sábado, 24 de dezembro de 2022

 

Uma manjedoura cheia de graça



 

Uma manjedoura cheia de graça! Também não poderia ser diferente. O cocho no qual é colocado o feno e o capim para alimentar os animais, tornou-se o lugar do pequeno menino nascido em Belém – em hebraico “Betlehem” que significa “casa do pão” – não para ser capim, mas alimento vivo que sacia a fome de eternidade que o homem carrega dentro de si pela vida afora. A saudade de Deus é preenchida somente por Deus.

Daí a expressão de Santo Agostinho, logo no início, na primeira página de suas “Confissões”: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti”. É por isso que ele veio ao nosso encontro, buscando-nos onde quer que nos encontremos perdidos no espaço físico, espiritual ou interior de nós mesmos. O sonho de Deus chega carregado de Si próprio na manifestação plena de sua extraordinária e frágil pequenez. Nasce como criança, vinda do seio de uma mulher, arrebentando os portões do mundo, com a grandeza de sua presença inaudita.

Na manjedoura de Belém está a paz que o homem procura para as guerras; a harmonia para o caos cósmico e universal; a felicidade plena para os infelizes; o calor humano para os frios e indiferentes; a esperança viva para os desesperados; a serenidade para os inquietos e agitados; a salvação para os perdidos; a consolação para os sofredores; a calmaria interior para os injustiçados; a fortaleza para os fracos; a graça redentora para os pecadores; a cura definitiva para as feridas da alma; a vitória para o fracasso; a verdadeira vida para a morte; a coragem do amor sem limites para os indecisos. Na manjedoura repousa a esperança do mundo adormecido em sua insensibilidade doentia. Nela está a libertação de todos os opróbrios.

Eis, pois, a grandeza de Cristo, o menino de Belém, luz que ilumina as trevas de todos os povos, acobertando os séculos com sua luminosidade infinita: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria. Multiplicaste o povo, deste-lhe grande alegria; eles alegram-se na tua presença como se alegram os ceifadores na ceifa, como regozijam os que repartem os despojos. Porque o jugo que pesava sobre eles, o bastão posto sobre os seus ombros, a vara do opressor, tu os despedaçaste como no dia de Madiã. Com efeito, todo calçado que pisa ruidosamente no chão, toda a veste que se revolve no sangue serão queimadas, serão devoradas pelo fogo. Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, ele recebeu o poder sobre os seus ombros, e lhe foi dado este nome: Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte, Pai-eterno, Príncipe da paz, para que se multiplique o poder, assegurando o estabelecimento de uma paz sem fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, firmando-o, consolidando-o sobre o direito e sobre a justiça. Desde agora e para sempre, o amor ciumento do Senhor dos Exércitos fará isso”. (Is 9,1-6).

Contemplando a manjedoura do menino-Deus, nascido em Belém, devemos recordar a bondade misericordiosa do Senhor que, do alto de sua Transcendência e inacessibilidade, chega ao nosso meio e se permite ser tocado pelas nossas feridas mais profundas. Mais do que isso: “Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos justiça de Deus”. (2Cor 5,21). A estrela de Natal que brilha no horizonte de nossa existência não tem nada a ver conosco e, no entanto, veio na intenção de que sejamos restaurados nele. Ou seja: Cristo nasce para o mundo, a fim de que nós possamos nascer para os céus.

Ó pobre criança de Belém, teu nascimento enche de luz todos os caminhos dos homens e do mundo inteiro. Assumindo a nossa humanidade, tu nos revestes com a glória de tua divindade. Carregando em Ti todas as mazelas de nossos pecados, tu nos devolves a graça perdida no Paraíso. Espoliado de tudo, até de tuas vestes, totalmente despido das riquezas humanas, que a ferrugem pode corroer, tu nos ensinas onde podemos encontrar a verdadeira dignidade, depois de todos os ultrajes sofridos pela injustiça dos homens. Tocando com tua humanidade todas as angústias do tempo e dos séculos, tu nos educas para a serenidade perene das consolações eternas. Enfim, chorando como todos os homens, tu nos mostras a compaixão divina por nossas fragilidades.

Muito obrigado, Jesus, porque no teu Natal tu continuas “nascendo no coração das pessoas de boa vontade, nos gestos de amor e partilha, nos povos que buscam a fraternidade e a paz”. Amém!

 

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

 

Paróquia Nossa Senhora Rainha do Mundo 

Aracaju, 8 de agosto de 2022

Prezadas Crianças e Catequistas,

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

Com muita alegria, recebi os bilhetinhos que cada um escreveu-me por ocasião do Dia do Padre. Então, diante do gesto simples, mas gratificante, e da criatividade das mensagens e de alguns desenhos – lindos, por sinal – eu não poderia deixar de responder-lhes, o que o faço oportunamente.

