto até o presente” (Rm 8,22), tenta despertar a consciência e a responsabilidade de todos para a circunspecção de tudo o que envolve a natureza, a fim de evitarmos a deterioração crescente, que agride a harmonia da vida no habitat original de sobrevivência de todas as espécies.
Sem querer desmerecer a preciosidade da natureza, que também é uma fonte borbulhante de inspiração, a verdade é que, por meio do vislumbre da oportuna reflexão, eu gostaria de entreter-me com um pensamento que ouvi pela Rádio Cultura, no programa do Pe. Aélio, “Cristo [está] Vivo”, que vai ao ar todas as manhãs de domingo. Ainda no mês da Bíblia, o Pe. Aélio perguntava aos seus ouvintes qual o tipo de relacionamento que as pessoas tinham com a Bíblia. Então, uma senhora respondeu, com muita simplicidade e convicção, esta jóia de ponto de vista: “A gente com a Bíblia é como uma planta verde!”. Certamente, uma demonstração de que as pessoas simples também são capazes de traduzir seus sentimentos em expressões claras e objetivas, qual surpreendentes pérolas de sabedoria. Não sei, ao certo, em que ela inspirou-se para dar a sua resposta. Todavia, como na criatividade do escritor tudo pode ser motivo de estímulo à elaboração de novas ideias, pensei que seria a ocasião de trazer a lume um tema tão pertinente quanto à meditação da palavra de Deus na vida dos cristãos, dos seguidores de Jesus, ou de todos os homens de boa vontade que se servem da iluminação do pensamento bíblico para aprofundar o conhecimento da vontade divina e, de modo consequente, firmar os seus passos na elevação interior do espírito diante de Deus.
Quem tem o hábito de ler as páginas sagradas sabe, muito bem, que uma das substâncias essenciais da literatura poética sapiencial bíblia está fundamentada na vida bucólica, isto é, na inspiração dos dons da natureza, com que o escritor sagrado atualiza seus ensinamentos, mostrando comparações belíssimas, cotejos de raro esplendor e coincidência intuitiva. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, encontramos exemplos sobejos nesse contexto de confrontos entre a vida humana e natural. Cito apenas alguns exemplos crus, sem recorrer à explicação teológica, para aperitivo de meus amados leitores. Se pegarmos o profeta Isaías, leremos: “Cantarei a meu amado o cântico do meu amigo para a sua vinha. Meu amado tinha uma vinha numa encosta estéril. Ele cavou-a, removeu a pedra e plantou nela uma vinha de uvas vermelhas. No meio dela construiu uma torre e cavou um lagar. Com isto, esperava que ela produzisse uvas boas, mas só produziram uvas azedas” (Is 5,1-2); “O justo brota como a palmeira, cresce como o cedro do Líbano. Plantados na casa de Iahweh, brotam nos átrios do nosso Deus” (Sl 92,13-13); “Como a corça bramindo por águas correntes, assim minha alma brame por ti, ó meus Deus!” (Sl 42,1); “Eis que virão dias – oráculo do Senhor Iahweh – em que enviarei fome à terra, não fome de pão, nem sede de água, mas de ouvir a palavra de Iahweh” (Am 8,11).
No NT, Jesus também recorreu a parábolas tiradas do convívio agrícola, com a intenção de transmitir seu ensinamento aos discípulos. O clima do Oriente Médio está profundamente evidenciado pela vida no campo onde encontramos pastores de ovelhas cuidando de seu rebanho. Com vistas para essa realidade pastoril, influenciada pela necessidade de mudança de lugares, como estabelecendo contato com território onde as fontes de água sejam mais abundantes, Jesus vê o povo disperso e desiludido, perdido e desorientado, “como ovelhas sem pastor”. Assim, tendo consciência do papel do verdadeiro Pastor, ele apresenta-se como o “bom Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas” (Jo 10), diferentemente dos maus pastores, duramente criticado por ele e pelos profetas do Antigo Testamento (Ez 34). Portanto, para deter-nos mais naquilo a que estamos referindo-nos, vejamos com que bela metáfora Jesus demonstra-se relacionado com o seu povo eleito, o seu “pequenino rebanho” (Lc 12, 32), ao pensar na agricultura: “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor. Todo ramo em mim que não produz fruto, ele o corta, e todo o que produz fruto ele o poda, para que produza mais fruto ainda. [...] Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanece na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim” (Jo 15,1-4).
