domingo, 2 de setembro de 2012

Com o Cardeal Carlo Maria Martini em Jerusalém!

Com o Cardeal Carlo Maria Martini em Jerusalém 

 

“O cardeal italiano e ex-arcebispo de Milão, Carlo Maria Martini, uma das grandes figuras da Igreja católica e destaque da ala progressista, morreu nesta sexta-feira (31/8/2012), aos 85 anos, informou o arcebispo de Milão, Ângelo Scola”. Eis o breve discurso que anunciou o desaparecimento do Cardeal que eu tive a alegria de conhecê-lo, quando de minha estada em Jerusalém, lá, pelos tempos idos de 2005. Na, ocasião, éramos um grupo de estudiosos da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, que aprofundávamos o conhecimento da Sagrada Escritura, palmilhando a terra de Cristo e visitando os lugares santos da Jerusalém antiga. Coincidiu que, naquele momento, o Cardeal Carlo Martini, Arcebispo Emérito da Arquidiocese de Milão, morava na Cidade Santa, precisamente, no Instituto Bíblico de Jerusalém onde me hospedei. 

Aconteceu que, um dia, à noite, depois do jantar, tivemos um frutuoso encontro com o Cardeal Carlo Maria Martini. Estando no Instituto Bíblico de Jerusalém, fomos vizinhos de quarto. Era um homem de um raciocínio límpido e transparente, como podemos constatar, também, através da leitura de seus livros. Muito simples no seu modo de se apresentar, permanecia em Jerusalém, onde vivia, mais ou menos oito meses do ano, fazendo o papel de um intercessor pela paz na Jerusalém de hoje. Era ele mesmo quem se definia como “a sentinela de oração nos muros da Cidade de Sião”.

Contou-nos um pouco de sua experiência pastoral à frente da Arquidiocese de Milão e partilhou os seus projetos de evangelização naquele instante. Quanto à situação de arcebispo emérito, respondendo à minha pergunta, disse que não sofreu muito da reclamação que ouvia outros eméritos dizerem. Pelo contrário, não se sentia ocioso e continuava trabalhando como se não houvesse uma ruptura entre o ser e o não ser. Além de se colocar como “intercessor”, também, recebia grupos de peregrinos de Milão, quando iam em peregrinação pela Terra Santa. Sendo um estudioso e exegeta, havia retomado o seu trabalho de aprofundamento sobre a Sagrada Escritura, de modo especial, investigando o “Codex Vaticanus”, que teve a imensa satisfação de apresentar-nos, por ser um dos documentos mais antigos e completos que existem, do final do século IV. 

Diante da complexidade atual em que vivem Jerusalém e a Palestina, ele preferia não tomar partido, pelo que julgava ser uma questão muito simples: cada uma das partes, em suas motivações e razões, tinha razão. O problema da paz em Israel, segundo ele, só teria solução quando as pessoas, feridas e machucadas, profundamente marcadas por tantos males da estratificação histórico-sociológico-cultural, abrirem-se à sensibilidade do outro que, por sua vez, também influenciado pelo mesmo vulcão de sentimentos de vingança, raiva, ódio, intolerância e etc., deve abrir-se à mesma sensibilidade e ao diálogo da paz, que não se faz sem renúncia nem a capacidade de acolhimento do outro. Infelizmente, os dramas vividos pelos habitantes da terra de Cristo, a Palestina, ainda são um desconforto, quase insuperável, de desconfiança pela invasão de problemas que nascem da história e se estendem pelos dias atuais. Tão confuso é o cenário, que qualquer palpite de esclarecimento poderia incorrer na incerteza de nossas próprias convicções. Foi, pois, dentro do horizonte desse raciocínio, que lhe respondi quando ele me perguntou, num rápido passeio noturno pelo pátio do Instituto Bíblico, qual seria a minha primeira impressão sobre Jerusalém: “Penso que a Jerusalém sonhada e buscada no sonho de minha fantasia é muito mais bela do que aquela que eu contemplo aqui com os olhos embaçados de tanta confusão”. Ao que ele despejou seu comentário ligeiro e lúcido: “Começamos a entender alguma coisa quando entendemos que não entendemos nada”. Nesse contexto, fizeram até uma brincadeira quanto às expectativas de quem passa algum tempo na Cidade Santa: “Se você passar um dia, pode escrever um livro, um mês, um artigo, um ano, e você não tem vontade de escrever mais nada”, tal é a confusão de ideias e concepções desencontradas no vislumbre da história passada e presente que acoberta a noite incompreensível da terra de Cristo, em razão das turbulências crônicas vividas pela sua gente. 

Pelo que me disseram em Roma, ele possuía uma equipe que sempre o acompanhava em seus pronunciamentos e palestras sobre temas bíblicos, de modo que, depois, confeccionava os seus livros e levava para sua aprovação. Nem mesmo ele tinha consciência do título de todos os seus livros. No Pontifício Colégio Pio Brasileiro, onde ele esteve para uma conferência, no final, levei-lhe um opúsculo seu para autógrafo. Ele, sorridente, perguntou-me: “Esse livro também é meu?”. Realmente, inúmeras são as suas publicações, geralmente, na área de sua especialização, Sagrada Escritura. Sim, pudemos beber da fonte cristalina de seu pensamento cristão, em profunda sintonia com seu desejo de dialogar com todos, inclusive, com os não crentes. De fato, foi justamente nessa direção que ele fundou, em Milão, quando estava à frente da Arquidiocese, a “Cátedra dos não crentes”. Considerado pelos críticos polêmico e controverso em relação a temas que poderiam ser revistos pela Igreja Católica, nunca deixou de expressar suas ideias com a lucidez de suas convicções francas e abertas. Também era tido como um dos dez cardeais mais papáveis da chamada “ala progressista” da Igreja, e talvez tenha sido o mais influente dentre eles. 

Na singeleza de suas ideias, deixou seu legado espiritual e de renovação do pensamento cristão em muitos livros escritos. Assim é a História da Igreja de Cristo da qual temos a alegria e o privilégio de fazer parte sem, por isso, desmerecer a parcela de contribuição de cada um que, com sinceridade de coração, abre-se às moções do Espírito Santo e deixa-se guiar por ele para a edificação do Corpo Místico de Cristo, que é sua própria Igreja. Descanse na paz do Senhor, fiel soldado de Cristo! Descanse em paz, Carlo Maria Martini!
 

 Descanse na paz de seu Senhor!