Li com a atenção devida cada recado que me foi apresentado, alguns, inclusive com pedidos de oração por vocês, suas famílias e suas necessidades momentâneas. Saibam que os levei em consideração e estou rezando por todos. E tenho certeza de que Cristo escuta os pedidos das crianças. Por isso, a amizade com ele deve ser cultivada sempre, especialmente, nesse estágio de preparação para a Primeira Comunhão. De fato, Cristo é amigo das crianças, porque foi ele quem disse: “Deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, pois delas é o Reino dos céus!” (Mt 19,14). Que belo imperativo de Cristo! Portanto, lembrem-se de que o carinho de Deus por nós passa pela amizade do Filho, Jesus de Nazaré, que morreu na cruz para nos salvar. Ele é o nosso Senhor e Salvador! Ele é o Bom Pastore e nos carrega nos ombros em direção ao céu.

Deus abençoes vocês, os catequistas e suas famílias. Contem com nossa amizade e nossas orações. Deus os abençoes!

Em Cristo,

 

Pe. Gilvan Rodrigues

PÁROCO & PASTOR

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

 

São João Maria Vianney



São João Maria Vianney (1786-1859) foi canonizado pelo Papa Pio XI, em 1925, quando também foi declarado o padroeiro de todos os párocos. Sua memória é celebrada no dia de sua morte, 4 de agosto, mês considerado vocacional pela Igreja, que se serve desse dia para comemorar o Dia do Padre. Por ironia de seu destino de santidade, quase impedido de ser ordenado sacerdote pelas limitações intelectuais, tornou-se um dos maiores luminares da França na primeira metade do século XIX. Ainda bem que a santidade não está diretamente relacionada aos dotes privilegiados da inteligência humana! Ninguém precisa ser muito inteligente para ser santo e aproximar-se de Deus pela amizade espiritual. De fato, a vida de santidade começa a estabelecer-se dentro do espírito do homem quando ele, ciente da graça já recebida pelo santo batismo, abre-se, progressivamente, cada vez mais, às inspirações divinas. Sua semente foi semeada em nós pelo germe do projeto do Criador quando nos quis “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26).

O Cura d’Ars-en-Dombes encontrou muitas dificuldades no trilho do anelo dos sonhos vocacionais. Dardilly, sua terra natal, viveu momentos obscuros, envolvida na cerração temporal da política, de modo que até a sua paróquia fora fechada, interrompendo, assim, os serviços litúrgicos e a catequese. Segundo Enrico Peppe, “o futuro cura d’Ars recebeu a primeira comunhão escondido em uma casa de campo durante a missa clandestina, e o contato com aquele padre lhe fez nascer no coração o primeiro desejo de se tornar sacerdote. Uma ideia que parecia utópica para a situação política do país pela impossibilidade de frequentar escola”. Talvez possamos encontrar, aí, um obstáculo futuro quanto ao desempenho de sua escolaridade. Conheci um sacerdote, que, morando no interior do Ceará, somente pôde ter acesso aos estudos depois dos dezessete anos de idade, com todos os vícios linguísticos e “culturais” da educação que não recebeu. Ainda hoje, ele possui alguns “obstáculos musculares”, sei lá (?), que repercutem na sua tatibitate. Todos nós sabemos, e isso está provado cientificamente, que delongando certo tempo na aprendizagem dos esforços guturais, determinados sons da língua não são mais possíveis de serem pronunciados. Quem já tiver ultrapassado os vinte anos, tente, por exemplo, pronunciar alguns vocábulos em língua árabe ou até mesmo em hebraico ou de qualquer outra língua maluca do antigo Oriente Médio. Eles podem ser aproximados, mas, nunca, igualados ao som de quem nasceu, viveu, foi educado e cresceu lá. Por certo, as ranhuras da música linguística do indivíduo serão notadas no sotaque indiscreto da fala, quando não pronunciar um vocábulo diferente.

Na Itália, tive a oportunidade de conviver com um jovem sacerdote libanês, ao qual pedi que me dissesse uma palavra em árabe, e assim que eu a repeti, ele ficou visivelmente ruborizado. Quis saber a razão, e ele me respondeu: “O que você disse é um palavrão na minha língua, e eu não falei isso!” Nem o significado ele quis dizer-me. Imaginem o constrangimento! Todavia, o Cura d’Ars teve outros problemas de compreensão, sobretudo, da língua latina, mediante a qual eram feitos os estudos e os exames para a superação dos estágios acadêmicos. Dizem que ele não entendia nem sequer o conteúdo das perguntas que lhe eram feitas. Mas ninguém precisa de latim para ir para o céu. Os espanhóis dizem que os anjos falam a sua língua, na ferrenha disputa para depreciar a “última flor do Lácio” (Olavo Bilac), o português. E nós, em contrapartida, afirmamos que Deus fala português. Pilhérias, à parte, falaremos diretamente com Deus, sem necessidade da tradução dos anjos.

