quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

 

Jejum como atitude penitencial

 

O jejum deve ser fruto de uma necessidade penitencial no sentido profundo do desejo de conversão. Portanto, não se trata apenas de uma prática de dieta ou vontade de emagrecer por meio dele, embora nos tempos modernos muitas pessoas recorram ao jejum, buscando melhorar seu condicionamento físico, o que não seria um problema. Contudo, se essa fosse a intenção primeira de quem se dispõe a fazer algum tipo de sacrifício pela abstenção de alimentos, estaríamos muito distantes do propósito da reflexão, e ela nada teria a nos dizer sobre a necessidade da “humilhação da alma” diante de Deus, segundo uma das expressões judaicas relacionadas à prática do jejum que descrevemos. Todavia, o jejum que Deus pede do seu povo deve ser reflexo do comportamento mais condizente com o espírito do próprio jejum, isto é, ele deve expressar também práticas de paz e concórdia em meio aos irmãos. Essa é a razão da crítica dos profetas diante de atitudes meramente externas do jejum que não revelam o sentido profundo dos desejos do coração.

Na visão de Anselm Grün, que estudou profundamente os vários sentidos do verdadeiro jejum, “a discórdia nasce da ausência de medida, da dominação pelas paixões e pelos instintos. O jejum submete o ser humano à disciplina, liberta-o do domínio das suas paixões e, assim, proporciona-lhe a paz interior. [...] Desse modo, nos Padres da Igreja, evidencia-se continuamente uma compreensão do jejum que pressupõe a unidade entre corpo e alma. Eles nunca se preocupam simplesmente com a saúde do corpo, tampouco simplesmente com a cura do espírito”. (Grün, 2013, p. 30). Dentro dessa dinâmica que envolve a percepção do homem integral, “o jejum jamais é uma simples disciplina exterior, uma obra que podemos apresentar a Deus, e sim um exercício que visa conduzir todo o ser humano a um estado adequado. O jejum corporal tem que estar acompanhado de um jejum espiritual, ou melhor: o jejum corporal bem compreendido é sempre, ao mesmo tempo, um jejum espiritual”. (Grün, 2013, p. 31). Essa compreensão é muito significativa e está subjacente à dura crítica que Cristo faz aos fariseus, preocupados apenas com o ritualismo externo, que não permeia o espírito nem o motiva à conversão sincera. É o que acontece quando Jesus fala do fariseu e do publicano que subiram ao tempo para rezar. O fariseu se vangloriou tanto, inclusive por jejuar duas vezes por semana, que não voltou para casa justificado. No seu interior, se exaltava e desprezava os outros. (Lc 18,9-14). Qualquer pessoa consciente de suas atitudes sabe que adequar o corpo aos imperativos do espírito não é tarefa fácil. Podemos fingir diante dos outros, mas nunca disfarçaremos a aflição que carregamos dentro de nós pelos vendavais das incoerências que nos contorcem interiormente. Nesse contexto, a conversão é uma caminhada em direção a Deus e contra nós mesmos, contra nossos instintos e apetites, contra todas as frestas abertas na alma pela concupiscência que nos dilacera. Que tremendo desafio!

A “concupiscência” traduz, de modo negativo, todos os anseios do espírito que nos puxam para baixo, que não nos permitem elevar-nos à transcendência. A concupiscência é a casa dos nossos pecados. É o olimpo dos deuses infernais que nos perturbam, que nos desorientam no caminho da perfeição.

No contexto joanino, a “concupiscência” está relacionada ao desejo das coisas especialmente proibidas. Na verdade, esse é o terreno de nossas lutas, sobretudo, espirituais: vencer em nós o que contraria a vontade de Deus. Desse modo, epithymia e kosmos são termos correlatos, pois ambos participam do mesmo universo teológico do contexto soteriológico. Essa é a razão pela qual “o mundo em sentido teológico é o mundo como cenário do processo da salvação; ele não é somente o cenário, mas é um dos protagonistas do drama, pois o mundo é a humanidade decaída, alienada de Deus e hostil a Deus e a Jesus Cristo. Essa concepção é frequentíssima nos escritos paulinos e em Jo, menos frequente nas cartas, quase totalmente ausente nos evangelhos sinóticos. O mundo está em oposição a Deus: o espírito do mundo é contrário ao espírito de Deus (1Cor 2,12)”. (Mckenzie, 1983, p. 637).

