quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

 

Virando a página do tempo

 


Réveillon. É a palavra dos tempos atuais. Mas qual a origem e o sentido de sua conotação para o novo ano que se aproxima? Tradicionalmente, o vocábulo ficou conhecido como “virada do ano”! Ou será que não? Com a proximidade do Natal e das festas de final de ano, o mundo inteiro fica eufórico. Novo tempo parece desabotoar e manifestar as forças da esperança. Se o ano que passou não foi tão bom assim, com perdas de todo tipo, mas também com agrados de realização, resta-nos torcer para que, “virando a página do tempo”, algo melhor rebente nossos desejos de plenitude.

Já na iminência de 2022, papai Noel, o bom velhinho, que trouxe a concretude de tantos sonhos adormecidos nas crianças e nos adolescentes, mas também nos adultos, ficou para trás, deixando então a lembrança do que nos golpeou do presente recebido. Pelo menos, para aqueles que receberam algum regalo. Com efeito, nem todos os anelos do coração se realizam na magia da boa vontade do velhinho. São momentos transitórios que plantam na alegria das festividades o toque sublime da generosidade de muitas pessoas. E isso faz bem ao espírito desse instante. Mas não é tudo! Também, talvez de maneira mais obscura, sobretudo nos veículos de comunicação de propaganda mercantil, e até mesmo no seio de alguns cristãos, o Menino-Jesus teve seu papel de figura discreta, no entanto, vibrante, trazendo a todos a luz que emana de sua manjedoura e permanece mais duradoura do que papai Noel. Afinal de contas, Ele é o Salvador, mesmo para aqueles que pensam que não! Contudo, o tempo é o senhor de quem todos nós somos escravos. Isso mesmo: ESCRAVOS! Apenas aqueles que já estão fora dele, no caso, os mortos, não se sujeitam mais aos ditames de sua brava tirania. Quanto aos pobres mortais, que perambulam pela noite escura do universo macroscópico, material e imaterial, imanente e transcendente, físico e espiritual, todos somos, inevitavelmente, prisioneiros de suas armadilhas.

Os anos recentemente passados, 2020 e 2021, foram terrivelmente marcados pelo monstro da pandemia que, não obstante todo o esforço de superação mundial, ainda continua nos assombrando. Vidas se perderam, familiares, amigos e parentes desapareceram do nosso meio. No dia primeiro de novembro de 2021, o mundo registrava mais de cinco milhões de mortos por covid-19. A marca de uma tragédia humanitária sem precedentes! E as nações ainda seguem desorientadas, com a possiblidade de agravamento da situação, trazida à baila mediante o advento da variante ômicron. E, no dia 27 de dezembro, agorinha, enquanto escrevo esse texto, mais de dois mil voos foram suspensos no mundo inteiro por causa dela. Ainda não nos sentimos seguros! Contudo, a vida deve continuar. “O tempo não para”, já dizia a música de Cazuza, e a nossa vida segue dentro de sua dinâmica cronológica, até o fim da biocronologia de cada um dos viventes. Portanto, é nessa perspectiva que devemos enfrentar o “réveillon”, que significa “despertar”. Porém, “despertar” para quê? Acordar para quê?

Despertar para a sublimidade da vida, enquanto ainda estamos aqui. Às vezes, parece que vivemos sonolentos demais a quotidianidade que nos assalta do nascer ao pôr do sol. A agitação do mundo moderno, a pressurosidade dos afazeres, dos trabalhos e dos negócios; as demandas existenciais de todo tipo, nas idas e vindas da geografia do eu mais profundo, etc., tudo isso pode nos distanciar da essência da beleza que é a própria vida em si mesma, o milagre do momento presente que nos escapa, fugidio, como as torrentes dos mananciais que descem do topo da montanha para encher os leitos da extensão do existir. Por isso, precisamos ir “virando a página do tempo”. Santo Agostinho já asseverava: “É bom que esse tempo passe, senão, não teremos outro tempo para viver”. Por conseguinte, a vida é essa espiral de gratuidades e de bonanças, que independe da direção dextrogira ou sinostrogira, mas que focaliza o centro vital do que somos e da felicidade que buscamos.

Do original francês, o termo réveillon se desprende do verbo révellier, que significa “acordar”, “despertar”; “tirar do sono” (“tirer du sommeil”). Metaforicamente, quer dizer também “chamar à consciência”, “trazer à vida”. Seria como o despertar interiormente para o clarão da existência que nos espera, a cada amanhecer, devolvendo-nos o brilho da esperança em dias melhores, de consolação, de boas energias, de conquistas, vitórias, mas também de lutas, de apego à própria essência de nós mesmos, de superação. Portanto, é nessa direção que devemos apostar com o dealbar do ano novo, da chegada de 2022.

