terça-feira, 7 de maio de 2013

Abel dos Abéis: A fragilidade da vida humana


Abel dos Abéis: A fragilidade da vida humana 

 



Duvido que o leitor não se surpreenda e fique intrigado com um título deste: “Abel dos abéis”. Mas é isso mesmo que me ronda a mente para falar da efemeridade da vida e de tudo aquilo que ela comporta na transitoriedade inexorável da consumação de tudo que o tempo toca e corrói, implacavelmente. A expressão é conhecida por todos os meus leitores numa tradução mais incompreensível ainda: “Vaidade das vaidades...” Minha tradução é baseada no texto original hebraico da Bíblia stutgartênsia, o texto sagrado dos judeus. Trata-se do início de um livro da Bíblia, o Coélet ou Eclesiastes. Eis as “Palavras de Coélet, filho de Davi, rei de Jerusalém. Vaidade das vaidades – diz o Coélet – vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol. Uma geração vai, uma geração vem, e a terra sempre permanece. O sol se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar ao seu lugar e é lá que ele se levanta. O vento sopra em direção ao sul, gira para o norte, e girando e girando vai o vento em suas voltas” (Ecl 1,1-6). 


No Antigo Testamento, o vocábulo Abel como nome próprio aprece nos albores da Criação divina. Ele é o irmão de Caim que o assassina no campo por inveja dos bons “primogênitos do rebanho”, que ele oferece a Deus, enquanto seu irmão, Caim, apresenta o fruto das primícias de sua plantação. Deus se agradou da oferta de Abel em detrimento da de Caim que, “muito irritado”, matou seu irmão (Gn 4,1-8). Segundo uma tradição judaica, Abel viveu pouco tempo, de modo que, logo ao nascer, Eva lhe dera esse nome, porquanto ele teria nascido somente para morrer. Assim, sua morte não foi vista como um evento totalmente inesperado, sobretudo, pelo fato de que Eva sonhara com o sangue de Abel escorrendo da boca de Caim, que o bebia avidamente, enquanto o seu irmão suplicava que não o tomasse todo. Por conseguinte, em virtude de sua morte ou de sua breve vida, é que o nome de Abel traduz o que na língua portuguesa parece muito coerente com o significado original de seu conteúdo. De fato, uma das acepções da língua de Camões também nos indica a preciosidade do sentido do termo bíblico. Por exemplo, a expressão “vaidade”, na ligeireza de nossas traduções, está relacionada com a “qualidade do que é vão, ilusório, instável ou pouco duradouro” (Dicionário Aurélio). Por sua vez, qualquer dicionário decente de hebraico bíblico pode ampliar ainda mais a conotação etimológica do termo Abel, que, de alguma forma, retrata a brutal e irrompida fragilidade humana. Conta-se que, quando Deus quis pedir explicações a Caim pela morte de seu irmão, ele argumentou, justificando-se que não sabia que atirando muitas pedras contra o irmão, ele morreria, porque nunca havia visto alguém morto. 


Na verdade, o texto hebraico apresenta o termo “hevel”, vocábulo “segolado”, isto é, com dois “e”, que na forma inicial do livro de Coélet, assume um “hatef patah” – que seria a semivogal “a”. Trata-se de um substantivo masculino singular construto, que significa “sopro”, “respiro”, “vento”, de modo que, metaforicamente, assumiu o significado de “vaidade”, de tudo aquilo que se perde disperso no ar pela sua característica evanescente. É o mesmo vocábulo que encontramos em Gn 4,2, quando Abel é apresentado como o segundo filho de Adão e Eva. Quanto à expressão bíblia do início do livro do Eclesiastes, Alonso Schökel, que também compôs seu dicionário de hebraico bíblico, tradu-la por “sopro de sopros, sopro ao quadrado, vaidade de vaidades, pura inconsistência, vazio total, pura ilusão”. É um retrato real da quimera da vida que se despede do tempo na celeridade voraz e incontrolável do kronos. Por isso que a vida passa com o tempo e se acaba com ele. De fato, a mitologia grega expressa de maneira coerente e assustadora essa realidade escorregadia e vulnerável da existência humana, zombando, assim, de qualquer esforço de progresso material em busca de prestígio e aplausos mundanos. A futilidade aparente dos dias hodiernos não engana o salto precipitado no esconderijo do nada pela imensidão do vazio. Tudo que o tempo toca se transforma em pó. “Pois [lembra-te de que] tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3,19). Uma recordação não muito aprazível ao coração humano feito com sede de eternidade. 


