segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Cartas d'além mar

 

Cartas d’além mar

 

O gosto pela arte literária arrebenta as bordas do cálice e transborda na ânfora da sede dos intelectuais. Desse modo, mais uma vez, somos brindados pela grandeza magistral da literatura cabralduartiana, isto é, relativa à exposição linguística de Dom Luciano Duarte (1925-2018), que, ao contrário de ser um “franco-atirador da palavra”, como disseram de Friedrich Nietsche (1844-1900), sempre disparava em alvos certeiros, atingidos pela competência ligeira e eloquência franca quando construía suas rápidas elucubrações e desferia as flechas do saber. Trata-se, portanto, de mais um trabalho organizado por aquela a quem considero, carinhosamente, minha “madrinha intelectual”: Ana Maria Fonseca Medina, da Academia Sergipana de Letras.

O estilo cabralduartiano é envolventemente solene em todos os estágios e aspectos de sua leveza e contundência. Com a palavra, ele quase conseguia materializar na fantasia do leitor – ou do ouvinte – desde as emoções mais profundas da existência humana aos lugares físicos da história descritos pelo pincel da argumentação genuína, calemburista e metafórica. No entanto, é preciso mais do que veio artístico para podermos apreciar, na justa medida, o rio caudaloso, travolgente, impetuoso, da artimanha da elasticidade conteudística de suas proposições. Com efeito, a própria experiência antropológica dos mortais sobrevive no tecido dos vocábulos para o deleite dos que não foram esquecidos pelo curriculum de suas façanhas existenciais, porque ressuscitados na memória dos vivos. Sua palavra não é um corte vazio no rasgo dos sentimentos ou na sensibilidade das feridas abertas da alma. Na verdade, carregada de emoções, com vibrações de êxtase interior, flanando vicejante pelas frestas do espírito, a dinâmica da sua grafologia invade a essência da vontade no comando das letras. E elas lho obedecem! No entanto, tudo isso poderia permanecer escondido no segredo do tempo, sem manifestar sua tempestiva novidade, se não fossem a munificência e o interesse de alguém em querer expor, de maneira ponderada e contextualizada na moldura da cronologia experiencial, os textos sincronizados e harmonizados na constituição de um livro. Com efeito, história que não é contada pode também permanecer desconhecida.

Nesse sentido, o mérito da obra poderia ser tripartido entre o autor: Dom Luciano Duarte, que o escreveu; Carminha Duarte, que disponibilizou os textos para publicação; e, evidentemente, Ana Maria Medina, que soube, como em tantas obras suas, garimpar no celeiro da cultura das letras o brilho e a essência das pérolas grafológicas do autor. O próprio título – Cartas d’além mar – já penetra a intuição dos ledores numa atmosfera de saudade e nostalgia que enchem de luz e encanto o horizonte inolvidável de plagas distantes, geográfica e sentimentalmente intensas, enquanto mergulha o saudosismo benéfico da nossa percepção nas profundidades desconhecidas do próprio ser.

Nas palavras da Organizadora, que nos apresenta a Obra, “As cartas são dos anos 1954, 1955, 1956, 1957, período em que buscou na Europa o doutoramento em Filosofia, na Sorbonne. O papel é fino, mas estão muito bem conservadas. Algumas manuscritas e a maior parte escrita à máquina. A atitude preservacionista da genitora do Padre Luciano Duarte, colecionando-as, foi continuada por Carminha, a irmã, o que nos possibilitou fazer esta publicação”. Portanto, dentro desse contexto de erudição literária, continua a Organizadora: “O jovem sacerdote, de apenas 30 anos, despe-se da metáfora da sotaina preta, soturna, sisuda, para revelar a alma delicada do filho e irmão amoroso, saudoso dos seus, do seu país e sensível àquele Velho Mundo, tão novo para ele e pleno de possibilidades culturais. Sem dúvidas, a experiência na Europa protagonizou problemas comuns a qualquer estudante estrangeiro, inicialmente, a barreia da língua, que rapidamente ultrapassou com eficiência, recebendo elogio dos professores; o problema do clima, do ritmo pesado das aulas, enfim, tudo foi superado pela obstinação de o desejo tantas vezes expresso desse sonho do doutoramento na ‘velha e inesquecível’ Sorbonne’”.

