quinta-feira, 21 de agosto de 2014

As aventuras de um turista em Londres


As aventuras de um turista em Londres


 


Cheguei a Londres justamente no dia 14 de agosto de 2014, sete meses depois do anúncio que me fizera o Arcebispo Metropolitano de Aracaju, Dom José Palmeira Lessa. O voo 246 da companhia aérea British Airways, com mais de doze horas de atraso, nada elegante para a conhecida pontualidade britânica, decolou exatamente às 05h42, pousando no Aeroporto de Heatrow às 20h22. Era uma aeronave de grande porte, com assento para trezentos passageiros, segundo a informação que colhi de uma comissária a bordo. Era a segunda vez que pisava em terras londrinas para uma estada de duas semanas. Aos olhos do turista brasileiro, chegar a uma cidade grande e desconhecida é sempre um desafio patrocinado pela desconfiança e pelo medo. Ainda mais se ele chegar à noite, a mãe do pecado, como diria Santo Agostinho. Como será a recepção na alfândega? Que perguntas serão feitas? As malas serão revistadas? Felizmente, fizeram-me só duas perguntas, carimbaram o passaporte e me deixaram passar de modo livre e rápido. Depois, como fazer para pegar o transporte até o local de pernoite e albergue? 

 

Apesar de todas as orientações que me haviam sido dadas pelo pároco da Paróquia onde ficaria hospedado, com indicação dos meios de transporte mais fácies e baratos para minha deslocação, preferi pegar um taxi. Coisa de turista medroso e desconfiado. Logo ao sair do aeroporto, fui abordado por um senhor que, como diríamos no Brasil, fazia o trabalho clandestino, carregando turista para aqui e acolá. Não o aceitei. Ele nem era londrino. Procurei os taxis normais. Não aceitavam que pagasse com euro ou dólar. Tive de fazer o primeiro câmbio – troca de moeda – ao sair do aeroporto. Sem saber me expressar bem em inglês, mostrei ao taxista o endereço e ele me conduziu até lá. Paguei em libras esterlinas £. 75 Pounds como eles preferem chamar. Um colega me disse que com esse valor, eu poderia muito bem comprar uma passagem de ida e volta de avião para Roma. Fazer o quê? Depois de muito rodar dentro do taxi londrino, o silêncio foi cortado por uma pergunta do taxista. Não entendi nada. Mais uma vez, mostrei-lhe o endereço, e já estávamos perto. Graças a Deus! Então, encontramos a Igreja de “Santa Maria dos Anjos”, situada na Artesian Road – Rua Artesão. Na obstante o verão europeu, podíamos sentir o vento frio da noite batendo à pele e cortando o cansaço do calor nordestino e a distância da viagem. Com as malas no chão, apertei lentamente todos os botões da porta para ver se apareceria alguém para me atender. O silêncio era profundo. Nada se ouvia de dentro para fora. Esperava que uma pessoa me acolhesse. Esperei mais um tempo. Pensei que fosse dormir na rua, o que não me parecia um problema, pois não estávamos no Brasil, mesmo que a mentalidade de brasileiro nos persiga alhures. Um padre gentil me atendeu e depois sumiu. Fui levado até o quarto onde permaneceria por duas semanas em Londres. Agora, era só descansar e esperar o alvorecer do novo dia. Calmo e tranquilo, ainda se sobressaltado com a saída do Brasil onde deixei meus pais chorando de saudade e tristeza – “saudade e tristeza”, dois dos sentimentos que mais tempo repousam no fundo da alma – deitei para dormir e descansar. Não tenho dificuldade para dormir em nenhum lugar, contando que seja dentro de casa. A noite foi breve. No quarto onde me hospedei, encontrei um porta-retratos com uma inscrição que fala do Cardeal Henry Edward Manning, que ali habitara durante oito anos, de 1857 a 1865, como Reitor das Oblatas de São Carlos. Mais tarde, ele escrevera: “Os oito anos em que eu estive em Santa Maria dos Anjos foram os mais felizes da minha vida. Meu nome sempre estava sobre a porta, e nunca me senti tão em casa como quando eu estava naquele pequeno quarto”. 



