terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Dois Lordes ingleses na Itália!

                          DOIS LORDES INGLESES NA ITÁLIA
                                                                                                     
                                                                                             

Era o ano de 1999, quando o Arcebispo de Aracaju, Dom José Palmeira Lessa, enviara dois sacerdotes de Aracaju, para se prepararem melhor no sentido de ajudar na formação dos futuros padres da Igreja particular de Aracaju. Seus nomes? Eram o Pe. Jadson da Silva Ramos e o Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos. Encontrávamo-nos em Leggiuno, na Região de Varese, nas proximidades de Milão, a capital financeira e industrial do país. Como já disseram, estávamos perto da São Paulo italiana. Tratou-se, na verdade, de um encontro de formação proporcionado pelos Legionários de Cristo, que tinham aberto seu Seminário em Roma para a formação de padres diocesanos, e que, naquele momento, prestava esse serviço a muitas Dioceses do mundo inteiro. 


Aconteceu que, como Dom Lessa fosse receber o pálio das mãos do então Papa João Paulo II, hoje o Beato João Paulo II, surgiu no coração do Pe. Jadson o desejo de participar da celebração na Basílica Vaticano, como ainda hoje acontece todos os anos, quando os arcebispos se apresentam diante do Santo Padre, a fim de receberem a confirmação de sua profunda unidade ao Romano Pontífice. Mas, onde será que iríamos hospedar-nos, se não conhecíamos ninguém que pudesse acolher-nos? Logo, apareceu a sugestão de procurar um amigo que habitava no Seminário dos Legionários de Cristo em Castel di Guido, nas cercanias da Cidade eterna. Tratava-se do seminarista, hoje sacerdote, Francisco Agamenilton Damascena, da Diocese de Uruaçu no interior do Goiás. Fiz algumas ligações telefônicas para manter contato e ele, muito gentilmente, não apenas dispôs-se a encontrar um lugar para pernoitarmos como também iria buscar-nos na estação Términi, a maior de Roma. De madrugada, ela já se encontrava lá, à nossa espera. O problema é que fôramos parar na estação Tiburtina, de modo que, só nos vimos mais tarde no próprio Seminário, aonde chegamos de taxi. 

A viagem de Milão a Roma foi a pior possível. Um trem vagaroso, tipo “Maria fumaça”, que parava em tudo quanto é lugar, muita gente apertada nos vagões, e o calor infernal causaram uma impaciência interminável durante as sete horas de percurso. Passamos a noite inteira no caminho. Brasileiros, desconfiados que somos, não conseguimos pregar o olho por conta das pessoas estranhas com olhares suspeitos ao nosso imaginar. Um casal saliente fez de quase tudo à nossa vista, sem constrangimento nem pudor. De fato, foi uma viagem muito incômoda. Então, resolvemos que gastaríamos todo o dinheiro possível, mas voltaríamos de Roma no Eurostar, um trem de alta velocidade, talvez, como o TGV (Train à Grande Vitesse – Trem de Grande Velocidade), na França. Assim, fizemo-lo no conforto da viagem como se fôssemos dois lordes ingleses, eu de terno e gravata e o outro um tanto mais à vontade dentro de seus panos. Logo que entramos no trem, percebemos a diferença em relação àquele que nos levara a Roma. Pouca gente ocupando os vagões, cadeiras mais espaçosas e movediças, em que podíamos ficar mais refestelados, enfim, um percurso que seria feito com mais comodidade, sem falar do luxo e da sofisticação da modernidade no interior do trem que pararia somente em Bolonha para a conexão. No entanto, “marinheiros de primeira viagem” que éramos, acabamos por nos esquecer de timbrar o bilhete. Tendo-me dado conta do fato, o Pe. Jadson pediu-me que fosse realizá-lo, pois do contrário, pagaríamos uma pesada multa. Imaginem, além de estrangeiros, padres tentando fraudar o sistema de transportes na Itália! O vexame seria grande, mesmo que não tivesse sido intencional. Todavia, olhando o horário no relógio, não haveria mais tempo de timbrar o bilhete. “Não há mais tempo, se eu for, ficarei sem viajar”, disse. Fazer o quê, então? Como a necessidade torna o homem esperto, resolvi perguntar a uma senhora o que eu poderia fazer para não ser flagrado sem pagar a passagem, ou melhor, sem marca o bilhete, de modo que fosse iniciado o período de validade do mesmo, que duraria seis horas a partir o momento do timbre. A senhora aconselhou-me a procurar o “controlore”, na intenção de que ele colocasse uma observação no bilhete, o que me evitaria pagar a multa mais tarde quando ele passasse conferindo os bilhetes. Foi, pois, o que fiz imediatamente! 