Então, acordemos da letargia dos dias ruins, dos movimentos tristes da alma, dos pesares enfadonhos do que ficou para trás. A vida está diante de nós. Vamos sonhar mais, abraçar mais, sorrir mais, confiar mais, trabalhar mais, etc., a fim de que os sonhos que embalam o nosso espírito não permaneçam adormecidos no castelo interior da acomodação. Vencer é próprio de quem luta! Ou seja: vire, sabiamente, a página do tempo! Agora, vá! Levante-se! Tenha coragem, pois a vida nos espera sobejamente prenhe de coisas boas, alvissareiras de felicidade. Feliz 2022! 

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

 

Desculpe-me pelo atraso...



O discurso foi breve, ligeiro, rápido, tranchant: “O curso acabou para mim. Apresentei o TCC ontem. Só falta pegar o Diploma. Sou Bacharel em Direito. Finalmente.” Era o meu amigo Robson, derramando sentimentos de conquista, de vitória e de euforia no canteiro das palavras. Deixou o recado completo! Mas as palavras também escondem aquilo que não dizemos, ou guardamos no movimento das emoções. A luta diária de quem esteve ao seu lado sabe o que isso significa: um gosto quase secreto de que tentar realizar os desejos da formação acadêmica custa desafios, suor, energia, lágrimas, acordar cedo e não saber bem em que direção olhar, etc. Mas são as exigências da vida que demonstram a grandeza de um homem.

Não desistir nunca, não se acomodar aos ditames das condições não favoráveis, resistir às tempestades ferozes da imprevisibilidade do caminho, tirar forças de onde parece não haver, buscar soluções imediatas no solavanco das intuições, tudo isso faz parte do processo. Mas, “desculpe-me pelo atraso...” Pelo atraso de quê? Por quê? Seria pela demora de minha resposta à dimensão emergencial de seu desejo de partilhar uma alegria que conquistamos juntos. Vidas paralelas, separadas pelo cordão cronológico da biografia individual, se cruzam nos ambientes sociais da coletividade, porém, cada um no contexto de seu próprio existir. Então, fiz do “desculpe-me pelo atraso” uma metáfora de reflexão sobre a vida, toda vida, qualquer vida humana.

Ninguém deve pedir desculpas pelo atraso. Não, pelo atraso da vida, porque ninguém atrasa na vida! Na verdade, é ela que nos leva por outros caminhos: pelos caminhos das incertezas, das inseguranças, do medo invisível que nos assalta, das portas quase fechadas ao imprevisível! Mas a teimosia dos sonhos, da busca da realização dos ideais, da esperança alimentada pelos horizontes interiores do coração, tudo isso vence a insuficiência dos recursos, a letargia do espírito desanimado, sem motivação, em virtude do esforço de sobrevivência, que não nos permite desistir jamais. Cada um no seu tempo, com seus limites, com sua determinação e vontade de vencer; cada um com seus desafios; cada um com sua história; cada um com as labutas próprias da sobrevivência humana, que exige provas de superação e vontade de ir sempre mais adiante, não obstante todos as adversidades do percurso realizado. Mas olhamos para trás contentes e agradecidos. De fato, “O retrovisor da história é um espelho que nos mostra um pouco do que somos. Evidentemente, essa perspectiva é limitada pela parcialidade com que vemos as coisas e as pessoas. Com efeito, a luminosidade de uma existência é bem maior do que as sombras eventuais que acobertam e escondem a plenitude da singularidade de cada ser humano”. (Santos).

Uns mais jovens, outros mais velhos, mais avançados nos anos, "os patinhos feios" da universidade também vencem o preconceito, a indiferença dos bastardos megalomaníacos do meio acadêmico, a hipocrisia do sistema, a pobreza de alma e da estatura tacanha dos fidalgos, "filhinhos de papai", que atravessam os olhos, querendo impedir o sucesso dos aparentemente mais fracos, desprotegidos, como se "a paridade de armas" não fosse um direito da justiça social equânime, que deveria se derramar também sobre os que ela pune já no nascimento, e até mesmo antes de serem concebidos. Nos cantos escuros da alma, a luz da esperança se acende com mais intensidade diante dos obstáculos, das intempéries da peleja, dos contratempos da quotidianidade. Na percepção de Ihering, “A defesa do direito é portanto um dever da própria conservação moral; o abandono completo, hoje impossível, mas possível em época já passada, é um suicídio moral”.