Numa profunda reflexão sobre “Blaise Pascal, conversão e apologética”, Gouhier assevera que “a alma convertida encontra-se voltada para Deus. Ora, o amor de Deus só pode ser exclusivo; ele exclui, portanto, o amor de si. Essa é a própria essência da vida espiritual. Mas, na união propriamente mística, o amor de si desaparece com o eu; à ausência do eu corresponde um estado de indiferença a tudo o que lhe concerne: o amor exclusivo de Deus é também o esquecimento de si. Na perspectiva de Pascal, o aniquilamento proclama que a queda fez cair meu ser sob a cólera de Deus e que faço minha essa cólera: a conversão substitui o amor-próprio, que desde o pecado põe o eu no lugar de Deus, pelo amor de Deus [...]”. (Gouhier, 2005, p. 77). É, pois, justamente na direção da conversão, a metanoia, para usar a expressão grega, que deve nos levar o jejum, mesmo que haja quem defenda a abstinência de alimentos como um esforço de busca de si, de sua identidade mais profunda, o que é também evidentemente válido.

Na visão de Balbinot, por exemplo, “o jejum está relacionado à experiência humana intencional de privação dos produtos que suprem as necessidades fisiológicas. Por que se faria isso? Não seria uma ação conta a própria natureza infligir o castigo contra si próprio? O jejum é a renúncia voluntária de saciar-se fisicamente com a intenção de estar em maior sintonia com as questões ontológicas interiores, que determinam o sentido do ser. [...] o jejum, para muitas pessoas, não passa de um tempo de espera pela comida, quando, na verdade, deveria ser um tempo de reflexão sobre a vida e o ser. A fome não pode ser confundida com o jejum, pois é uma ameaça à existência. O jejum é ação pedagógica e espiritual que possibilita vivenciar uma situação de carência para entender e aprender a viver bem, mesmo em situações extremas”. (Balbinot, 2015, p. 48-49).

A santidade é outro apelo da Igreja numa trajetória de vida que dura a existência inteira, até o fim, até o céu. Por isso, no contexto da espiritualidade do jejum, abre-se, de igual modo, a senda dos desafios para a santidade nos conturbados tempos modernos.

Tanto quanto a oração, o jejum também deve nos conduzir a humildade, pois ele “nos confronta com nós mesmos, com todos os nossos desejos e necessidades, nossos sentimentos e pensamentos, com nossas sombras. Reconhecer as próprias sombras nos torna mais humildes. Além disso, o jejum nos conduz aos nossos limites. [...] O jejum nos confronta com nossa própria carência. Não somos suficientes para nós mesmos, não possuímos o sossego dentro de nós. Quem está sentado diante de Deus e sente fome sente também seu anseio de satisfação”. (Grün, 2013, p. 46-47). Numa palavra, pelo jejum, podemos reconhecer nossas insuficiências mais profundas e, assim, recorrer ao auxílio divino que nos plenifica, com o dom da graça sobrenatural. (Do livro “O sentido do jejum cristão, p. 47-56 – Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos).

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

 

Trilogia Judaica – Cantos do Gueto (Sarah Gorby)

(Dos Arquivos do então Instituto Dom Luciano Duarte) 

 

Para fazer memória do dia em que Dom Luciano Duarte comemoraria 76 anos de ministério sacerdotal (18 de aneiro de 1948), gostaria de apresentar-lhe a “Trilogia judaica – cantos do gueto”, a que fui convidado a analisar quando ainda existia o Instituto Dom Luciano Duarte. Isso também fez parte do patrimônio cultural da personalidade de quem, por sinal, dentro de um ano, estaremos celebrando o centenário de seu nascimento (1925-2025). Portanto, ei-lo:

O universo cultural do homem sempre atravessa as fronteiras de suas percepções e sensibilidades, sobretudo quando ele está voluntariamente devotado ao enriquecimento das apreensões elásticas do saber erudito. Sem sombra de dúvidas, isso poderia ser dito sobre Dom Luciano José Cabral Duarte que nunca se deixou vencer pelas fatigas acadêmicas, por mais que as gavetas de seu espírito já estivessem ocupadas. Ainda bem que o conhecimento não ocupa lugar na inteligência como poderia acontecer com os bens materiais que acumulamos nas gavetas e dos quais, vez por outra, temos de nos desfazer! Mas isso é privilégio do homo sapiens que, pela artimanha da intelecção, projeta dentro de si o mundo exterior, maravilhando-se, assim, pelo fascínio das possiblidades de suas descobertas.