Voltando à expressão inicial, “a gente com a Bíblia é como uma planta verde”, eis a tradução perfeita do que podemos ir buscar no Salmo primeiro: “Feliz o homem que não vai ao conselho dos ímpios, não para no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos zombadores. Pelo contrário: seu prazer está na lei de Iahweh, e medita sua lei, dia e noite. Ele é como árvore plantada junto a riachos: dá seu fruto no tempo devido e suas folhas nunca murcham; tudo o que ele faz é bem sucedido” (Sl 1,1-3). Dito de outra maneira, poderíamos, inclusive, afirmar com o Eclesiastes que “nada há de novo debaixo do sol” (cf. 1,9), embora existam muitas coisas velhas que não as conhecemos ainda. Mas, o que será que a expressão do salmista significa diante da mente e do coração reflexivo que para diante da Palavra de Deus? Na verdade, a vida do homem que procura levar em consideração os desígnios divinos para sua felicidade, mormente, tentando pautar a sua vida pela vontade de Deus, caminha numa direção totalmente bem-aventurada, feliz, por que distante de seus projetos pessoais.
A verdade é que nem sempre a caduquice humana encontra a devida lucidez quanto à atitude interior que a Palavra do Senhor inspira-lhe. Todavia, há intuições luminosas que podem ajudar-nos no redirecionamento da existência, na mudança da rota dos vícios, ou ainda, da conversão exigida pela consciência serena de que Deus sabe o que é melhor para nós, mesmo quando seus pensamentos estão muito acima dos nossos (Is 55). Tudo isso podemos ir buscar na Bíblia, na Palavra de Deus, que está ao alcance de nossa mão e ao nível da compreensão de nossa inteligência. De fato, assim fala o Senhor Deus: “Porque este mandamento que hoje te ordeno não é excessivo para ti, nem está fora do teu alcance. Ele não está no céu, para que fiques dizendo: ‘Quem subiria por nós até o céu, para trazê-lo a nós, para que possamos ouvi-lo e pô-lo em prática?’ E não está no além-mar, para que fiques dizendo: ‘quem atravessaria o mar por nós, para trazê-lo a nós, para que possamos ouvi-lo e pô-lo em prática?’ Sim, porque a palavra está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração, para que a ponhas em prática” (Dt 30,11-14). Mais claro do que isso, somente fazendo uma entrevista direta com Deus, de modo que ele transmita, mais pessoalmente, suas devidas explicações aos de espírito fechado e obtuso.
A “planta verde” a que a senhora se referiu pela Rádio Cultura, é a mesma plantada à beira dos regatos como o demonstra o salmista. Sempre verdejante por que alimentada pela seiva que lhe robustece o caule, os ramos e as folhas e, assim, todo o seu organismo, ela é comparável a quem se deixa conduzir pela palavra da revelação bíblica. Por meio dela, é Deus mesmo quem fala aos seus filhos. Por conseguinte, “meditá-la dia e noite” (Sl 1,2) nada mais significa do que permitir que toda a nossa existência seja iluminada pela lei divina, a fim de que tudo seja bem sucedido e não se perca como acontece na vida dos ímpios, na vida daqueles que fazem de Deus e de sua palavra os apelos convenientes apenas aos caprichos de suas vontades e pretextos. A vida humana embebida pela sabedoria da palavra divina, sobretudo, pela palavra divina encarnada, isto é, Jesus Cristo, a única palavra de Deus apresentada à nossa humanidade, com certeza encontrará a plenitude pela qual ele mesmo se fez o rio de Deus, concretamente presente na terra, saciando toda a sede de nossas insuficiências e dilacerações espirituais.







quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A Excelência da morte de Cristo

A excelência da morte de Cristo



A beleza ou excelência da morte de Cristo sobre a cruz, poderíamos dizer, brota do aspecto sublime de sua divindade não atingida pela morte humana. Como é belo podermos aprofundar e intuir mais intensamente os segredos da morte do Filho de Deus!. Como é belo compreendermos um pouco mais o sentido da cruz com que nos benzemos – ou nos persignamos – em tantos momentos da nossa vida!. A literatura cristã jamais se cansará de debruçar-se sobre o ícone do Crucificado!. Jamais esgotará a riqueza de seu mistério, de sua indecifrável beleza!. E sempre atrairá o olhar dos incrédulos aos encantos místicos de sua perenidade.
