segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O Garoto e a missa Eterna

O Garoto e a missa Eterna
Parecia mais uma pergunta aparentemente ingênua de menino curioso. Mas sua palavra estava prenhe da incerteza que habita todos nós pelo desconhecimento do eterno, do tempo a ser vivido na ânsia do que ainda não se experimentou em plenitude. E lá veio a exposição do raciocínio arguto de quem quer saber algo mais sobre a desconfiança da própria lucidez: “Padre, como é o céu? O que eu irei fazer no céu?” À pergunta inesperada, veio-me a ligeira impressão de que não estaria em condições rápidas de satisfazer ao toque de sua inquietação. E respondi-lhe como me veio à mente: “No céu, você vai fazer a mesma coisa que faz durante a missa, na Igreja!” E a esperteza de sua velocidade intuitiva deixou-me ainda mais confuso: “Ave-maria, pense na chatice de uma missa eterna! Eu não irei suportar!” E ele foi mais provocativo: “Eu penso que nem alguns padres suportam a missa que eles mesmos rezam!” Risadas assomaram-se no horizonte nebuloso de sua colocação. Haveria de ter alguma maneira para desfazer a angústia da situação futura no céu. Foi ele mesmo quem o sugeriu: “Eu espero que, lá em cima, Deus tenha, pelo menos, um vídeo game – disse fazendo o gesto digital de quem brinca – a fim de que eu possa distrair-me durante a missa!”. É isso que dá querer falar de céu para as crianças.
Não poderia deixar passar o expediente de sua colocação sem fazer brotar dela a oportunidade para mais uma reflexão, mais sobre o que vamos fazer na Igreja do que sobre o que iremos fazer no céu. Quanto a esse último tema, vamos adiar para o dia eterno de nosso encontro com Deus no céu, pois, na verdade, não possuímos parâmetros de comparação tão categóricos quanto gostaríamos. Com efeito, o problema se constitui mais grave e distante da argumentação quando tentamos imaginar um céu à maneira de nossa pobre compreensão sobre as coisas da terra. Daí, termos a liberdade para pensar que no céu Deus possa dispor-nos de algum vídeo game, algum jogo interesseiro que possa encantar-nos quando tivermos cansados do próprio Deus, como quando nos aborrecemos da missa chata.
Se alguém não sabe o que vai fazer na Igreja, certamente, terá maiores dificuldades para entender o que poderia fazer no céu. Claro que não se trata, apenas, de uma constatação à toa, sem propósito, sem a consideração devidamente exigida pela seriedade da discussão. Infelizmente, há pessoas que, definitivamente, nunca tiveram nem têm a mínima ideia do que vão fazer na Igreja, começando pela sua disposição exterior e interior. O templo é o lugar da celebração do mistério divino. É o lugar de onde podemos estabelecer o encontro com o invisível. Ali, pode-se falar com Deus e ouvir sua palavra. A sacralidade do ambiente não deveria deixar dúvidas quanto a isso. Mas, diferentemente do modo como nos apresentamos em outros lugares, às vezes, podemos confundir o espaço sagrado do culto com o jardim do quintal de nossa casa, onde podemos ficar mais à vontade. E a gente se apresenta de qualquer jeito, sem os trajes apropriados nem o comportamento adequado à situação celebrativa do momento. Balbúrdia de todo tipo, como fazem quando vão ao cinema. Outro dia li um texto em que o autor dizia que, se nas Igrejas os santos não suportam mais tanto barulho, no cinema estava a mesma coisa. Confusão de todo tipo, celulares ligados, vozerio sufocante e perturbador, algazarra de adolescentes, desrespeito aos direitos do outro, piadas sem graça na expectativa do início do filme e durante a transmissão da película. Na Igreja, ainda há o problema das vestes, ou melhor, da indecência. Há, inclusive, idosos metidos a jovens – com todo respeito pela sua “juventude acumulada” – que se consideram no direito de colocar uma bermuda, um tênis e uma camiseta para entrar na Igreja, como se estivessem indo a uma partida de futebol ou ao lazer da praia. E ai do padre se ele disser alguma coisa. Coitado dele! Será marcado para nunca mais ser visto no mesmo local, senão pela coincidência do reencontro em outra igreja. Com bermudas e tênis não se entra nem em museus ou lugares distintos do governo. Vá, por exemplo, à prefeitura ou ao palácio do Governador falar com alguém! Duvido que entre, quanto mais!
Sem querer que ninguém se ofenda na sua sensibilidade, cada um pegue a carapuça que lhe serve, se lhe serve. Cada um é dono de sua própria consciência. Tudo isso para dizer de atitudes comportamentais que não têm nada a ver com a reta intenção de quem sabe o que vai fazer na Igreja, procurando agir conforme a dignidade do lugar.
Esse é um aspecto interessante. Mas há outro ainda mais contundente e não menos trágico no eixo das celebrações. Trata-se da chatice da missa por conta de alguns celebrantes que não preparam a homilia e dizem o que lhe vem na teia do pensamento, quando não fazem discursos inacabáveis, sem conteúdo, que não terminam nunca. Haja paciência! Isso sem falar da falta de piedade com que celebram a eucaristia, até inventando orações e comentários inoportunos à riqueza própria da celebração eucarística, tão bem apresentada no Missal Romano. Do alheamento do celebrante, de sua distração e da falta de convencimento da vivência de sua própria fé, já contaram a estória do padre e do palhaço que eram irmãos. Enquanto o circo estava cheio de pessoas curiosas, envolvidas na apresentação das atrações, emocionadas com os eventos fortes, e também choravam tocadas pela veracidade dos acontecimentos ali manifestados, a igreja estava sempre vazia, com pessoas desmotivadas, chateadas com a demora das rezas, quase sem sentido. Então, o irmão sacerdote resolveu comentar com o palhaço: “Por que será que as pessoas parecem mais entusiasmadas com o seu circo do que com a Igreja?” E o outro, com toda a simplicidade de seu coração, respondeu-lhe: “É que no circo fazemos os dramas como se fossem verdade e na igreja a celebração é feita como se fosse mentira!” Resumindo, o palhaço no circo parece ser mais convincente do que o padre na igreja. Independentemente da veracidade da parábola, a vida dos  fiéis deveria ser mais interessada quanto à riqueza da liturgia, pois ainda faltam muita consciência e formação relacionadas ao que, realmente, sem nenhum condicionamento do nosso querer e de nossa vontade, acontece na celebração da missa.
O céu não é o lugar dos mortos, como, às vezes, pensamos erroneamente. A terra, sim, é o lugar dos mortos. O céu é o “reino dos vivos”. Ora se durante a missa nós temos a oportunidade de nos unir ao Cristo que se imola sobre o altar, numa oferenda perfeita e eterna, podemos dizer que a experiência do céu é-nos antecipada na louvação que, por Ele, com Ele e nele, elevamos ao Pai de toda a eternidade. E por mais que nos esforcemos para atingir o alcance desse mistério, ainda permaneceremos aquém da inexauribilidade de toda a sua grandeza e profundidade. Como diria São Paulo: “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, tudo o que Deus preparou para os que o amam” (1Cor 2,9). E ainda: “Penso, com efeito, que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que deverá revelar-se em nós” (Rm 8,18). A chatice da missa, talvez, refira-se à nossa pouca disposição para com as coisas de Deus. Quem, por exemplo, gosta de entrar no cinema depois do início da sessão? Ou de chegar ao teatro quando a peça já começou? Sejamos honestos com a verdade de nossa consciência! Por desconhecermos a sublimidade do que ocorre no mistério da liturgia da missa, julgamos que tanto faz se chegarmos mais cedo ou mais tarde, a qualquer momento, e ainda nos dispensamos de ir embora antes da benção final. Assim, adentramos e saímos distraídos do mistério que não nos invade pela distância de nosso fastio teológico e doutrinal do conteúdo que poderia satisfazer mais a saciedade de nossas buscas interiores, espirituais.
Ainda bem que nossas comparações não atingem o grau de plenitude da realidade do céu, onde, com certeza, estaremos absorvidos, concentrados, totalmente atraídos por Aquele que é a Beleza Suprema por excelência, e para o qual não nos cansaremos, jamais, de olhar pelo fascínio de sua própria grandeza e ofuscante eternidade: Deus por Si mesmo e em Si mesmo.  