Graças à criativa generosidade do Pe. Charles Balley, que, em Écully, não muito longe de Dardilly, abriu uma escola para orientar os candidatos ao sacerdócio, no caso, antes de ingressarem no seminário, João Maria Vianney “também se apresentou: um caso humanamente quase desesperador, porque tinha 20 anos e conhecia mal e mal os primeiros rudimentos da leitura e da escrita. O padre Balley ouviu-o, apreciou-lhe o candor da alma e a persistência de camponês e o admitiu em sua escola. Não foi fácil para o jovem acompanhar as lições do mestre, sobretudo em se tratando da língua latina, que não entrava na cabeça, enquanto se saía muito bem na aprendizagem das verdades da fé e na prática das virtudes cristãs”. (Enrico Peppe). Sua humildade e perseverança, mas também sua abertura às moções do Espírito divino, conduziram-no à “elevação espiritual” de que precisava para demonstrar-se capaz de, convertidamente, santo, orientar suas ovelhas. Durante três anos, foi designado para a cidadezinha de Ars, um lugarejo com 40 casas e pouco mais de 270 habitantes. Tendo sido colocado à prova pelo seu bispo, esperou três anos, a fim de que sua comunidade pudesse ser elevada à dignidade de paróquia. Seu zelo espiritual pela vila – antes interessada mais pelo trabalho do campo, de manhã, e à tarde, pela taverna atrás da igrejinha, inclusive, por conta do sistema da pobreza e da necessidade, do que pelo apostolado do jovem padre – despertou a fé escondida sob as cinzas do tempo, mudando, de modo radical, a vida religiosa de sua gente. Com efeito, o ambiente social da época estava tomado pelos lupanares espalhados por muitos lugares, e, também, em Ars. É por isso qu, “nos dias mais solenes, o ponto de encontro não era a celebração litúrgica, mas as festas e bailes, que se prolongavam até altas horas da noite, à luz de vela e – segundo o parecer do jovem padre – sempre terminavam em lugares onde não havia nem mesmo essa luz fraca, permitindo ao demônio a destruição da moral familiar, até mesmo levando à prostituição alguma pobre moça”. (Enrico Peppe). Atraídos pela vida simples e austera do Cura d’Ars, que fazia penitência, jejuns prolongados e orações pelos pecadores, homens notáveis, como o primoroso orador de Notre-Dame de Paris, igualmente, sacerdote, o Pe. Lacordaire, fizeram questão de conferir de perto a fama do pároco daquela minúscula aldeia. E quando alguém quis saber da apreciação de Lacordaire sobre a pregação do padre tido por ignorante, sua resposta não poderia ter sido mais ferina e contundente: “Seria bom desejar-se que todos os párocos dos campos [e, hoje, das cidades] pregassem tão bem como ele”. (Enrico Peppe). Por sua vez, depois de convidar o Pe. Lacordaire a pregar em sua igreja, o Cura d’Ars também desferiu seu comentário no dia seguinte: “Costuma-se dizer que às vezes os extremos se tocam. Isso, sem dúvida, verificou-se ontem no púlpito de Ars. Viu-se a extrema ciência e a elevada ignorância”. (Enrico Peppe).

O santo Cura d’Ars é um testemunho que, ainda hoje, serve de modelo e inspiração para a vida de todos os sacerdotes da Igreja de Cristo. Despretensioso, humilde, santo, ciente de seu papel de pastor e das responsabilidades graves do dever de seu apostolado. Na expressão de Dom Luciano Duarte (1925-2018), “no dia 9 de fevereiro de 1818, num fim de tarde de inverno, ele se aproximava, a pé, de sua paróquia, para tomar posse. Uma bruma friorenta escondia o povoado humilde dos olhos de seu novo pastor. Foi, ali, onde hoje se ergue o ‘Monument de la Rencontre’, que o Cura d’Ars encontrou o seu primeiro paroquiano: um menino, um pastorzinho de ovelhas, Antoine Givre. Ele indicou ao Pe. Vianney o caminho de sua paróquia, lá adiante, coberta de névoa. O Pe. Vianney o olhou longamente, com amor. Era o primeiro de seus filhos que ele encontrava: – ‘Tu me mostraste o caminho de Ars; eu te mostrarei o caminho do céu”. E o mesmo autor segue pelas linhas translúcidas de sua argumentação: “Foi nesta igreja que o Cura d’Ars trabalhou quarenta anos. Ele a encontrou vazia. Despovoada de homens, embora cheia de Deus. Mas entre a presença divina e a ausência humana, um vazio. Um fosso. Uma rotura. O Cura d’Ars estendeu sobre as bordas seu corpo de Padre, sua vida de santo. E os homens de Ars passaram por cima da estranha ponte, ao encontro do Senhor”.

Foi, pois, indicando a direção do céu, que São João Maria Vianney converteu a muitos de seu tempo, especialmente, pela sua vida provada de todo tipo, com frequência, atormentado por uma presença diabólica, experimentando o próprio peso de sua cruz. Nesse sentido, sua “união com Deus e a caridade pastoral” fizeram dele um protótipo permanente da santidade que, por nossa vez, também devemos buscar. De fato, até mesmo em meio aos conturbados tempos pós-modernos, a santidade é uma provocação que Deus faz a cada um de nós todos os dias. Aquela santidade silenciosa, cultivada no coração, propícia às benevolências do céu. Trata-se de um esforço que exige empenho e mortificação pessoais. Com efeito, foi um santo quem disse que é melhor andar no caminho de Deus, claudicando, do que percorrer outras estradas longe dele. Ou como diria o salmista (Sl 84,11), um só dia em sua casa vale mais do que milhares fora dele, isto é, vivendo ao meu modo, à minha maneira, segundo os moldes viciados de minha pretensa liberdade.