A humanidade de Cristo atravessada pelo sofrimento e pela dor está plena de imortalidade. Da imortalidade divina, que não veio ao mundo para acabar-se nas incongruências devastadoras do pecado. No dia catorze de setembro, a Igreja celebra a Exaltação da Cruz de Cristo para a qual devemos elevar os nossos olhares, a fim de vencermos as correntezas do mundo com Aquele que disse: “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem, eu venci o mundo” (Jo 16,33). Desse modo, com o olhar fixo em Jesus (Hb 12), podemos entender melhor o sentido do pensamento de Santo Agostinho: “Ninguém poderá atravessar o mar deste século [isto é, deste mundo] se não for carregado pela cruz de Cristo”. De fato, como diz o profeta Isaías, “eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si, as nossas dores que ele carregava” (Is 53, 4). Mesmo reconhecendo que “o Cristianismo não descobriu a cruz”, um autor moderno, Anselm Grün, considera o seguinte: “Independentemente da morte de Jesus na cruz, ela já é um sinal de salvação, um sinal que nos indica a verdadeira vida, que deseja nos mostrar como a vida humana pode dar certo. Em Israel, o ‘T’ é um sinal de salvação e proteção. Assim diz Ezequiel 9,4: ‘Javé falou com ele: ‘Percorra a cidade de Jerusalém e marque com um T a testa de todos os homens que estiverem se lamentando e gemendo por causa das abominações que se fazem no meio dela’. Quem está selado com o T, será preservado da aniquilação. Os cristãos primitivos referem-se a esse versículo para explicar por que marcam a testa com o sinal da cruz. O sinal da cruz que os cristãos desenham sobre suas testas, é um selo escatológico, um sinal de salvamento quando o mundo chega a seu fim, e um sinal de posse, propriedade, proteção e consagração. Quem se benze com a cruz pertence inteiramente a Cristo, consagra-se a ele e experimenta a partir dele proteção em todas as aflições desse tempo”.
Apesar da recusa dos sinais sagrados, a figura do crucifixo é de um valor fundamental para os cristãos, pelo fato de ter se tornado instrumento de salvação. Sobre a cruz, morreu Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Salvador da humanidade inteira, não somente dos cristãos, mas de todos os povos, raças e nações. Mais ainda: pelo fato de ele ser o salvador universal, seu gesto salvífico atravessa os séculos, de geração em geração, atingindo o último dos viventes, e, de igual maneira, retroage pelo tempo afora, chegando até Adão. É que o ato de Cristo sobre o altar da cruz não está preso às circunstâncias temporais do acontecimento em si. Todavia, ele se desdobra, misteriosamente, abarcando todo o arco da história da civilização humana. A ação de Cristo é um ato eterno. Por isso que dizemos que sua própria mãe também foi salva em previsão dos méritos de Cristo, o seu divino Filho. Então, ninguém precisa mais se esforçar para ser salvo? Calma, aí! Também não vamos exagerar. Nossa teologia não é protestante. Ela não nasce da concepção luterana, em que basta a graça – “sola gratia” – para que a pessoa seja salva. Foi Santo Agostinho quem asseverou: “Quem te criou sem ti, não te salva sem ti!”. Embora a graça de Cristo seja transbordante na gratuidade de seu amor, nós, por nossa vez, devemos dar nosso assentimento ao seu projeto salvador. Olhar e abraçar a cruz de Cristo significa entrar no mistério que envolve toda a nossa existência.