domingo, 2 de setembro de 2012

Com o Cardeal Carlo Maria Martini em Jerusalém!

Com o Cardeal Carlo Maria Martini em Jerusalém 

 

“O cardeal italiano e ex-arcebispo de Milão, Carlo Maria Martini, uma das grandes figuras da Igreja católica e destaque da ala progressista, morreu nesta sexta-feira (31/8/2012), aos 85 anos, informou o arcebispo de Milão, Ângelo Scola”. Eis o breve discurso que anunciou o desaparecimento do Cardeal que eu tive a alegria de conhecê-lo, quando de minha estada em Jerusalém, lá, pelos tempos idos de 2005. Na, ocasião, éramos um grupo de estudiosos da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, que aprofundávamos o conhecimento da Sagrada Escritura, palmilhando a terra de Cristo e visitando os lugares santos da Jerusalém antiga. Coincidiu que, naquele momento, o Cardeal Carlo Martini, Arcebispo Emérito da Arquidiocese de Milão, morava na Cidade Santa, precisamente, no Instituto Bíblico de Jerusalém onde me hospedei. 

Aconteceu que, um dia, à noite, depois do jantar, tivemos um frutuoso encontro com o Cardeal Carlo Maria Martini. Estando no Instituto Bíblico de Jerusalém, fomos vizinhos de quarto. Era um homem de um raciocínio límpido e transparente, como podemos constatar, também, através da leitura de seus livros. Muito simples no seu modo de se apresentar, permanecia em Jerusalém, onde vivia, mais ou menos oito meses do ano, fazendo o papel de um intercessor pela paz na Jerusalém de hoje. Era ele mesmo quem se definia como “a sentinela de oração nos muros da Cidade de Sião”.

