sexta-feira, 14 de março de 2014

Tecnologia Desumanizante

Tecnologia Desumanizante

 

A tecnologia deveria estar sempre a serviço do homem, sobretudo, realizando um papel eficiente e de benefício para a humanidade. Mas, não é isso o que parece estar acontecendo, quando, por exemplo, as pessoas imaginam poder usar a tecnologia para todo tipo de desabafo e até mesmo ofensas pessoais. Não frequento muito as rede sociais por meio do que muitas pessoas estão tirando proveito, de modo especial, para angariar um pouco de reconhecimento e prestígio, e conseguir seus 15 minutos de fama. No meio artístico, há muitas personalidades que, passando por ali, tornaram-se mundialmente nomeadas pelo seu talento e esforço de popularidade. Sorte delas! Mas, nem todo mundo possui as características necessárias para sobressair-se em meio ao caos invasivo e estonteante da exposição cibernética de baixo talento e pouca qualidade das baboseiras que, às vezes, somos quase constrangidos a ver. 

O fato é que, por trás dos aparelhos modernos e refinados da tecnologia de que nos servimos para múltiplos modos de comunicação, podemos evidenciar a periculosidade impessoal das telas, dos aplicativos, dos dispositivos de alcance cronológico espacial das possibilidades efetivas de transmissão das mensagens, por cuja utilização, tentamos livrar-nos de certos incômodos da convivência pluricultural ditada pela distância física ou geográfica das pessoas. Já tive uma conta no face book, depois de alguns meses, aborreci-me e fechei. Uma enxurrada de comentários e manifestações de gente desconte com os outros, expunha seus desafetos sem piedade nem senso de respeito, considerando somente a tela fria que recebia suas mensagens, como se do outro lado não houvesse uma pessoa viva, sentimental, cheia de sensações e motivos para defender sua dignidade diante da covardia das injúrias alheias, depositadas no canteiro das redes sociais, que deveriam fazer tanto bem, que deveriam unir e, não, dividir, separar as pessoas. Quem não presenciou ou tomou conhecimentos de situações desse tipo? Assim, a dignidade humana desce pelo ralo do sistema nervoso das telecomunicações modernas. Sem falar de outros aplicativos por meio dos quais nos negamos a ouvir a voz do outro – ninguém fala mais com ninguém – de modo que o desinteresse pelo semelhante virou uma chaga viva, da qual borbulha a putrefação da indiferença. Portanto, no raio da circunferência dialogal, a brutalidade dos recados destrói até amizades que foram construídas ao longo dos anos. Amizades vividas no aconchego da suposta “familiaridade”, da qual, às vezes, somos precipitados sem motivos aparentes. E, para isso, um segundo – isto mesmo, “um segundo” – pode ser suficiente para jogarmos fora os amigos que enjoamos tanto quanto o lixo que descartamos no monturo da invalidez. E o mais grave é que, nem sequer, damos-lhes a oportunidade ou o direito para que se expliquem ou, talvez, peçam desculpas ou perdão mesmo, pois, nos relacionamentos humanos, ninguém fere sem se ferir. 

 

Oh humanidade cruel! Humanitas crudelis! Ó humanidade cruel, teu caminho não é o da reconciliação. Teu kronos não é alvissareiro da esperança, nem tua plenitude favorece a realização concreta do sonho desejoso da paz e da tranquilidade de espírito. Quantas feridas não se abriram no sulco de teu terreno infrutífero, mas úmido pela fertilidade do mal? A âncora de teu desprezo desumaniza o homem criado para a humanização! 

“Um segundo” é muito tempo! Enganam-se aqueles que pensam que “um segundo” pode ser desconsiderado na textura cronológica da existência. Com efeito, é na corrente dos segundos que nossa vida é constituída. Nela, a vida se desenvolve, atinge sua plenitude nos anos e, depois, desaparece, cortada pela cisão temporal entre o aqui e o lá do desconhecimento humano. No caso das despedidas, o segundo se perpetua na decorrência de seu instante efêmero que se projeta no futuro das vicissitudes incongruentes dos desejos transcendentais do homem. Como diria Suzana Vieira, atriz de novela, “o amor não é para sempre! Para sempre é o adeus [a despedida!]” O mesmo pode ser dito das amizades que não são para sempre, como gostaríamos. Algumas não duram no tempo nem subsistem aos vendavais circunstanciais dos desafetos. Mais ou menos como na afirmação de La Rochefoucauld: “Por mais raro que possa ser o amor, ainda mais rara é a verdadeira amizade”. É como se o fio condutor da preciosidade pelo outro se desgastasse pelo enjoo da proximidade. Isso dito da convivência que nos acoberta pelos laços da amizade quando estamos juntos. Se é que estamos juntos, unidos. Na verdade, tão frágil e tênue é a vibra dos relacionamentos que temos dificuldade para sentir-nos seguros dentro dela. 