Ninguém pode fugir da realidade da cruz que perpassa os conflitos do quotidiano. Segundo nosso autor, Anselm Grün – estudando São Justino – esse santo “vê a cruz realizada na forma do ser humano de braços abertos. A cruz é uma imagem para a união dos opostos e, justamente assim, uma imagem para o ser humano que, dentro de si, não é uniforme, inequívoco e coerente, mas cheio de contradições, porque reúne dentro de si espírito e matéria, anjo e animal, ser humano e Deus. Somente quando aceita a estrutura da cruz, o ser humano torna-se inteiramente ele mesmo. O elemento vertical, fincado na terra e estendido ao céu, é uma imagem do ser humano que está estendido entre céu e terra”. Até por meio dessa aparentemente simples constatação, o homem encontra-se preso à condição da cruz. Daí que: “Nos Padres da Igreja, as abordagens da vida a partir da cruz ocupam um grande espaço. Não adianta nada levar o sinal da cruz simplesmente consigo, quando não se está disposto a tomar e carregar a cruz todos os dias. Carregar a cruz significa para os cristãos antigos, por um lado, estar pronto para o martírio e, por outro, superar os perigos que brotam de seu próprio interior e aceitar os sofrimentos e as tristezas da existência [que são tantas]. Carregar a cruz significa, sobretudo, suportar paciente e persistentemente o que Deus permite ocorrer em nossas vidas: perseguições, sofrimentos, tristezas, feridas, humilhações, decepções” (Anselm Grün). Infelizmente, as dificuldades da vida não coincidem com a simplicidade das palavras. Cada um de nós deve reconhecer, sob o peso de suas experiências, a dramaticidade e a dureza dessas palavras. O Cardeal Van Thuan, Servo de Deus, depois de suportar tanto sofrimento por conta das perseguições, tendo sido afastado do pastoreio de sua Arquidiocese em Saigon, no Norte do Vietnã, reconheceu, com muita paciência e perseverança na vida bruta do cárcere, que a cruz é a primeira letra do alfabeto de Deus. Que alfabeto!.
Agora, reconsiderando a sublimidade da morte de Cristo, lembro-me de que, um dia, visitando a cidade de Riachuelo, com o Pe. Gilson Garcia de Melo, ele mostrou-me os olhos abertos de Cristo, presente na sacristia da Igreja matriz. Na ocasião, não eu tinha ideia do sentido de seus olhos abertos. Pensamos, inclusive, que fosse o retrato de Cristo agonizando antes de morrer, mas, não. Ele, mesmo com os olhos abertos, estava morto. O Filho de Deus experimentara, em toda a sua plenitude, todas as dilacerações que estraçalham o coração humano, apontando sua necessidade ou desejo de infinitude. No entanto, seus olhos abertos na cruz expressam o vislumbre de sua imortalidade. Retomemos o pensamento de nosso autor, Anselm Grün: “A partir do século VI, Cristo é frequentemente representado na cruz, vestido com uma túnica, por exemplo, no Códice Siríaco de Rábulas. Embora Cristo esteja morto, seus olhos estão abertos. Isso é um sinal de que sua divindade não foi atingida pela morte. A Igreja antiga compara Cristo a um leão. Diz-se do leão que seus olhos vigiam enquanto ele dorme em sua toca. Cristo é o leão místico. Para ele, o sono místico é a morte corporal na cruz. Mas, ao mesmo tempo, ele vigia com sua divindade”. Que mistério extraordinário!. Como não pensar na oração do salmista que reza: “Não dorme nem cochila aquele que é o vigia de Israel!”.
Por cima de nossas inquietações e angústias, tristezas e dilacerações, o Cristo da cruz vigia sobre cada instante da nossa vida. Assim, somos convidados a não perder a esperança, se nossos olhares distraídos e distantes não dão conta de vislumbrar o alcance de sua presença mística em cada segundo de nosso existir. Como tudo seria diferente na nossa vida, se não nos esquecêssemos disso!. Pena que as carências desregradas de nosso desejo de autossuficiência não se satisfaçam plenamente com a clareza dessa verdade!. De posse dessa constatação aflitiva, olhemos com humildade para o Senhor da Cruz, nosso eterno Salvador, aceitando a orientação de São João Crisóstomos, citado por Anselm Grün: “Não tenhamos vergonha de confessar nossa pertença ao Crucificado! Selemos confiantemente nossa fronte com o dedo, façamos o sinal da cruz sobre tudo, sobre o pão que comemos, sobre o copo que bebemos! Façamo-lo ao ir e vir, antes de dormir, aos deitar-nos e levantar-nos, ao caminhar e ao descansar. Esse meio de proteção é poderoso. É gratuito por causa dos pobres, por causa dos fracos não exige esforços. Pois a graça vem de Deus. A cruz é o distintivo dos crentes, o terror dos demônios. ‘Pois Cristo triunfou sobre eles pela cruz, expondo-os abertamente’ (Colossenses 2,15). Cada vez que veem a cruz, eles se lembram do Crucificado. Ele tem medo daquele que os esmagou, pisoteando as cabeças do dragão”. Aliados de Cristo crucificado, com certeza, nossa vitória é certa. Na verdade, não por acaso, os santos vivem uma dimensão diferente das realidades humanas, pois eles estão sempre mergulhados na própria vida e santidade de Cristo, o Redentor.





segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Amém!


Amém



O “amém” apresenta-se no contexto de todas as orações litúrgicas ou não, no sentido de uma confirmação final da aceitação de todas as verdades nelas contidas. Ele manifesta a serenidade de quem, mesmo sem entender o alcance teológico e espiritual de sua oração, dispõe-se a ver, nas entrelinhas de suas preces, o conteúdo perene das verdades que nossos lábios pronunciam em concordância à nossa inteligência, vontade e, sobretudo, em sintonia com os louvores sinceros e verdadeiros que brotam do fundo no nosso coração ou do coração da Igreja de Jesus Cristo que, também, ensina-nos a rezar.
A origem da palavra “amém” encontra-se enraizada na dinâmica vocabular do Antigo Testamento. Etimologicamente de ordem hebraica, segundo Schlier, ela pode ser usada tanto de modo singular quanto coletivo, e serve para confirmar a aceitação de um cargo confiado por homens, pela execução do qual se tem a necessidade da positiva vontade de Deus (1Rs 1,36). Entre outros significados, também, apresenta-se como atestação de louvor a Deus na resposta de uma doxologia (1Cr 16,36, Ne 8,6), e, igualmente, no final da doxologia nos primeiros quatro livros do saltério (Sl 41,14; 72,19; 89,53; 106,48). Em todos esses casos, o ’āmēn constitui, portanto, o reconhecimento de determinadas palavras como “certas”, enquanto vinculadas à força do reconhecimento por quem as pronuncia e por todos. Logo, o vocábulo “amém” significa que o que foi dito é considerado como certo e válido, conforme a concepção de Gerhard. Sem dúvida, estamos diante de seu significado mais remoto, mais antigo, enquanto outras atribuições foram aparecendo no contexto literário da cultura bíblico-hebraica. E o mesmo autor acima referido, encarrega-se de ampliar o leque de posteriores desdobramentos de seu conteúdo. Por exemplo, ele afirma que o uso de ’āmēn no judaísmo é muito difuso e disciplinado em seus particulares, possuindo um valor extraordinário. No culto da sinagoga, o “amém” é encontrado como resposta da comunidade, “depois de cada palavra pronunciada pelo presidente da assembleia, junto às orações ou em outras ocasiões” e “depois de cada uma das três partes da bênção aarônica de Nm 6,24-26, concedida pelos sacerdotes”. Era, pois, a profissão de fé a Deus, que era proposta à comunidade que a assumia como própria em sua resposta. Também, era o reconhecimento da bênção divina oferecida à comunidade, que a tornava eficaz em relação ao seu “amém”. Tanto diante da bênção quanto da maldição, quem respondia a elas com o “amém”, ficava à mercê das disposições que elas encerravam.
No que concerne à ideia do “amém” no NT e no cristianismo primitivo, esse termo não foi traduzido, mas transcrito, de maneira que as letras hebraicas pudessem ser codificadas no alfabeto grego, no latino e assim por diante. Nesse novo contexto, ela vem usada de três modos. Inicialmente, como aclamação litúrgica no culto cristão, conforme 1Cor 14,16; ou como em Ap 5,14, no culto celeste em que as quatro bestas respondem com o “amém” ao louvor elevado por todas as criaturas. Depois, as orações e doxologias cristãs, amiúde, terminam com “amém” (Rm 12,25; 9,5; 11,36; 16,27; Gl 1,5; Ef 3,21; Fl 4,20; 1Tm 1, 17; 6,16; 2Tm 4,18; Hb 13,21; 1Pd 4,11). Todavia, isso não significa que aquele que ora confirme suas próprias palavras, mas somente que a oração e a doxologia possuem o seu lugar no culto diante do povo, cuja resposta elas acolhem ou antecipam. Portanto, é nesse sentido que se pode interpretar, também, o “amém” colocado como conclusão de uma palavra profética (Ap 1,7; Rm 15,33; Gl 6,8 no final das cartas, no final do livro como em Ap 22,20). Em síntese, a constatação de que o “amém” cristão tenha mantido o seu íntimo sentido originário pode-se deduzir de três passos do NT: em Ap 1,7, o “amém” aparece ao lado de um “sim”; mas Ap 22,20, chama a atenção sobre o fato de que o “amém” é a resposta da “assembleia” a um “sim” divino. Esse “sim” não introduz a oração escatológica, mas é o reconhecimento da promessa divina, graças à qual é possível dizer a oração. Logo, o “amém” da comunidade torna o “sim” divino válido em sua relação com Ele. De maneira analógica, podemos compreender o “amém” de 1Cor 1,20. Com efeito, como Cristo é o “sim” de Deus, o cumprimento de suas promessas, pois através da promessa dele manifesta-se o “amém”, a resposta da comunidade ao “sim” de Deus, que o torna certo e firme em seus membros. Assim, o próprio Cristo, em reminiscência a Isaías 65,16, pode ser chamado o “Amém” (Ap 3,14), e o sentido desse apelativo pode ser explicado com as palavras: “Assim fala o Amém, a Testemunha fiel e verdadeira, o Princípio da criação de Deus” (Ap 3,14). Ou seja, a resposta que ele dá ao “sim” de Deus, é ele mesmo. Consequentemente, segundo a visão de Gerhard, enquanto ele dá reconhecimento e obediência ao “sim” divino, com o qual ele se identifica, ele se torna, então, o seguro e autêntico testemunho de Deus.