Nessa linha de raciocínio, gostaria de registrar também o pensamento do prefaciador, Carlos Pina, igualmente, da Academia Sergipana de Letras: “Surpreende, então, que mais de seis décadas passadas da redação das Cartas, o Autor tenha tanto a nos ensinar quanto à qualificação do comportamento humano, diante da crise dos padrões éticos desta nossa já antiga civilização ocidental”. De fato, a incisão literária da pena cabralduartiana não abandona os ditames axiológicos da perenidade do que sempre foi o correto agir humano, mesmo quando, infelizmente, vez por outra, devamos reconhecer que o dramático panorama civilizacional do ocidente está à beira do abismo ou do descalabro moral, quase sem solução reversível. Mais ou menos, quando a ligeireza da esferografia do autor, precisa sobre os trilhos das letras, segue, com inopinada observação, conjunturas que são praticamente como aquelas que “Não têm solução” (p. 80), ao se referir ao Brasil político, acolhendo, desse modo, a compreensão da poesia de Dorival Caymi.

A obra de 498 páginas foi patrocinada pelo Governo do Estado de Sergipe e entregue à Arquidiocese de Aracaju, a fim de que administre as vendas e os beneméritos pecuniários em atividades pastorais ou educacionais, máxime, na formação dos candidatos ao sacerdócio, por quem Dom Luciano demonstrou tanto apreço e dedicação pessoal, motivando neles a conquista do saber erudito. Ou seja, mesmo ausente, Dom Luciano Duarte permanece colaborando, mediante os frutos de sua atividade intelectual e literária, com a Arquidiocese de Aracaju à qual tanto serviu, com competência, palavra e, sobretudo, verdade. (PGRS). 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

O Beato Carlo Acutis...

 

O Beato Carlos Acutis



Os amigos de Deus também podem se tornar incorruptíveis aos olhos desse mundo. Hoje, no dia em que celebramos a memória de Santa Terezinha do Menino Jesus (1873-1897) – que igualmente morreu jovem e teve o privilégio da santidade, com o seu corpo incorruptível – contemplamos, extasiados a imagem do corpo do Beato Carlo Acutis (1991-2006). Na verdade, o sentido do corpo incorruptível é uma expressão meio forte para o que entendemos por isso. Tanto que a Arquidiocese de Assis emitiu uma nota explicando: "Quando foi exumando no cemitério de Assis, o que se realizou a 23 de janeiro de 2019, com vista à sua transferência para o Santuário - explica Dom Sorrentino - encontrava-se no estado normal de sua condição cadavérica. No entanto, como os anos não foram muitos, o corpo, embora transformado, tinha várias partes ainda com sua forma anatômica. Foi tratado com aquela técnica de conservação e integração habitualmente praticadas para expor com dignidade os corpos dos beatos e santos para a veneração do fiéis. Uma operação feita com arte e amor. A reconstrução do rosto com máscara de silicone foi particularmente bem-sucedida. Com um tratamento específico foi possível recuperar a preciosa relíquia do coração que será aproveitada no dia da beatificação".  

Agora, ele começa a subir os degraus do altar pela sua santificação. Com efeito, a santidade não é uma definição dada pela Igreja nem um prêmio de consolação para os super-heróis da modernidade da História. Pelo contrário, ela é uma confirmação da amizade com Deus durante toda a existência humana, que aponta na direção do alto, não obstante as conjunturas desafiadoras da cotidianidade. Os santos miram Deus em sua plenitude e se unem a Ele pelo esforço de santidade exigido para essa intimidade profunda, radical. A beatificação acontecerá no próximo dia 10 de outubro, em Assis, mas seu corpo já pode ser venerado, desde o início do mês de outubro.

Jovem como tantos outros de seu tempo, amigo da internet e das redes sociais, ofereceu o sacrifício de sua vida pelo Papa Bento XVI. No seu livro biográfico – Eucaristia, a minha estrada para o céu – o autor, Gori, destaca que Carlo não era uma pessoa alienada, mas consciente de ter encontrado Cristo, e a fim de lhe permanecer fiel, estando disposto e pronto para desafiar a opinião comum e os hábitos da maioria. Não teme as críticas nem os escárnios, considerando já algo inelutável, e de onde poderia partir para conquistar seus amigos à causa do Senhor Jesus. Todos recordam, então, seu sorriso, sua serenidade, sua profunda bondade, como sinais daqueles que vivem segundo os estigmas do evangelho e são contagiantes. Trata-se, pois de um apóstolo dos tempos modernos, com os novos instrumentos que o progresso e a técnica colocaram à disposição, de modo que ele consegue anunciar não uma ideia, fechada em si mesma, mas uma Pessoa, um Amigo, com o qual teve um encontro fulminante que transtornou a sua existência. (Gori). Deus não apenas escreve suas maravilhas na história dos homens, mas, também, manifesta o seu poder extraordinário mediante coisas inexplicáveis como é o caso do corpo incorruptível dos santos. Deus e seus mistérios! Quem poderia compreendê-los a fundo?