Paradoxalmente, se a tecnologia tenta aproximar-nos pela invisibilidade da globalização, o fato é que nos sentimos cada vez mais sozinhos. Vivemos conectados com o mundo inteiro, mas separados uns dos outros pela incapacidade de construir a verdadeira fraternidade enquanto princípio da autêntica humanização. Foi o Papa Bento XVI quem escreveu: “A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade”. Um pensamento certeiro no alvo da modernidade tecnológica em que nos imaginamos envolvidos quotidianamente. Porém, não podemos ser ingênuos a ponto de não nos questionar sobre os verdadeiros benefícios que ela nos tem proporcionado. Seria bom que pudéssemos, então, fazer uma análise crítica de nosso comportamento frente a ela. Do quanto já fomos visceralmente atingidos pelo vício cibernético que nos tem roubado coisas muito preciosas de nossa humanidade. De fato, já nos envolvemos tanto com o fascínio da máquina ao alcance da mão, que corremos o risco de assumir em nossas atitudes a frieza desumana de sua insensibilidade. Dela poderemos herdar a indelicadeza pela qual nos afastamos ainda mais dos entes queridos. Dela já quase perdemos o privilégio do diálogo sonoro pelo qual poderíamos ouvir a voz do outro, perceber suas emoções, captar sua tristeza, deixar-nos contagiar pela sua alegria ou participar, de maneira mais interativa, pela cadeia dos sentimentos de suas esperanças e de seus sonhos. Todavia, em outro tipo de raciocínio, o Papa Francisco tem um pensamento luminoso, que poderia ajudar-nos na superação do indiferentismo de que fomos infectados até a alma pelos espectros tecnológicos da modernidade: “Neste tempo em que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alçaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a ‘mística’ de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos. [...] Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência, a humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos”. 


Diferentemente da ideia do Papa, acabamos por tornar-nos “escravos tecnológicos”, segundo a expressão do colunista André Gustavo de Araújo Barbosa, em cujo artigo, assim intitulado, podemos ler: “O Pensador francês Jean Baudrillard, em 1990, muito antes da internet e dessa dependência tecnológica ganhar a proporção que é hoje, criou o termo ‘sujeito fractal’ para designar esse sujeito ansioso em representar ou performar sua intimidade para os outros. Para o ‘sujeito fractal’ é necessário, quase vital, expor sua vida, mostrar o que tem, o que vive, o que faz, o que pensa de uma forma intensa e dependente. Essa aparência narcísica de um ego gigante e fora do normal esconde o vazio da própria subjetividade, sendo apenas um fragmento, infinitamente reproduzido, do padrão do todo”. E o mesmo autor acrescenta: “Os escravos tecnológicos vivem presos aos seus aparelhos como extensões dos seus corpos, muitos não os abandonam nem quando vão ao banheiro, ou quando dirigem ou quando dormem. Alguns destes escravos vivem presos às suas senhas, pois precisam esconder dos outros a pobreza da sua vida, das fugazes relações ou mesmos suas mentiras sinceras. Suas vidas e histórias estão dentro de uma caixa de fios, metais e chips. O impacto da falsa privacidade e da escravidão consentida faz até [com] que estes dependentes tecnológicos precisem mudar seus comportamentos e atitudes, um exemplo é a necessidade de esconder a tela do seu aparelho, colocando-os de face virada para baixo sobre as mesas para outros não vejam suas mensagens”. Em outras palavras, somos tão “verdadeiros” com nós mesmos que precisamos esconder nossas “mentiras” da curiosidade alheia. Portanto, também concordo com André Gustavo quando ele afirma no mesmo texto: “Não há dúvida que o mundo é muito melhor e que houve avanços na qualidade da vida, mas também é uma certeza que distorções têm acontecido e a mesma tecnologia que pode salvar, e fazer o bem, pode fazer o mal e destruir vida, relações e saúde [itálico meu]. Nas mesas dos bares e restaurantes, nas salas das casas, nos pátios das escolas, nas camas dos casais, em quase todos os lugares, vemos pessoas abdicando da presença física da sua companhia e ficam ligadas aos seus aparelhos. Colocando as boas normas e as boas práticas da educação de lado, o digitador compulsivo vive um mundo que descarta as relações, tornando-as superficiais, frouxas e cada vez mais, vazias de sentido”. 

 

No fim de tudo, o homem, que criou a máquina, corre o risco de ser dominado por ela. O homo sapiens perderá o comando de si mesmo pelo domínio mecânico que lhe usurpou sua autonomia e liberdade para agir sem os condicionamentos impostos pela sua ambígua criatividade ou pelo fruto insapiens de sua própria criação.