Que São João Maria Vianney, Patrono dos Padres, ajude-nos a encontrar, no garimpo das coisas desta terra, o verdadeiro endereço do Céu!

 

 

terça-feira, 5 de julho de 2022

 

       Escritos outonais na pena de Ana Medina


 

Escritos outonais é mais uma pérola de literatura com que a Acadêmica Ana Medina brinda seus leitores. Trata-se, na verdade, de uma obra bifurcada em duas vertentes de páginas translúcidas de poesia e paisagens do espírito, emolduradas pela fina estampa da sensibilidade do brio intelectivo da autora. Portanto, assim segue a distribuição escorreita e cadenciada de sua exposição: Escritos sobre escritos e Escritos inventivos. De uma lauda à outra, é o fascínio das letras que sorvemos avidamente como de ânforas plenas do saber erudito que transborda e se derrama no chão estilístico da inspiração.

Escritos sobre escritos é um afresco de mosaicos imbricados, que mapeiam inúmeras obras prefaciadas ou apreciadas pela autora em múltiplas cosmovisões, à mercê do conteúdo e da abordagem da obra em si. São janelas da alma contemplativa que se abrem sobre os telhados poéticos da singularidade de muitos autores. Mas é o fio conducente de sua percepção que nos garante a riqueza das inflexões pessoais, que brotam cristalinas na “seara da cultura”, sobretudo, sergipana. A coletânea da primeira parte jaz jus ao talento literário e à competência apurada da bela arte das letras. A vivacidade dos textos é perene, atravessa décadas da produção grafológica e rebenta solene – com o mesmo frescor do orvalho matutino de sua aurora – nas ondas do espírito do leitor. Metáforas resplandecem no tecido dos vocábulos como em “véus diáfanos”, que enxergam “o belo através da dor humana”; a autora enfrenta, tranquila, “as armadilhas do português”, o desafio do conhecimento erudito dos autores que prefacia, e as disposições da cultura clássica, com a maestria da ponderação lógica e racional do que lhe é proposto fazer; elabora, com finesse et bon goût, a viagem emocional de seus textos, com leveza, sem o veio acrimonioso dos incautos; sua literatura é plástica, sonora, e acende no vislumbre da perlustração a sede do desejo de ir sempre mais adiante nas plagas da geografia do texto.

Cada panorama da obra exige o conhecimento de uma lexicografia diferenciada, o que dá à autora o privilégio da idiossincrasia epistemológica para atingir seu objetivo; ela pendula entre o erudito e prosaico, entre o burlesco e o cotidiano, entre o religioso e o profano, entre o lírico e o bucólico, entre a história e a geologia da alma, como em instantes áureos e tempos de decadência. Tudo isso sem cair na mesmice simplória do pensador, “afinal o que é literatura senão o fruto da imaginação ou a recriação da vida, sem veleidades de cientificismo?”, pergunta-se. De fato, a literatura tem a prerrogativa de depositar na intuição dos intelectuais um universo cosmológico tão amplo quanto as gavetas que se abrem aos ventos da imaginação, e isso se agiganta ainda mais quando pensamos que “cada cabeça é um mundo”. Na literatura, os personagens assomam no horizonte de seus escritos como figuras vivas de um passado recente, que cintilam em suas páginas como estrelas nostálgicas da verdade que os constituem. Dramas pessoais, experiências da longevidade, buscas interiores, sofrimentos da alma, fulgores da prosa, deleites sentimentais, etc. De tudo isso, a autora se reveste para descrever – “como sacerdotisa de tempos imemoriais” – as “oferendas” que lhe foram apresentadas para refeição e análise cognoscitiva, conforme a índole peculiar a cada geração de autores.

Cotejando a investigação dos autores com personagens clássicos das artes universais como a pintura, a música, a escritura, a gramática poética, a história dos mitos helênicos – num estilo que abraça tantas épocas – o pano de fundo revela a riqueza de seu ambiento cultural. Desse modo, ela nos faz imergir no tempo antes do tempo, na origem mesma da arte que atravessa os séculos, porque in principium erat verbum... (Jo, 1,1).

Quanto aos Escritos inventivos – segunda parte da obra – uma ligeira apreciação faz deter-nos no conjunto sincrônico da compilação argumentativa. Absorta na ciranda de outras especulações, as folhas outonais da palavra caem da pena de quem parece dialogar consigo mesma. Na verdade, sua prosa transborda em temas pertinentes à religiosidade popular, relembrando tradições culturais da fé do povo de Deus; evoca conjunturas políticas de sua amada Boquim, com as “futricas” próprias das efervescências eleitoreiras; seu interlóquio segue rememorando celebrações juninas, do mês de Santo Antônio, quando a cidade se acendia de luzes, cores e sons, rompendo o silêncio mudo da normalidade dos dias, ao sabor das comidas típicas dos alusivos festejos; sem cair no irrisório, conta “causos” hilariantes como das modas “bufantes”, etc.