Estudar direito, como também tantas outras áreas do conhecimento, é um bom acinte para os gigantes, porque a ciência alimenta o sonho de todos os espíritos. Contudo, a cosmovisão do universo jurídico é ampliada pelo emaranhado de leis e vicissitudes sociais que, dia após dia, estende ainda mais as provocações das conquistas legais na defesa dos direitos e garantias fundamentais de todos. Desconhecer a Lei não significa estarmos privados dos direitos que ela nos impõe pela exigência irrenunciável de sua aplicação e eficácia, derramando-se igualmente sobre os deveres de fazer o bem e evitar o mal. Ou seja: “comissão” e “omissão” fazem parte da mesma moeda legal, cujos valores são impingidos para acobertar a dignidade humana de cada indivíduo na sua singularidade e de todas as nações no abraço de sua coletividade.

Na história pessoal de cada um, o preço dos louros é a força bruta das energias gastas no combate desigual. A solidão das inquietações existenciais, os dramas vividos ao sabor das sadias altercações jurídicas da academia, o acolhimento dos amigos, a compreensão dos colegas, a frieza da indiferença, tudo isso ainda concorre para as alegrias da vitória. A presença em sala de aula, a festividade dos encontros, os olhares desconfiados dos calouros ou da empatia dos veteranos, o auxílio necessário dos funcionários, a simpatia, a competência e amizade dos professores, de igual maneira, foram fundamentais para os passos que fizemos durante o curso. Também os goles inebriantes da convivência jurídica através das atividades acadêmicas, dos impasses, da indecisão do comprometimento com o grupo, foram essenciais na formação. A camaradagem nos botecos do saber, nas pesquisas acadêmicas, na gestação, pré-natal e nascimento dos TCC’s – ou de artigos científicos – agora estampam a gratidão da memória pelo que vivemos juntos.

Amigos se perderam no caminho ou morreram. Depois, veio a pandemia que nos roubou ainda mais uns dos outros, e veio também o desafio das aulas à distância, online. O mundo ficou de pernas para o ar, e cada um no seu canto, do seu jeito, com suas lamúrias, tentou encontrar a maneira certa para seguir, sobrevivendo ao caos sanitário que golpeou a humanidade, enquanto muitos desapareceram do planeta Terra. Ficaram a lembrança, a saudade doída pelo mal causado pela perda, a vontade de encontrar novas luzes para resistir ao que estava por vir. Mas vencemos! Estamos vivos!

Hoje, meu amigo é Bacharel em Direito, e, logo, logo, será chamado de Doutor, com a aprovação no exame e ingresso na OAB. Outros de seu tempo de universidade chegaram depois, mas a ninguém devem pedir “desculpas pelo atraso”, porque cada um é senhor de seu momento, de suas circunstâncias, de suas vitórias. O importante é não parar de lutar, porque o curso universitário da vida se fecha e se conclui somente na morte. (PGRS).

 

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

 

Natal ou lero-lero?


 

Segundo uma frase atribuída a Santo Agostinho, “a ignorância é a mãe da admiração”. Certamente, assim, ele quis dizer que, quando, por alguma eventualidade da satisfação de nossa curiosidade, descobrimos uma novidade, o sentimento do espírito é de espanto, de fascínio ou de admiração. Em grego, a palavra certa seria “thambos”, uma estupefação. Trata-se, na verdade, do assombro que nos desconcerta diante do inevitável desconhecido que assoma no horizonte de nossa percepção e intelectualidade.

Infelizmente, no mundo pluricultural em que nos encontramos e vivemos, nem sempre o sentido dos acontecimentos encontram respaldo e apoio em nossas afirmações. Existe, de fato, o Natal? A quem ele serve como luz de inspiração e motivação para mudança de vida? Quais seriam os elementos ou ingredientes que poderiam nos conduzir à consciência de seu verdadeiro sentido, não apenas como propaganda de uma religião, mas, sobretudo, e soteriologicamente, como a fonte da dimensão mais profunda da salvação do homem, que não se delimita ao horizonte poeirento da terra? Com efeito, não somos apenas um ser imanente, cuja vida se rasteja no agora destrutível da transitoriedade do tempo, mas finca suas raízes na perene transcendência do eterno. Como diria Marie-Louise Guitton: “A vida passa, mas a eternidade permanece!” Tão triste seria se, de veras, toda a sublimidade da nossa vida na terra se fechasse na pobreza da materialidade que nos constrange à desilusão e à crença da tendência da finitude orientada para o caos, para o nada existencial da potência criacional divina! A expressão é da orelha de uma obra de Gizelda Morais (1939-2015), “A um passo do esquecimento” (2015), imortal da Academia Sergipana de Letras: “tudo criado jamais volta a ser nada”. Assim também é a criatura humana, obra-prima da criação.

