terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Converter-se ao Anglicanismo

CONVERTER-SE AO ANGLICANISMO 


Esta é mais uma do meu interlocutor mirim, de doze anos, que me abordou com a seguinte argumentação: “Padre, eu estou pensando, seriamente, em me converter ao Anglicanismo. É a mesma igreja católica, embora eu saiba que o ‘papa’ seja a rainha da Inglaterra”. Então, eu quis saber suas razões ou motivações. E ele me respondeu: “Porque, lá, eu posso me casar quantas vezes eu quiser”. Logo, discorri sobre o fenômeno recente de muitos anglicanos que estão se convertendo ao Catolicismo de Roma, por conta de algumas questões históricas sem precedentes, que vão contra alguns princípios da religião de Cristo, e que, portanto, ele estaria andando na contramão da História.


Um menino que, segundo penso, não tem nem namorada, já está pensando na possibilidade de casar-se várias vezes numa igreja que, segundo seu professor de História, é conveniente para os que não aceitam a doutrina da Igreja Católica de Roma, por ser muito exigente e radical como o próprio evangelho de Jesus Cristo, que defendeu e defende a indissolubilidade do Sacramento do matrimônio. Sem dúvida, seu professor semeou tais inquietações no seu coração e na sua mente. É verdade que tudo pode não ter passado de um expediente recreativo dialético, mas o fato é que, como sementes jogadas no chão fértil de sua inteligência, a reflexão geminou e acendeu-se na luminosidade de seu espírito. Eis, portanto, de onde pode brotar a gravidade que pesa sobre a responsabilidade de um professor, se ele não souber dialogar bem com a História e o aluno, diante de quem ele abre a janela crítica ou leviana de seu raciocínio. Com efeito, o pensamento mal elaborado ou mal construído pode estragar e deteriorar por dentro as estruturas psicológicas, mentais ou, até mesmo, espirituais, de uma pessoa inadvertida e, muito mais ainda, o acesso livre de categorias preconceituosas pode deturpar a reta consciência das coisas em um adolescente em formação. Lembro-me do bilhete que o irmão de Ernesto Psichari, neto de Renan, que recebeu uma carta de Paul Claudel com o tom amargo da decepção diante das ideias perniciosas e corrosivas do seu avô: “Aceito o honroso convite de prefaciar o livro de seu irmão. Mas não lhe posso esconder o ressentimento profundo que tive, durante longos anos, contra o seu avô, Renan. O mal que este homem inteligente fez a mim e a inúmeros adolescentes, matando em nós a fé, foi inimaginável. No meu caso, foi preciso que o próprio Senhor, Ele mesmo, viesse falar-me, para restituir-me o dom perdido da crença” . Era uma referência “à sua extraordinária conversão, mediante uma manifestação direta de Deus, enquanto assistia, distraidamente, às Vésperas, em Notre Dame de Paris, no Natal de 1886” . Ainda hoje, nossas Universidades estão cheias desse tipo de falsa argumentação contra Igreja de Cristo, que nunca negou seus erros e pecados. Foi o Beato João Paulo II quem afirmou que a evangelização acontece por meio da dinâmica da “graça” e do “pecado”, porquanto se, por um lado, a graça de Cristo percorre o coração dos homens pela evangelização e a pregação da boa nova de Jesus, o Salvador de todos, por outro lado, os homens não deixam de ser pecadores.


A Igreja da Inglaterra – a Anglicana – nasceu no século XVI da vontade do Rei Henrique VIII de casar-se uma segunda vez. Ele era o esposo de Catarina de Aragão e gostaria de fazer o enlace matrimonial com Ana Bolena. No entanto, pra isso, ele deveria divorciar-se primeiro. Tendo, pois, pedido a aquiescência do Papa e não conseguindo a aprovação desejada, rompeu os laços com a Igreja de Roma e fundou, assim, a religião do Estado com base no Catolicismo romano, com a diferença de que não estaria mais sob a autoridade do Papa. Seu “papa”, desde então, é a rainha, hoje, Elisabeth II, que já está no poder há, exatos, sessenta anos. Formando uma Igreja separada de Roma, a atitude de Henrique VIII causou perseguição aos cristãos fiéis ao Papa. Houve torturas e mortes. Foi nesse período que foram assassinados o Cardeal Fisher, bispo de Rochester, e Tomás Moro, que era o então primeiro ministro da Inglaterra. A profissão de fé da Igreja Anglicana foi redigida em 1565, sem muita diferença da doutrina católica. Todavia, aboliram as imagens e o celibato sacerdotal. Adotaram-se a missa em língua inglesa – a Igreja Católica Romana conservou o latim até o Concílio Vaticano II – e a comunhão sob as duas espécies, isto é, o pão e o vinho. Também manteve vivo o episcopado, de modo que eles se consideram participantes da “catolicidade” e da sucessão Apostólica, como na Igreja Católica Romana. A título de curiosidade, a primeira missa celebrada em Aracaju, na língua vernácula, isto é, nacional, no caso, o português, aconteceu no dia 15 de agosto de 1963, segundo notificação de Dom Luciano Duarte no missal da época.