Ainda: temas abordados na segunda parte avança fronteiras, vão a Portugal, “enquanto os sinos plangentes lembram uma fé perdida, as ruas de pedras polidas [que] vão apertando a nossa alma de um tristeza que não se sabe por que e nem de quem, elas falam de lutas, de amores escondidos, de sonhos abafados”. De modo especial, “a mala do prelado” leva consigo um mundo de inquietações da alma religiosa, que também repousa na buliçosa dimensão antropológica da visão cosmopolita dos contrastes humanos; talvez uma “maleta” mais do que, de maneira justa, comparada à “caixa de pandora”, que, depois de Lilith – da mitologia sumeriana, a Eva dos hebreus – tornou-se responsável palas desgraças do mundo. Na verdade, aqui, a metáfora revela apenas uma comparação que açambarca a fertilidade criativa do conhecimento cultural da autora.

E vamos mais adiante! De prosa em prosa, chegamos ao “réquiem para o presidente!” Suicidara-se o Presidente do Brasil Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954). Não gosto desse verto pronominal! “Suicidar-se” parece querer dizer que a pessoa se matou duas vezes, no começo e no fim da frase, ou no início e no pôr do sol da vida! Porém, isso é impossível. Mas o presidente se matou, e a notícia caiu com o estrondo de um tropo, inicialmente, incompreensível: “[...] uma tragédia se abateu sobre a nossa Pátria amada, idolatrada. O luto veste o grande Gigante adormecido”. A narrativa segue, emocionante, não somente aos ouvidos da plateia de então, mas também à oitiva do leitor, que ainda se inquieta com o suspense: Praesidem siepsum occidit! Enquanto isso, os sentimentos se sobrepõem à curiosidade reinante. Nada mais coerente para a sequência lexicográfica do que um ensaio sobre “Ritos da morte”, cobrindo o “imaginário infantil” da autora com lembranças fúnebres de nostalgia e saudade de rostos que ainda vivem nos “álbuns visitados” de sua memória.

No mais, para concluir sobre os personagens de ontem e de hoje, do passado e do presente, a linda lembrança de “Uma catequista memorável” une-me temporalmente àquela que também esteve marcando o itinerário de meu histórico vocacional, ao lado de Dom Luciano Duarte (1925-2018). Seu nome: Conceição Luduvice! Encantada com os novos tempos na Aracaju, vista com os olhos de menina, recém chegada de Boquim, o conjunto arquitetônico de templos e igrejas, ponte e palácios, a beleza do Rio Sergipe, entre tantas outras novidades, enchem de brilho os neurônios inteligentes da autora. Todavia, no meio da “selva de pedra”, também havia espaço para a colheita de fruto espirituais oferecidos na catequese, nas missas, nas peças religiosas de teatro, tudo sob a magistral regência da evangelizadora Conceição Luduvice, ícone ainda vibrante da Igreja São Salvador. (Dr. PGRS).

 


terça-feira, 14 de junho de 2022

 

Sanctissimi Corporis et Sanguinis Christi



Todos os anos a Igreja de Cristo tem a alegria de celebrar um dia exclusivamente dedicado ao Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo – Sollemnitas Sanctissimi Corporis et Sanguinis Christi. Trata-se, pois, de uma solenidade que nasceu na Idade Média, e fora proclamada oficialmente na Igreja pelo Papa Urbano IV (1195-1264).

De fato: “A Solenidade em honra ao Corpo do Senhor – Corpus Christi – que hoje celebramos na quinta-feira após a oitava de Pentecostes, mais precisamente depois da festa da Santíssima Trindade, é oficializada somente em 1264 pelo Papa Urbano IV”. Foi o próprio Senhor e Mestre, Jesus de Nazaré, que desejou permanecer entre seus amigos – apóstolos e discípulos – pelos séculos afora, sob as espécies do pão e do vinho, “fruto da terra e do trabalho humano”, “fruto da videira”, que se tornam o “pão da vida” eterna e o “vinho da salvação”. Portanto, um dia, na encruzilhada da história humana, na celebração da última ceia, o Filho de Deus, antecipando o mistério de sua cruz, diante dos apóstolos, assim se apresentou: “Tomai e comei, isto é o meu corpo”; “Bebei dele todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos para a remissão dos pecados”. (Mt 26,27-28). Na afirmação do Papa Bento XVI, “Toda a história de Deus com os homens está resumida nestas palavras. Não foi só recolhido e interpretado no passado, mas antecipado também no futuro a vinda do Reino de Deus ao mundo. Aquilo que Jesus diz, não são simplesmente palavras. O que Jesus diz, é acontecimento, o acontecimento central da história do mundo e da nossa vida pessoal”. (Corpus Christi, de 2006).

Depois, Cristo acrescentou: “Não beberei mais deste fruto da videira até o dia em que convosco beberei o vinho novo no reino do meu Pai”. (Mt 26,29). Como é grande o Mistério da nossa Fé!