No dia seguinte, 15 de agosto, conheci alguns padres chilenos e colombianos que também estavam hospedados na mesma Paróquia. Um deles se demonstrou muito sensível e cordial, e ajudou-me a organizar os dias com passeios, como preparar a comida, lavar as roupas, tomar transportes, enfim, de que modo que eu poderia não tornar os dias monótonos e cansativos durante minha estada em Londres. A primeira vez que saí com um amigo brasileiro e voltei sozinho, cheguei à estação Notting Hill Gate, perto de casa, e não sabia onde estava ou que direção tomar. Senti-me perdido. Quase bateu o desespero. Sem o número de telefone de ninguém, sabia apenas o nome da rua porque tinha decorado. Tentei pegar um taxi à moda brasileira, acenando com a mão. Ninguém parou. Tentei acalmar-me e fui arriscar meu inglês com as pessoas na rua. Pedi informações sobre a Artesian Road, e me disseram que não estava muito longe dali, mas que me informasse melhor. Fui adiante, encontrei um rapaz fumando. Repeti a pergunta, e ele me respondeu com seu inglês invejável afirmando que pegasse a primeira à esquerda de onde eu estava, caminhasse uns dez minutos, que estaria lá. Foi o que aconteceu. Como reza o ditado, parafraseando-o, “quem tem boca também vaia a Londres”. A vida do turista é assim cheia de aventuras, encontros e desencontros que valem a pena pela coragem com que ele se dispõe a sair da mesmice e invadir o mundo desconhecido do lugar que o cerca. A Inglaterra como Londres, a sua capital, é um foco de história, civilização e cultura onde muito tempo é sempre muito pouco para atingirmos as razões profundas da escalada cosmopolita que a conduziu ao que ela é hoje. A história é longa demais como a de todos os povos. 

 


Aqui, a história do Cristianismo também encontrou uma maneira diferente de tentar encarnar o espírito evangélico longe da vontade de seu Fundador. Uma maneira errada de conceber a potencialidade de todos os caprichos humanos diante da fantasia da fé que não respeita Deus como centro e epicentro da felicidade querida para a Sua criatura. Enquanto mais o homem se volta para si mesmo mais ele se distancia de Deus. É a cidade terrena que corre para sua plenitude transitória e se debate na libertinagem que a fecha para a cidade celeste. O palco civilizatório das vontades humanas apresenta rachaduras que fizeram conspurcar a face da Igreja do Senhor como acontecera com os cismas históricos ao longo dos séculos. Renunciamos à Sua vontade para fazermos a nossa. Recentemente, o Papa Francisco recebeu no Vaticano um grupo de bispos da Igreja Anglicana e entre eles se apresentaram algumas sacerdotisas – mulheres ordenadas sacerdotes – para escândalo dos cristãos da Igreja de Roma. Um verdadeiro desrespeito para com a Igreja Católica e o Santo Padre na concepção de alguns analistas. O editor de um jornal inglês afirmou de maneira irônica que aquele seria um dia historicamente muito importante para o ecumenismo. Terra de santos e de mártires, a Inglaterra deve muito ao catolicismo romano. Visitando a esplêndida Abadia anglicana de Westminster – que fora templo católico – fundada no século X, quando a maior parte dos cristãos da Europa ainda aceitava a autoridade da Igreja Católica Apostólica Romana e do Papa, a sensação que nos penetra a alma é a de quem se sente espiritualmente desconfortável pelos abusos doutrinários que suplantaram os ideais do próprio Evangelho de Cristo que quis sua Igreja unida e não separada por tantos credos e profissões de fé. 