Eis, pois, outra palavra instigante no contexto da literatura bíblico-hebraica: “Pó”! Eis por que a consciência de finitude do homem arrogante, e tomado de suposta autossuficiência, deveria levá-lo a bendizer o seu Criador, ao contrário de vilipendiá-Lo com indiferença, cinismo e deboche. Com efeito, “o homem, no corpo físico, foi formado a partir do pó, e ao pó o seu corpo físico retorna (Gn 3,19; Ecl 3,20; 12,7; Jó 4,19; 8,19; 10,9; 34,15; Sl 104,29). Provavelmente, em virtude desse emprego, às vezes, ‘pó’ signifique apenas sepultura (Jó 7,21; 17,16; 40,13; Sl 22,29 [30]; Is 26,19). [...] O fato de que o homem procede do pó da terra é um lembrete da soberania de Deus em seus atos criadores e da insignificância do homem sem a bondade de Deus intervir com o ‘sopro da vida’. O homem, na condição da obra de artífice, deve louvar e obedecer ao Oleiro que o formou a partir do barro [...]. O homem-pó tornou-se homem-vivente por meio da graça divina; nisso reside sua humildade e sua dignidade” (Dicionário Internacional de Teologia do AT). Ó homem, pobre criatura mortal, arvorada no pedestal de sua insubordinada capacidade de submeter-se ao seu próprio Criador! Somente um é o dono de tudo. Somente um é o Senhor do tempo e da História: Deus, o Criador de tudo! Sem ele, todo o resto é poeira que o vento carrega e dispersa; é fumaça que se dissolve e se perde no ar; é sopro rarefeito, pouco denso, que se dissipa na instabilidade volúvel do porvir. Tudo isso torna mais compreensível a orientação da “vaidade das vaidades, [vaidade de] tudo [que] é vaidade” (Ecl 1,2). Com efeito, a vida é breve demais para tanta arrogância e ar de superioridade em relação aos nossos irmãos. Não é São Paulo quem nos orienta a considerarmos os outros acima de nossa própria estima e autorreverência? Sim: “Cada um de nós procure agradar ao próximo, em vista do bem, para edificar. Pois também Cristo não buscou sua própria satisfação, mas, conforme está escroto: Os insultos dos que te injuriaram caíram sobre mim” (Rm 15,2-3); “Vede que ninguém retribua o mal com o mal; procurai sempre o bem uns dos outros e de todos” (1Ts 5,15); “Assim como eu mesmo me esforço por agradar a todos em todas as coisas, não procurando os meus interesses pessoais, mas os do maior número, a fim de que sejam salvos” (1Cor 10,33). Na verdade, as preocupações de São Paulo em relação aos irmãos vão além do meramente pessoal. Ele quer que todos estejam, não somente acima do bem e do mal, mas que sejam salvos em Cristo. Todavia, o horizonte de nossa compreensão ainda permanece ao nível dos fatos mais rasteiros, isto é, mais coligados ao fio terra das percepções humanas. 

 


É a pequenez do homem que limita o voo transcendente de suas atribuições divinas. Voltado para as coisas da terra que o ameaçam mais do que o protegem, ele continua prisioneiro da visão míope de si próprio. Daí as dificuldades do acesso livre às alturas. Referindo-se à trágica página do livro do Gêneses, que abre o destino da humanidade à violência fratricida, o então Papa João Paulo II recordava o fato de ela ser retranscrita cada dia de novo, sem parar e com degradante repetição, no livro da história dos povos. Trata-se, pois, de uma triste e inextricável constatação. E, embora o texto sagrado não manifeste a razão pela qual Deus prefere a oferta de Abel, o diálogo com Caim não se fecha diante das portas de sua maldade. Pelo contrário, o discurso divino admoesta-o, indicando-lhe o caminho de sua liberdade diante do mal, pois, em absoluto, o homem não está predestinado ao mal. E mesmo que ele já esteja contaminado pelo poder do pecado, que cochila à porta de seu coração, espreitando sua presa, como aconteceu a Adão, Caim permanece livre diante do pecado. Ele pode e deve dominá-lo com todas as suas forças. No pensamento do Papa João Paulo II, como no primeiro fratricídio, em cada homicídio aparece violada a parentela “espiritual” que aproxima os homens numa única grande família, sendo todos participantes do mesmo bem fundamental, isto é, da igual dignidade pessoal. E o Santo Padre vai mais longe: não poucas vezes, vem violada também a parentela “da carne e do sangue”, como, por exemplo, quando as ameaças à vida se desenvolvem no relacionamento entre pais e filhos, como acontece com o aborto ou quando, no mais vasto contexto familiar ou parental, vem favorecida ou proporcionada a eutanásia. E ele conclui afirmando que a morte do irmão, desde os albores da história, é o triste testemunho de como o mal progride com rapidez impressionante: à revolta do homem contra Deus no paraíso terrestre, acompanha-se a luta mortal do homem contra o homem. Dados os fatos de assassinato e morte com que nos deparamos todos os dias no cenário da dita civilização humana, pouca coisa ou quase nada parede estar sendo feito para reverter o avanço da espiral maligna que devora os seres humanos do convívio social. E, então, somos invadidos pela mesma indiferença e frieza com que Caim tentou desculpar-se diante de Deus, quando perguntado pelo seu próprio irmão: ‘“Onde está o teu irmão Abel. Ele respondeu: ‘Não sei. Acaso sou guarda de meu irmão?’” (Gn 4,9). 


Na compreensão do Papa, o manto da indiferença estende-se, sobretudo, acima dos mais vulneráveis e frágeis da sociedade, tais como são as crianças, os idosos, os doentes, os imigrantes, atingindo, também, as relações entre os povos, de modo enfático, quando estão em jogo direitos e valores fundamentais como a subsistência, a liberdade e a paz. Com certeza, quanto mais fracos e frágeis forem os laços da proximidade entre os homens, mais fragilizados e cindidos também estarão os suportes que acolhem a todos no tecido da fraternidade. Mais ou menos como no conhecido efeito dominó de proporções gigantescas no estrago da solidariedade e da capacidade de partilha de todos os bens sociais. Enquanto mais longe dos mais pertos, mais longe dos mais distantes. E, nesse sentido, será muito difícil a concepção serena de que também nós não estejamos envolvidos até a medula de nosso ser na complexidade da violência que se dissemina entre todos os homens. Por conseguinte, sem as devidas barreiras de contenção patrocinadas pelo interesse de toda a sociedade, o abismo amplia-se sempre mais arrastando a todos para o precipício da banalização de sua dignidade e de seus direitos mais sagrados.