O ato da cruz, realizado pela Pessoa do Verbo Eterno de Deus, o Filho Unigênito, repercute na história da Salvação desde sempre, desde antes da fundação do mundo, e percorre os séculos em direção à plenitude de sua obra salvadora. É o que celebramos na terra por meio do Sacramento dos Sacramentos, a Eucaristia, penhor dos méritos da paixão, morte e ressurreição de Cristo, o Senhor bendito pelos séculos dos séculos. Ali, numa despedida, ele preanunciava sua permanência no meio de nós até à eternidade. Segundo Angélico Poppi, exegeta do Novo Testamento, com a expressão escatológica do versículo 29, Cristo exprime a certeza de sua ressurreição após a morte.  Assim, Mateus sublinha, mais do que Marcos, a comensalidade com os discípulos, que serão associados a Ele na beata participação no banquete escatológico, de que a Eucaristia era uma prefiguração. E, dentro desse horizonte, o mesmo autor conclui: “A partir de agora” (ap’ árti) – uma expressão oculta na tradução, infelizmente – designa para Mateus o início de um novo curso da história, isto é, do novo êxodo para os cristãos, que os teria introduzido na verdadeira Terra prometida. Desse modo, a prospectiva da morte sacrifical de Jesus resulta, assim, na visão radiosa do convívio escatológico no reino do Pai celeste.

De algum modo, essa realidade se concretiza na celebração da Santa Missa, conforme nos recorda o Catecismo da Igreja Católica: “A Eucaristia é igualmente o sacrifício da Igreja. A Igreja, que é o corpo de Cristo, participa na oblação da sua Cabeça. Com Ele, ela própria é oferecida integralmente. Ela une-se à sua intercessão junto do Pai em favor de todos os homens. Na Eucaristia, o sacrifício de Cristo torna-se também o sacrifício dos membros do seu corpo. A vida dos fiéis, o seu louvor, o seu sofrimento, a sua oração, o seu trabalho unem-se aos de Cristo e à sua oblação total, adquirindo assim um novo valor. O sacrifício de Cristo presente sobre o altar proporciona a todas as gerações de cristãos a possibilidade de se unirem à sua oblação”. (Artigo 1368, CIC). A Eucaristia é a festa de todos os cristãos católicos, é o sacrifício da imolação de Deus por nós na Pessoa do Filho.

Assumindo sua permanência no pão e no vinho, ele escolheu símbolos da cotidianidade dos homens, o que expressa também a manifestação de sua grandeza e sua imersão no meio de nós. Bento XVI esclarece essa dimensão de participação entre os bens da natureza e sua imanência de fertilidade em favor dos homens. Com efeito, “Durante a procissão e a adoração nós olhamos para a Hóstia consagrada o tipo mais simples de pão e de alimento, feito apenas com farinha e água. Assim vemo-lo como o alimento dos pobres, aos quais em primeiro lugar o Senhor destinou a sua proximidade. A oração com a qual a Igreja durante a liturgia da Missa entrega este pão ao Senhor, qualifica-o como fruto da terra e do trabalho do homem. Nele está contida a fadiga humana, o trabalho quotidiano de quem cultiva a terra, semeia e recolhe e finalmente prepara o pão. Contudo, o pão não é simples e somente o nosso produto, uma coisa feita por nós; é fruto da terra e portanto também dom. Porque o fato que a terra dá frutos, não é merecimento nosso; só o Criador lhe podia conferir a fertilidade. E agora podemos alargar um pouco mais esta oração da Igreja, dizendo: o pão é fruto da terra e, ao mesmo tempo, do céu”. (Corpus Christi, 2006). E desse modo, o Senhor ostentou sua graça e seu poder salvador.

Hoje, no dia de cada geração cristã, toca a cada um de nós usufruir de suas maravilhas manifestadas sacramentalmente na Igreja. Temos a Eucaristia, que Cristo ofereceu ao Pai pela Salvação de todos como Ação de graças. O convite permanece aberto a que nos ponhamos a caminho, com atitudes de sincera conversão, não permitindo que as sombras do Mal se avantajem sobre nós. Para tanto, precisamos trazer mais o Senhor Eucarístico diante de nós! Na nossa vida, na nossa consciência, nas nossas ações, nos nossos encontros comunitários, enfim, na liberdade interior com que devemos nos comprometer com seu amor e sua misericórdia.

Que não percamos de vista a riqueza sacramental da Igreja, do Senhor vivo e presente na hóstia consagrada. Na verdade, Ele é a hóstia consagrada, mas, amiúde, a pobreza do vocabulário humano não atinge o alcance teológico ou cristológico do conteúdo das palavras. No entanto, todos nós sabemos, pelo menos intuitivamente, do que estamos falando.

Então, viva Cristo Eucarístico! Junte-se a nós nos louvores da comunidade paroquial. E viva Cristo Rei! (PGRS). 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

 

 

 

Quaresma

tempo de penitência e conversão 


“O período quaresmal é momento favorável para reconhecer a nossa debilidade, acolher, com uma sincera revisão de vida, a Graça renovadora do Sacramento da Penitência e caminhar com decisão para Cristo” (Bento XVI) .

Todo ano acontece, para todos os cristãos, o período do tempo da Quaresma, qual fonte de espiritualidade e enriquecimento interior diante do Senhor que, vencendo o “seu êxodo que se consumiria em Jerusalém” (Lc 9,31), carrega-nos sobre seus próprios ombros em direção à plenitude da Páscoa da Ressurreição.