Por conseguinte, diferentemente dos animais irracionais, mesmo se dotados de seus instintos e de sua maneira de percepção sensitiva, nossa vida – que, na realidade, está ligada à essência do eu mais profundo – se sobrepõe ao mero acaso da instantaneidade e se projeta no além transcendental. E é por causa dessa transcendência exponencial da criatura humana que o Natal tem sentido, que o Natal incide sobre a necessidade que todos nós temos de um Salvador. Até os ateus, ou agnósticos, ou descrentes, ou todos aqueles que se debatem na incongruência de suas especulações sobre o sentido do homem e do mundo, também eles precisam de um Salvador.

Basta, então, percebemos os sentimentos que nos invadem o espírito quando o medo da finitude nos assusta! Quanto tudo aquilo em que julgávamos acreditar esvanece e rui por terra no vislumbre de nossas aparentes seguranças ou certezas. Como acontecera com aquele teólogo protestante, que passou a vida inteira falando de Deus e das coisas do céu, mas que, na hora da morte, disse à sua esposa: “Passei toda a minha vida refletindo sobre Deus e sobre o além. Agora, porém, não sei mais nada! Exceto que, até na morte, estarei seguro”. De fato, é no momento extremo da morte que todas as nossas presunções caem por terra, no chão profundo das incertezas.

Depois desses tempos sombrios, dos quais ainda não nos libertamos, com o advento de novas variantes do coronavírus – agora, estamos sendo acometidos pelo ômicron, cujo nome é atribuído à 15ª letra do alfabeto grego, a fim de evitar confusões e preconceitos em relação às letras precedentes. Valeria a pena investigar a curiosidade dessa descoberta! De qualquer modo, o fato é que, voltando aos trilhos da reflexão natalina, não obstante todos os desafios das mortes, da saúde, da superação da pandemia, etc. etc., o mundo ainda segue adormecido, letargicamente mergulhado no nirvana entorpecente de suas presunções egoístas diante das maravilhas do Pai Criador. Ele é e sempre continuará sendo a Esperança radical de que precisamos para superar todos os males que nos afligem, também o da pandemia. Mas preferimos olhar de lado e seguir indiferentes aos apelos de conversão ao Menino-Deus. Mesmo assim, com toda a nossa indiferença, o Natal não é lero-lero!

Essa expressão – lero-lero – é muito usada no português vulgar, para nos referir a discursos do tipo “conversa-fiada”, sem muita credibilidade. No entanto, nem desconfiamos de que sua origem rebenta no vocabulário helênico e está presente no Novo Testamento quando do anúncio feito pelas mulheres na madrugada da Ressurreição de Cristo. Encontramos no Evangelho de São Lucas, no contexto da aparição do Senhor aos discípulos de Emaús: “Ao voltarem do túmulo, anunciaram tudo isso aos Onze, bem como a todos os outros. Eram Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago. As outras mulheres que estavam com elas disseram-no também aos apóstolos: essas palavras, porém, lhes pareceram desvario [do original grego: lero, que significa tolice, tagarelice, conversa fiada], e não lhes deram crédito”. (Lc 24,9-11). Trata-se, pois, da ação do verbo grego lereu, isto é, desparatar, dizer tolices. O contexto também esconde o pano de fundo cultural da época, em que as mulheres, as crianças e os escravos não possuíam valor social, de modo que, assim, não eram levados muito a sério. Enfim, “não lhes deram crédito!” (Lc 24,11). No entanto, precisou de tempo, para que os acontecimentos fossem empurrando a alegria da novidade da ressurreição de Cristo no coração dos discípulos. E eles acreditaram: “Vimos o Senhor!” (Jo 20,25). Não era lero-lero daquelas mulheres eufóricas diante da inaudito mistério do Ressuscitado. Portanto, o Natal do Senhor também não é lero-lero. É Deus, sempre de novo, perseverantemente, batendo à porta do mundo e do nosso coração com desejo de se fazer presença, consolação, esperança e, sobretudo, salvação. Porque Ele é o Salvador!

Olhemos para as necessidades da nossa alma, para as carências do nosso espírito, do espírito do nosso tempo, dos anseios da humanidade cansada de tatear em vão as satisfações mais intrínsecas e espirituais de seu ser mais profundo. Olhemos para as perdas cotidianas de pessoas, de amigos, de empregos, de dignidade humana, de sonhos, de ideais, de realizações...

Olhemos para a pobreza da manjedoura de Belém onde nasce para todos nós a grandeza da Salvação na vulnerabilidade de um infante, impotente, dependente, mas que é o Senhor Todo-Poderoso, Criador e Salvador do Céu e da Terra, de tudo o que existe. Amém. (PGRS).