Logicamente, conforme as proposições desse autor, podemos perceber na vida prática de Cristo, na sua incondicional submissão a Deus, a largura e o comprimento dessa disposição interior para se tornar o “Amém” do Criador em seu projeto salvífico. Com certeza, o “amém” de Jesus traduz a verdade total com que ele se entregou à concretude definitiva das promessas de Deus, o seu Pai celestial. “Por isso, ao entrar no mundo, ele afirmou: Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, formaste-me um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não foram do teu agrado. Por isso eu digo: Eis-me aqui, – no rolo do livro está escrito a meu respeito – eu vim, ó Deus, para fazer tua vontade” (Hb 10,5-7). Nesse contexto de fidelidade ao Pai, é como se ele dissesse: “Eis que venho, ó Pai, para fazer a tua vontade, isto é, para dizer-lhe o ‘amém’ radical com que me submeto à tua vontade santíssima”. Eis a plenitude do “amém” de Cristo, dado ao Pai em favor da humanidade pecadora.
O último e terceiro aspecto do “amém” apresentado por Schlier, no âmbito do NT e do cristianismo primitivo, é aquele que perpassou os séculos fazendo parte e subsistindo na comunidade cristã, e que foi preservado, mais do que nunca por Jesus Cristo, sendo colocado antes de suas palavras nos evangelhos sinóticos. Sob esse prisma, ele aparece 30 vezes em Mateus, 13 em Marcos, e 6 em Lucas, e, no evangelho de João, 25 vezes, “liturgicamente redobrado”. Mas, em todo o NT, aparece 128 vezes. Inserida nas entrelinhas, a intenção pedagógica e espiritual de Jesus ao colocar o “amém” antes de vários seus discursos, enfatiza, de modo especial, a qualificação de que suas palavras são certas, confiantes e válidas, no sentido de que Jesus declara no “amém” a própria fé depositada nelas. Evidentemente, vez por outra, tais palavras podem ter significados diversos, embora sempre façam referência ao Reino de Deus e à relação de Jesus com ele. Para concluir, Schlier alude à conotação do “amém” diante de “vos digo” – “em verdade [amém] vos digo” (Mt 5,18.26; 6,2.5.16, somente para citar alguns exemplos) –, contém, in nuce, isto é, como numa semente que esconde sua potencialidade inteira, toda a sua cristologia, qual seja: aquele que pronuncia a própria palavra como verdadeira e, consequentemente, certa é, ao mesmo tempo, aquele que declara a própria fé nela, inserindo-a na vida e tornando-a, enquanto realizada, imperativa em relação aos outros.
Inspirados no “amém” de Jesus, dito de maneira incondicional e consciente ao Pai – não como uma expressão vazia do empobrecimento da compreensão da nossa fé, mas como uma adesão sincera de confiança e abandono à vontade divina –, que estejamos sempre cônscios de que a verdade de Deus proclamada, livremente, pelos nossos lábios assume uma incidência concreta na nossa vida cristã, abrindo-nos, assim, à riqueza inaudita do louvor e da gratidão pelo mistério redentor da nossa bendita salvação. Amém!