Por conseguinte, nesse caminho de penitência e conversão, que é a Quaresma, enquanto momento de forte apelo à mudança de vida e ao acolhimento da própria vida de Deus, sobretudo manifestada de modo radicalmente novo e pleno em Jesus Cristo, gostaria de apontar qual seria a nossa atitude diante de Deus como manifestação do esforço de resposta e gratidão à incondicionalidade de seu infinito amor. De fato, ao Deus que se revela, deve-se a “obediência da fé”. Assim, nesse tempo forte de penitência, todos somos intimados a olhar com mais generosidade e reconhecimento o amor de Deus por cada um de nós. Sob esse prisma ou ângulo de reflexão, como é importante sermos humildes diante de Deus! E essa humildade deve ser recomeçada e vivida cada dia, de novo.

Quando o sol nasce e se levanta no horizonte de nossa existência, nosso olhar piedoso deve erguer-se, à luz do “Sol nascente que nos veio visitar”, ao encontro de Deus misericordioso, que não leva em conta os nossos pecados, as nossas faltas, como tão bem nos recorda o salmista: “O Senhor é compaixão e piedade, lento para a cólera e cheio de amor, ele não vai disputar perpetuamente, e seu rancor não dura para sempre. Nunca nos trata conforme os nossos pecados, nem nos devolve segundo nossas faltas” (Sl 103,8-10); ou ainda: “Senhor, se levardes em conta nossas faltas, quem haverá de subsistir? Mas, em vós se encontra o perdão, eu vos temo e em vós espero” (Sl 130,1-5). Trata-se de um dos cânticos das subidas para a cidade Santa, Jerusalém, que Israel canta De profundis, clamando a piedade do Senhor Deus.

Deus torna os nossos pecados escarlates brancos como a neve, conforme o reconhecimento da oração penitencial de Davi (Sl 51,9). Todavia, não obstante a sua misericórdia, Ele pede que nos convertamos, pois Ele é implacavelmente contra a hipocrisia:

“Quando estendeis vossas mãos, desvio de vós os meus olhos; ainda que multipliqueis a oração não vos ouvirei. Vossas mãos estão cheias de sangue: lavai-vos, purificai-vos! Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva! Então, sim, poderemos discutir, diz o Senhor Deus: Ainda que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão como a lã” (Is 1,15-18).

Segundo Austel, o vocábulo hebraico shānî [“escarlata” do latim Quercus coccinea] “[...] adquiriu um significado simbólico por ser utilizado em cerimônias de purificação, como na descontaminação do leproso (Lv 14,4.6) e da casa do leproso (Lv 14,49.52) e na descontaminação da impureza cerimonial em geral (Nm 19,6). Visto que shānî era a cor do sangue, seria o símbolo natural para isso em tais cerimônias. A palavra torna a aparecer em Isaías 1,18. Depois de dizer aos israelitas que a adoração que lhe prestavam era inaceitável devido à manchas de culpa de crime de sangue nas mãos do povo (v. 15), Deus fala que devem ser purificados e deixar de fazer o mal. O versículo 18 é o convite que ele faz para a purificação. Ele removerá até mesmo a culpa de crime de sangue, simbolizada por uma roupa tingida de escarlata. Por mais impossível que seja [ou que pareça ser, aos nossos olhos humanos e mortais], Deus torna a roupa num branco puro e brilhante, representando uma retidão sem máculas (cf. Sl 51,7 [9]; Ap 7,4)”.

Portanto, é a graça do Senhor quem nos acompanha, do nascer ao pôr do sol, se somos solícitos aos seus apelos. E quando o sol no ocaso desaparecer, fazendo precipitar sobre a noite da alma o véu da escuridão interior, renova-nos a certeza de que, no dia seguinte, mais uma vez, e com intensa luminosidade, brilhará sobre todos nós o Sol da justiça divina que nos recobrirá com a infinitude de sua graça e presença.

O verdadeiro caminho penitencial é aquele que nos conduz a Deus pela obediência. E esse é o grande desafio de toda a nossa vida cristã. Aliás, Cristo veio justamente para ajudar-nos nesse itinerário de retorno à intimidade com Deus. Pela sua obediência, somos readmitidos no aconchego acolhedor do Pai do céu, o Criador de tudo, e, de modo consequente, tornamo-nos configurados ao Redentor de nossos pecados, Cristo Jesus. Falando sobre “graça e obediência à lei de Deus”, São João Paulo II escreveu o seguinte: “Ao homem, permanece sempre aberto o horizonte espiritual da esperança, com a ajuda da graça divina e com a colaboração da liberdade humana. É na Cruz salvadora de Jesus, no dom do Espírito Santo, nos Sacramentos que promanam do lado trespassado do Redentor (cf. Jo 19,34), que o crente encontra graça e força para observar sempre a lei santa de Deus, inclusive no meio das mais graves dificuldades”.

O pensamento do saudoso Papa vai na direção de uma vida totalmente pautada pela abertura do homem à vontade divina. Portanto, o exemplo salutar é-nos apresentado pelo próprio Filho de Deus, que disse ao entrar no mundo: “Eis que eu vim para fazer a tua vontade” (Hb 10,7.9).