 

A verdade é que o desmantelo da Igreja Anglicana, vista por quem a contempla de dentro, com os respingos sobre quem a olha de fora, torna-se cada vez mais evidente depois da ordenação das mulheres, da consagração de bispos abertamente declarados gays, e de tantos padres que se converteram ao catolicismo romano. É certo que a graça e o pecado estão por todos os lados, mas não é a deliberação pessoal de ninguém que vai dizer certo ao errado, bem ao mal, verdade à mentira, luz às trevas, visão à cegueira, santo ao profano, divino ao satânico, e assim por diante, pois tais definições não fazem parte das concessões, conveniências ou presunções pessoais de nosso arbítrio. Tal discernimento é divino e, não, humano. Com efeito, seria bom demais para a concupiscência humana se assim o fosse, de modo que, nenhuma falta ou mesmo nenhum pecado nos fosse imputado. Porém, desse ponto de vista, que sentido e que valor teria a própria redenção apresentada por Cristo ao Pai em favor da humanidade? Esse é um drama religioso que nossa consciência nem sempre quer aceitar. Não somos salvadores de nós mesmos. A salvação eterna vem de Deus por meio de seu divino Filho Jesus Cristo. E isso vale para todos, crentes e não crentes, judeus e não judeus, gregos e troianos, em qualquer tempo e lugar. Deus escolheu apenas um “Caminho” pelo qual o homem poderá ser salvo e, não, salvar-se: Jesus Cristo. Hoje, o verniz da vivência cristã parece tão superficial e transparente, quase invisível, que se houver cristianismo de verdade nas terras pagãs do coração do homem moderno, somente Cristo sabe onde ele se encontra. 

 
British Museum

Um mosaico de religiões e culturas se espalhou pelo mundo, envolvendo todas as dimensões que dizem respeito à antropologia e à constituição do ser pessoa, desde o seu aparecimento na terra até os rituais que despedem seu corpo exânime na frieza da própria terra. Nascer, viver e morrer ainda são verbos que compõem a dinâmica existencial de todos os mortais. O simbolismo dessa realidade pode ser diferente de uma cultura para outra, mas o fato é que ninguém escapa da trama fatídica do círculo da vida que um dia se abre e no outro se fecha. Famosos e anônimos, ricos e pobres, pretos e brancos, índios e mulatos, de qualquer gênero ou espécie, o kronos segue, de modo implacável e indiferente, o ritmo solene e cadenciado de todas as despedidas. Pobre vida humana, cujos cacos se espalham pela terra inteira ou em qualquer lugar onde tombar o corpo vencido pela necrose de suas próprias vísceras. Fruto das múltiplas concepções humanas, verdadeiramente vasto e complexo é o universo antropológico que encerra tudo o que se refere às dialéticas de sobrevivência da humanidade na terra, enquanto germe de elaboração e formação das gerações que, passando, se sobrepõem umas às outras. Às vezes, fico imaginando se Deus teria percebido o alcance problemático das confusões de todo tipo que o homem causaria ao projeto inicial da preservação da espécie dentro do contexto geopolítico de organização da própria criação. Foi uma visita rápida que fiz ao Museu Britânico – British Museum – que me despertou para reflexões desse tipo. Tomado de turistas por todos os lados, crianças, jovens, mulheres, homens e anciãos se misturavam no labirinto histórico que acoberta séculos e mais séculos das civilizações na terra. Criado em 1753, com sua excepcional coleções de peças que cobrem a história da cultura humana desde o seu início até o presente, ele contém mais de seis milhões de artefatos, ordenados de pequenos fragmentos arqueológicos a maciços objetos das culturas passadas e contemporâneas. Um acervo imenso, capaz de tirar o fôlego intelectual do turista pela ânsia de sua curiosidade. Todas as civilizações ali se cruzam como patrimônio histórico único das conquistas e das derrotas da humanidade. Naquele espaço multicultural, vida e morte encontram o mesmo abrigo imposto pela condição efêmera de todas as raças. Olhando o passado delas podemos intuir o desfecho de nosso futuro. Mais ou menos como na frase que encontramos em uma igreja de Roma, enfeitada de ossos humanos por todos os lados. Embaixo, numa afirmação cortante e lapidar, a terrível constatação: “Aquilo que vós sois, nós éramos; aquilo que nós somos, vós sereis!”. Fuja dessa, inteligente!


 Sicut transit gloria mundi!
Assim passa a glória desse mundo!