Convidado para analisar o conteúdo da Trilogia Judaica, que envolve Cantos do Gueto, Cânticos dos cânticos e Cantos judaico-espanhóis do século XVI, embalados pela voz cândida e solene de Sarah Gorby, o contexto histórico por si mesmo fala profundamente de um tempo em que os judeus viviam a experiência dolorosa de mais uma diáspora. Com efeito, é isso mesmo que o canto reflete no conteúdo doloroso de pais e mães que sofrem a tristeza do distanciamento dos filhos pela covardia da brutalidade humana com que são perseguidos, torturados, psicológica e espiritualmente, nas dobras mais recônditas e profundas da alma que silencia o grito sufocante do desespero.

Marcadamente o fato histórico de 1942, quando os judeus foram expulsos da Espanha, encheu de angústia e lágrimas a vida de muitos espanhóis dessa etnia, como tantas outras vicissitudes o fizeram ao longo dos séculos, o que se estendeu também pelo século XVI e até os nossos dias. Certamente, temos de recorrer a alguns dados históricos se quisermos adentrar no âmbito da situação judaica, especialmente do conhecido mundo sefardita, isto é, de toda a conjuntura que concerne aos judeus da Espanha. Segundo o Dicionário Enciclopédico do Judaísmo, em nossos dias, o judaísmo compreende dois componentes principais: o asquenaze e o sefardita. Os sefarditas deveriam tirar o seu nome do país onde viveram seus ancestrais na Idade Média, de modo que o termo sefardita designa tradicionalmente a Espanha. Trata-se, na verdade, de um hápax da Bíblia (palavra que aparece apenas uma vez), citado no livro de Abdias (v.20), que anuncia que os “exilados de Jerusalém, que estão em Safarad, tomarão posse das cidades do Negueb”. Portanto, para a crítica bíblica, esse topônimo se aplica, então, à cidade de Sardes na Ásia Menor, e os primeiros comentadores judeus se tornaram Safarad pela Espanha. Em 1917, sob o mandato britânico, estabeleceu-se a dualidade rabínica (ritual ou litúrgica) Asquenaze-Sefardita, de modo que todos aqueles que pela filiação não eram asquenazes pertenciam ao grupo dos sefarditas. Mais tarde, no encontro acontecido em Amsterdam, organizado de 14 a 17 de 1971 pela Federação Sefardita Mundial, tomou-se para si o pragmatismo israelense que apregoava a declaração de Élie Éliyachar: “Chamo Sefardim (plural hebraico de sefardita) todos aqueles que não são Asquenazim (plural hebraico de asquenaze)”. (W., Geoffrey et al, 1996, p. 1234). Quanto a esse último nome, também julgo necessário algum esclarecimento para os que não estão muito afeitos a tal terminologia. O dicionário Aurélio afirma: “Do hebr. ashquenazi, do top. bíblico Ashkenaz, posteriormente atribuído à Alemanha medieval.]”; e ainda: “Relativo a, ou próprio dos asquenazes, ou do judaísmo da Europa central e oriental”. Portanto, sem maiores detalhes, pois a intenção é a de tão somente situar a compreensão do leitor, esse grupo surge das numerosas comunidades originadas da Polônia, da Alemanha, da Holanda, da Áustria, da Tchecoslováquia, da Iugoslávia e da Grécia, entre outros países como o bloco da União Soviética (antiga), Romênia e Hungria. (W., Geoffrey et al, 1996, p. 1339). Voltando à conjuntura sefardita, que é a que nos interessa no momento, as mudanças comerciais, demográficas e culturais que sempre aconteceram antes e depois da expulsão dos judeus da Espanha, vividas entre as comunidades judaicas da bacia do Mediterrâneo permitem falar de “sefardização” e de “região sefardita”.

Já na Idade Média, mesmo que a civilização sefardita seja diferente daquela dos Judeus da Europa do Norte, ela está muito próxima dos Judeus da África do Norte e do Oriente, de modo que existe uma espécie de civilização comum a todas as comunidades judaicas. (W., Geoffrey et al, 1996, p. 1234). Consequentemente, esse mosaico de considerações apresentado teve por objetivo contextualizar melhor o sentido e a compreensão da Trilogia judaica ensaiada por Sarah Gorby. Nascida no ano de 1900, em Chisinau, capital, a maior e mais importante cidade da Moldávia, sua voz imortalizou “Les inoubliables chants du Ghetto”, um álbum musical lançado em 1976.