E ainda o contemplamos e o ouvimos nas horas derradeiras de sua agonia, ao fazer o desabafo realizado em meio às dores de sua aflição: “E dizia: ‘Abba! Ó Pai! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice: porém, não o que eu quero, mas o que tu queres’” (Mc 14,36). O Evangelho de São Lucas revela Jesus colocando a sua vontade nas mãos do Pai: “Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!” (Lc 22,42). Com efeito, somente iluminados pelo testemunho de Cristo, somos capazes de, também nós, e, por nossa vez, levarmos adiante a exigência da plenitude da conversão e do desejo de profunda intimidade com Ele. 

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

 

Edson & Yara Achegas Biográficas



Os rituais da existência humana, como partes da liturgia da vida, reverberam o sentido de que ambas – a liturgia e a vida – se tocam pela sublimidade das promessas de respeito e fidelidade recíprocos na expressão de um grande amor. 

Quanto à liturgia, nós a conhecemos bem, sobretudo no contexto da celebração eucarística, promessa radical de amor de gratuidade e fidelidade incondicional de um Deus apaixonado pela humanidade. Então, do pedestal da glória celeste, ele desce até nós na pessoa do Filho, gerado no seio da filha de Sião, Maria Santíssima, e se faz homem, igual a nós em tudo, exceto no pecado. Viveu no aconchego da família de Nazaré, com seus pais, Maria e José; cresceu em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens (Lc 3,52); depois de muitas andanças, anunciando o Reino, escolheu os doze, fez curas, sinais e milagres, e assumiu o caminho da Cruz como condição de nossa configuração a Ele pelo mistério da paixão, morte e ressurreição; fundou a Igreja como sua esposa, santa e perfeita; e se entregou esponsalmente por ela (Ef 5,25-27).

Quanto à vida, ela se esconde nos traços misteriosos, pessoais e singulares de cada pessoa humana, mas cada um conhece os cantos escuros ou luminosos de seu próprio existir. Assim, sob o manto das vicissitudes cronológicas e nostálgicas da estampa da longevidade dos anos, a filografia do amor é costurada, simbioticamente, com as linhas da paixão. Com efeito, a reciprocação do amor não se sustenta na vida sem as disposições interiores para o sofrimento caritativo, para a renúncia voluntária, para o diálogo franco, desapaixonado, isto é, sem os ditames condicionados pela cegueira do calor do momento, e, claro, tudo isso direcionado para a cumplicidade quanto ao destino flamejante da felicidade. De fato, as cartas de outrora, derramadas na literatura magistral das Achegas Biográficas, Edson & Yara – imbricadas na arte dialética de Ana Maria Fonseca Medina, a autora – traduzem o sentimento sublime, gracioso e espontâneo das exigências temporais que encantam o olhar cruzado entre dois amores.

Na compreensão de Jorge Carvalho, a autora nos presenteia “com um novo estudo. Aproveitou o cenário de nascimento do médico oftalmologista Edson Brasil, para compor um atraente ensaio biográfico emoldurado pela sedutora história do amor que uniu o devoto de Esculápio com a ‘rainha das águas’, que encontrou na cidade de Boquim a sua Yara”. Boquim sempre se destacou nos tempos áureos como a terra da laranja! E isso se refere aos verdes campos floridos que se projetam na geografia pastoril do lugar. Comparativamente, o bucolismo literário é uma espécie de jardim onde nascem as mais belas flores da história dos amores. E, assim, Ana Medina soube colher, sobejamente, os frutos da semeadura cultural no meio de sua gente. De fato, flertes dessa grandeza preenchem as laudas vicejantes da sabedoria vocabular com que ela mapeou a textura esferográfica da existência dos homenageados. É a própria autora quem o reconhece: “A paisagem epistolar grafada pelo autor das cartas aponta trajetórias, testemunham o cenário no palco da vida [...]. Elas são a expressão mais profunda de uma conquista sincera, gravitam entre o amoroso e o prosaico. Poder-se-ia considerá-las um memorial de bem-querer, marca de um tempo em que o respeito e a galanteria caminhavam de mãos dadas. Uma história de amor contada entre linhas cheias de ternura”.

E mais ainda: “Acompanhei, desde a minha infância o casal, exemplo de união perene, portanto, é um alegria imensa plasmar no papel o que os meus olhos tão longevos viram e gravaram na alma”. Trata-se, pois, do testemunho ocularmente palpitante, que transpõe as barreiras profundas do horizonte das câmeras e atinge a essência da percepção do olhar. Ao partilhar suas descobertas, ela nos devolve o brio de existências temporalmente distantes, mas hodiernamente presentes nas lentes da escritora em confidências com o leitor. Sua pena revela segredos escondidos na inconsciência do cronos, a fim de nos ostentar – no genuíno sentido do termo latino, que significa “mostrar” – a grandeza de duas vidas que se correspondem na cumplicidade do amor-doação recíproco.

O amor verdadeiro e fiel supera os ventos culturais do modernismo e se demonstra enraizado na alma do esteio familiar, como na fecundidade da união esponsal diante da verdade de si próprio e do outro. Isso também é alinhavado nas missivas apresentadas na moldura da obra. Além do estilo leve, escorreito e agradável, impostado pela autora. Portanto, vale a pena conferir.

Gilvan Rodrigues. Padre e Escritor.