Passado o sufoco inicial da viagem, estávamos tranquilamente usufruindo do passeio em terras italianas. O trem em alta velocidade. As paisagens externas bonitas e verdes, cobrindo a vastidão do horizonte e embebendo os olhos da beleza natural do velho continente. Sorrisos e comentários rebentavam de lábios festivos com o turismo dentro de um Eurostar. Que diferença do outro trem, do trem “Maria fumaça!”. Impressionante como, revivendo aqueles longínquos momentos, até agora adormecidos na distância do tempo e na memória do reencontro com os fatos passados, experimento a mesma sensação daqueles instantes idos de outrora. Esperei algum tempo, a fim de que o pó dos anos assentasse nas reminiscências da consciência o sabor das palavras para elaborar o texto que agora construo. Mas a euforia durou pouco como alegria de pobre. Fomos surpreendidos pelo inesperado. Eis que despontou, de vagão em vagão, o “controlore”, que pedia o bilhete para fazer um furo, garantindo a inutilidade para viagens proximamente futuras. Se o bilhete tinha um prazo de validade de seis horas, e de Roma a Milão durava quatro horas, onde será que usaríamos o bilhete de novo? A verdade é que, no nosso caso, esse não era o problema, visto que descobrimos somente quando o “controlore” pegou nosso bilhete, olhou a observação que havia feito, conforme minha solicitação na origem da viagem, deu um grito e disse: “Senhores, esse bilhete não é de primeira classe! Avancem cinco vagões e se dirijam ao vagão que lhes é destinado na segunda classe”. Nada poderia ter sido mais engraçado durante aquele passeio pela Europa, que durou dois meses entre a Itália, a França e a Inglaterra, do que o que nos ocorreu naquele belo, confortável e veloz Eurostar! 

Desconfiados, quais dois nordestinos perdidos no meio da civilização europeia, pegamos nossas bagagens e começamos a andar pelo trem. Os dois lordes ingleses foram tomados de criatividade e decidiram – inspirados pela minha abordagem – retardar a travessia da primeira classe para a segunda. Antes de atravessarmos em direção à primeira classe, nos detemos no restaurante, e eu falei ao Pe. Jadson: “Como a gente não sabe como é a segunda classe, nem os garçons sabem que estamos no lugar errado, vamos aproveitar para tomar o café da manhã, demorar viajando aqui e, depois, a gente transpõe os umbrais da segunda classe”. Assim combinamos, assim ficamos. O restaurante era muito luxuoso, com as mesas bem arrumadas com toalhas e um jarro de flores no centro, sem falar da saborosa variedade de pães, queijos, danones, granola, sucos e etc. Pedimos a um garçom que fizesse fotografias, enquanto ríamos sem parar. Foi um divertimento só, depois do mico que tínhamos pagado. Já cansados de estarmos ali, chamamos o garçom, pagamos a conta e fomos embora para a segunda classe. Como o pessoal do restaurante não sabia do nosso bilhete, quando eles pensaram que nós iríamos voltar à primeira classe, atravessamos as mesas e chegamos ao vagão dos pobres mortais, com a diferença estupenda da primeira classe onde se encontravam os lordes ingleses. Primeira parada no vagão da segunda classe, um restaurante totalmente desprovido de tudo. Nem mesa, nem suco, nem danone, somente um pão duro de roer. Quando percebi a diferença, minha reação foi de risada. Fui tomado por uma crise de riso que não conseguia conter e, consequentemente, não poderia explicar ao Pe. Jadson, porque não dava conta. Foram trinta minutos de hilariante descontrole emocional, mental. 

Assentado no vagão da segunda classe, cheio de gente como no anterior “Maria fumaça”, em poltronas desconfortáveis, num barulho insuportável de início de feira, pessoas fedidas, com perfume vencido, eu não conseguia parar de rir, um instante, lembrando-me do vagão dos lordes ingleses, do qual fôramos expulsos. À minha frente, um padre italiano não sabia o que estava acontecendo, e me olhava meio assustado. Nunca me diverti tanto numa viagem como naquele dia. Esse é um dos privilégios da memória humana que traz do passado ao presente as aventuras vividas pelo crivo da inteligência que nos devolve, em forma de atualização, o brio da própria existência.