Na Igreja Católica de Roma, nós temos a preciosidade do testemunho do Cardeal John Henry Newman (1801-1890), que se converteu do Anglicanismo ao Catolicismo romano, depois de apurado estudo sobre a verdadeira religião fundada por Jesus Cristo, entre tantas outras, que se fundamentaram na Reforma de Lutero e também se separaram de Roma, embora devamos deixar claro que o Anglicanismo não é fruto de nenhuma pretensão reformista do Rei Henrique VIII. Educado no seio do Anglicanismo, sofreu muito até decidir tomar a decisão de abraçar a verdade sobre a única Igreja fundada pelo Mestre de Nazaré. De fato, a inteligência humana, angustiada dentro de seu próprio espírito de buscas incessantes, não se decide pela verdade que lhe salta aos olhos sem a dimensão profunda do sofrimento e da perseguição. Mas é preciso ter coragem, determinação e convicção radical das implicações existenciais de suas escolhas. Como diria o sábio professor Dom Luciano Duarte, de quem tantas vezes ouvi a expressão a seguir, “o único pecado imperdoável à razão humana é a incoerência”. Como se decidir por outro caminho quem vislumbrou a certeza da aquisição plena de suas pesquisas? Contra tudo e contra todos, vale a serenidade que invade a consciência do pensador insaciável em suas descobertas, mas que se deleita com a verdade encontrada e abraçada sem reservas nem cumplicidade com os condicionamentos do respeito humano.


O testemunho da fé se fortalece, sobretudo, num espírito aberto às ventilações da verdade. Foi o que aconteceu ao Cardeal Newman. No centenário de seu nascimento, em 1990, foi publicado um artigo na conhecida revista “Pergunte e Responderemos” sobre sua vida, seu pensamento, sua espiritualidade, sua trajetória de fé e conversão. Trata-se de um esboço valioso quanto à sua contribuição testemunhal num mundo cada vez mais cético e descrente. Os séculos continuam se arrastando pelo tempo afora, e os problemas humanos diante das certezas ou dúvidas da fé seguem o mesmo ritmo de outrora na cadência dialética do espírito do homem. Os pensamentos, a seguir, são do Cardeal Newman: “Nossa liberdade consiste em sermos cativos da verdade”: “Meu desejo foi ter a verdade como a amiga mais cara e não ter outro inimigo senão o erro”; “Tendes um destino, o destino da Verdade. A Verdade é vossa senhora; e não vós, os senhores da Verdade; deveis ir aonde ela vos leva”; “Nós, os filhos da Igreja... temos apenas uma voz, aquela única voz que foi da Igreja desde os primórdios”; “Começo a recear muito que nenhuma corporação religiosa tenha vigor suficiente para vencer a colisão do mal, afora a Igreja Católica”; “A fé não é a conclusão de certas premissas, mas resulta de um ato da vontade, o qual, por sua vez, resulta da convicção de que a creditar é o meu dever”. Convertido ao Catolicismo em 1845, o Cardeal Newman permitiu que toda a sua vida fosse marcada pelo amor à Verdade, pela profunda intimidade com Deus, adotando, inclusive, o rifão latino “Solo cum solo” – “A sós com Aquele que é Único”. Para traduzir seu profundo esforço intelectual e espiritual ao encontro da verdade sobre a única Igreja edificada por Cristo, tendo como fundamento os Apóstolos, colunas da sua Igreja, o Cardeal Newman quis que escrevessem no túmulo o seu epitáfio assim: “Ex umbris et imaginibus in veritatem” – “Das sombras e imagens para a verdade”.


Vivendo à penumbra da fé, talvez desprovida da luminosidade necessária à plenitude de todas as nossas convicções e certezas – dentro das quais colocamos também o autêntico vislumbre da Verdade – mais do que mascarar a verdade histórica com controvérsias preconceituosas e envenenadas de azedume e insatisfações pessoais, que sejamos capazes de abraçar os fatos em si mesmos, mormente, assumindo a responsabilidade da lisura e da competência do que eles podem e devem falar aos adolescentes e jovens em processo de formação. O resto é “flatus vocis”, isto é, estalido da voz. É o “blá-blá-blá” de pessoas mesquinhas e desonestas com a própria História, cujos conteúdos tentam transmitir e ensinar.