Curiosamente, o primeiro milagre atribuído ao novo beato, que nasceu na Inglaterra, morreu em Milão e foi sepultado em Assis – por cuja terra tinha grande devoção em virtude de São Francisco, que o admirava muito – foi de um garoto brasileiro de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Acometido por uma doença rara, tocou em uma roupa-relíquia de Carlo Acutis e pediu-lhe a cura. Agora, com a beatificação, o jovem, que foi enterrado de moletom e tênis da Nike – que, por sinal, ao que parece, não se deterioraram – foi considerado um “ciberapóstolo da Eucaristia”, e, assim, exercia o seu apostolado em nome de Cristo. Segundo nosso autor, o tempo transcurso diante da Eucaristia era para Carlo Acutis como uma “escola de amor”. Não somente devia comportar-se bem, mas deveria fazer algo mais: deveria entregar-se a Deus para ser útil aos irmãos. Daí nasce seu zelo pelas almas. Não bastava rezar, era preciso ainda falar de Jesus, de Maria, dos Novíssimos – referentes, segundo a escatologia, às últimas experiências da pessoa, isto é, morte, juízo, inferno e paraíso – e do risco de perder-se. Talvez, pensasse no perigo que as almas correm de desfalecer ou desencorajar-se em relação a Deus. (Gori).

A maior parte de suas férias era vivida, especialmente, em Assis, numa casa da família. Ali, com os jovens amigos Mattia e Jacopo, divertia-se imensamente ao ar livre, parecendo ver a presença do Pobrezinho de Assis, que amou as criaturas e a natureza, reflexos da bondade e da sabedoria do Criador. Como grande explorador que era, Carlo Acutis, desbravava as belezas do lugar, colocava-se a procura de Deus também durante as inocentes caminhadas pelos campos de Assis. O ar puro, o sol, o calor, o vento quente, Carlo e seus amigos, que tinham quase a mesma idade. (Gori). De fato, às vezes, pensamos que os santos são pessoas muito distintas de nós mesmos, quando, na verdade, eles vivem uma vida normal, tranquila nos afazeres da cotidianidade. Contudo, penetrados pelo espírito de uma consciência profunda por estarem, sempre, diante de Deus. É o olhar da graça que tende a agradar a Deus em tudo, o que, certamente, os eleva acima das almas sonolentas em relação às coisas do alto. Mas eles não estão fora do mundo, não são extraterrestres, esperando a nave espacial que os arrebatará para o além.

Como Francisco de Assis, Carlo Acutis também ajudava os pobres, os desamparados, inclusive tirando dinheiro de sua “paghetta”, quer dizer, da sua mesada. Eram gestos inspirados em dois grande santos que foram contemporâneos: São Francisco (1182-1226) e Santo Antônio (1195-1231). Em contextos tão diferentes dos tempos em que vivemos, a marca dos santos são indeléveis em relação à caridade de Cristo que se desvela pelos irmãos até às últimas consequências. Os testemunhos se completam, de modo que, como escrevi, intitulando outro texto sobre esse jovem beato, “santidade não tem idade”. Ou seja, que todos podemos alcançar os bens eternos pelo espírito de abertura às moções do Espírito de Cristo, como fizeram o santos.

Desejamos que o novo beato, Carlos Acutis, interceda, máxime, pela juventude desses tempos difíceis, de percepções rasteiras, sub-répteis, tão desorientada, desenraiza dos valores cristãos na sua imensa maioria. Que o futuro santo de calça jeans, de moletom e de tênis nikeano, seja uma referência e uma bússola norteadora das aspirações sublimes para os nossos jovens, para todos nós. Beato Carlo Acutis, Rogai por nós! Amém. (PGRS).