Contou-nos um pouco de sua experiência pastoral à frente da Arquidiocese de Milão e partilhou os seus projetos de evangelização naquele instante. Quanto à situação de arcebispo emérito, respondendo à minha pergunta, disse que não sofreu muito da reclamação que ouvia outros eméritos dizerem. Pelo contrário, não se sentia ocioso e continuava trabalhando como se não houvesse uma ruptura entre o ser e o não ser. Além de se colocar como “intercessor”, também, recebia grupos de peregrinos de Milão, quando iam em peregrinação pela Terra Santa. Sendo um estudioso e exegeta, havia retomado o seu trabalho de aprofundamento sobre a Sagrada Escritura, de modo especial, investigando o “Codex Vaticanus”, que teve a imensa satisfação de apresentar-nos, por ser um dos documentos mais antigos e completos que existem, do final do século IV. 

Diante da complexidade atual em que vivem Jerusalém e a Palestina, ele preferia não tomar partido, pelo que julgava ser uma questão muito simples: cada uma das partes, em suas motivações e razões, tinha razão. O problema da paz em Israel, segundo ele, só teria solução quando as pessoas, feridas e machucadas, profundamente marcadas por tantos males da estratificação histórico-sociológico-cultural, abrirem-se à sensibilidade do outro que, por sua vez, também influenciado pelo mesmo vulcão de sentimentos de vingança, raiva, ódio, intolerância e etc., deve abrir-se à mesma sensibilidade e ao diálogo da paz, que não se faz sem renúncia nem a capacidade de acolhimento do outro. Infelizmente, os dramas vividos pelos habitantes da terra de Cristo, a Palestina, ainda são um desconforto, quase insuperável, de desconfiança pela invasão de problemas que nascem da história e se estendem pelos dias atuais. Tão confuso é o cenário, que qualquer palpite de esclarecimento poderia incorrer na incerteza de nossas próprias convicções. Foi, pois, dentro do horizonte desse raciocínio, que lhe respondi quando ele me perguntou, num rápido passeio noturno pelo pátio do Instituto Bíblico, qual seria a minha primeira impressão sobre Jerusalém: “Penso que a Jerusalém sonhada e buscada no sonho de minha fantasia é muito mais bela do que aquela que eu contemplo aqui com os olhos embaçados de tanta confusão”. Ao que ele despejou seu comentário ligeiro e lúcido: “Começamos a entender alguma coisa quando entendemos que não entendemos nada”. Nesse contexto, fizeram até uma brincadeira quanto às expectativas de quem passa algum tempo na Cidade Santa: “Se você passar um dia, pode escrever um livro, um mês, um artigo, um ano, e você não tem vontade de escrever mais nada”, tal é a confusão de ideias e concepções desencontradas no vislumbre da história passada e presente que acoberta a noite incompreensível da terra de Cristo, em razão das turbulências crônicas vividas pela sua gente. 

Pelo que me disseram em Roma, ele possuía uma equipe que sempre o acompanhava em seus pronunciamentos e palestras sobre temas bíblicos, de modo que, depois, confeccionava os seus livros e levava para sua aprovação. Nem mesmo ele tinha consciência do título de todos os seus livros. No Pontifício Colégio Pio Brasileiro, onde ele esteve para uma conferência, no final, levei-lhe um opúsculo seu para autógrafo. Ele, sorridente, perguntou-me: “Esse livro também é meu?”. Realmente, inúmeras são as suas publicações, geralmente, na área de sua especialização, Sagrada Escritura. Sim, pudemos beber da fonte cristalina de seu pensamento cristão, em profunda sintonia com seu desejo de dialogar com todos, inclusive, com os não crentes. De fato, foi justamente nessa direção que ele fundou, em Milão, quando estava à frente da Arquidiocese, a “Cátedra dos não crentes”. Considerado pelos críticos polêmico e controverso em relação a temas que poderiam ser revistos pela Igreja Católica, nunca deixou de expressar suas ideias com a lucidez de suas convicções francas e abertas. Também era tido como um dos dez cardeais mais papáveis da chamada “ala progressista” da Igreja, e talvez tenha sido o mais influente dentre eles. 

Na singeleza de suas ideias, deixou seu legado espiritual e de renovação do pensamento cristão em muitos livros escritos. Assim é a História da Igreja de Cristo da qual temos a alegria e o privilégio de fazer parte sem, por isso, desmerecer a parcela de contribuição de cada um que, com sinceridade de coração, abre-se às moções do Espírito Santo e deixa-se guiar por ele para a edificação do Corpo Místico de Cristo, que é sua própria Igreja. Descanse na paz do Senhor, fiel soldado de Cristo! Descanse em paz, Carlo Maria Martini!
 

 Descanse na paz de seu Senhor!