Perlustrando o conteúdo das músicas traduzidas para o português com títulos em espanhol e outras línguas, graças ao pequeno, mas significativo acervo adquirido por Dom Luciano Duarte, podemos intuir a grandeza da experiência transmitida pela voz de Sarah Gorby em tempos difíceis para os membros da comunidade judaica. Mas antes de adentrarmos em terras mais profundas da linguística judaica de cantos de sofrimento e de esperança, de contratempos e de arroubos de entusiasmo em meio às intempéries circunstanciais dos ventos poéticos, precisamos entender melhor o sentido do “gueto”, dentro do contexto da sinfonia histórica que, de algum modo, restringiu os judeus no círculo da persecução que os encerrou nos limites de seus próprios sonhos de realização e conquistas enquanto povo. Tudo isso vivido como fruto de barbáries que sempre fizeram diminuir a dignidade de culturas, civilizações e povos, esmagando a carne humana sob o véu de ideologias e crenças não salutares, mas perniciosas e, às vezes, extremamente nocivas à humanidade inteira. No Dicionário Aurélio, uma das definições apresentadas para gueto é a seguinte: “Bairro onde os judeus eram forçados a morar, em certas cidades europeias”. Um sítio da internet (http://www.superinteressante.pt/index.php?option...) apresenta a etimologia do termo: “Um gueto é uma área separada e habitada por um grupo étnico, cultural ou religioso, voluntária ou involuntariamente, em maior ou menor reclusão. O termo referia-se originalmente às judiarias e aplica-se, hoje, a qualquer zona que concentre um determinado grupo social. Provém da palavra do dialeto veneziano ghetto (fundição de ferro), devido à fábrica que existia no bairro onde foram confinados os judeus de Veneza, em 1516. De noite, o acesso ao gueto, situado numa das ilhotas da cidade e rodeado de canais, permanecia fechado”. Ou seja, na essência da significação atribuída ao vocábulo, trata-se de pessoas segregadas por circunstâncias variadas em relação ao contexto social em que vivem ou são obrigadas a viver.

No contexto das letras cantadas por Sarah Gorby, encontramos expressões e conteúdos tais como: “Nossa aldeia está em chamas e vocês ficam indiferentes, de braços cruzados? Nossa aldeia está ardendo, o vento penetra por todos os lados, ululando e tudo destrói. A salvação está nas mãos de vocês...”; “Chove no verão e cai neve no inverno. Vou andando sozinha, caminhando infeliz, sem destino... Todos os meus entes queridos desapareceram, mortos por forças demoníacas... e após tanto sofrimento, tantos horrores, após tudo isso... ainda devo fugir da Polônia”; “Quando te aproximares, todas as portas hão de fechar-se diante de ti. No lugar em que passares um dia, não poderás passar outro. Fecha teus olhos... Vai, procura uma rocha escarpada, senta-te e, sozinho, golpeia o peito com teus punhos... Raquel virá então te acompanhar em tuas lamentações...”; “Multidões expulsas de seus lares vão se arrastando através de campos poeirentos e manchados de sangue. Com o coração humilhado e os olhos repletos de angústia, as mães estreitam os filhos contra o peito... Mães aniquiladas pela dor e pais extenuados pelo sofrimento, curvados sobe o peso de uma tristeza infinita... Eles vão caminhando para a morte”; “Dorme, criança... Noite e chuva, noite e vento... Por caminhos encharcados, famintos como cães, espancados como cães, caminham eles... Dorme, criança, dorme. Para aonde vão? Só a noite sabe, só o vento sabe, pois ouviram os seus soluços e gritos lancinantes. Como colunas de sombras, vão andando. Dorme, filho querido, dorme. Noite e chuva... noite e vento...”; “Os incêndios foram apagados; contudo, o fogo que brota do meu coração ficará sempre aceso. A provação dolorosa que sofreu nosso povo dispersou pelo mundo os melhores de cada geração... As gerações perderam o orgulho e a alegria. Todavia, a guerra acabou”; “Não digas nunca que o caminho que percorres é o último porque pesadas nuvens o encobrem: o dia chegará e também a hora esperada. Hás de escutar nossos passos. Já estamos aqui! O sol da aurora iluminará nosso caminho. Os dias negros do passado desaparecerão com o inimigo. Nosso canto será entoado por todas as bocas; por isso, não digas jamais que é a tua última jornada...”.

Na verdade, os textos acima citados refletem, de maneira singular e profunda, a experiência inaudita de um povo que sempre carregou sobre os ombros da existência a estranha sina da perseguição, da depreciação, da violência mesmo. E nenhuma luz dialética jamais será suficientemente bem apresentada ou projetada sobre ele, de modo a iluminar os pontos obscuros de sua própria história. (Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos, da Arquidiocese de Aracaju. Escritor e Advogado).