segunda-feira, 2 de abril de 2012

O Filho do Homem elevado como a serpente no deserto

O FILHO DO HOMEM ELEVADO COMO A SERPENTE NO DESERTO 

                                         

A conversa que Jesus teve com Nicodemos, é, no mínimo, intrigante. Como sabemos pela Sagrada Escritura, Nicodemos era um daqueles fariseus tementes a Deus, que tinham ciência do fato de sua relatividade frente aos projetos divinos. No entanto, de modo geral, Jesus sempre teve palavras duras e virulentas contra o pecado do egoísmo, do fechamento e do orgulho de alguns fariseus diante de Deus. Todavia, nem todos eram assim, obtusos e renitentes, quanto ao projeto divino manifestado em Jesus.

A crítica feroz dos fariseus por causa do comportamento de Jesus, o “Filho do Homem”, cujo título ele atribuía a si mesmo, deixa reverberar, nas entrelinhas de sua postura, um acinte grave e, até, leviano, de modo a suscitar a contundente reação de Jesus. A lista seria interminável das censuras deflagradas por Cristo aos seus inimigos de plantão, caracterizados por esse grupo religioso, que busca elogios e aplausos humanos sem levar em consideração a radical exigência interior de sua fé. Lendo o pensamento de todos, Jesus não se furta ao impropério legítimo de sua consciência de Pastor, que cuida de suas ovelhas, mas não se permite ser debochado na sua dignidade de Filho de Deus. Então, quem são os “fariseus” tão presentes em derredor de Cristo nos episódios do Novo Testamento, mal intencionados e dispostos a apontar o dedo como lança em riste para qualquer suposto deslize de Jesus? A discussão poderia estender-se por dialéticas infrutíferas e sem objetivo nos devaneios do raciocínio. Vamos, então, à brevidade do objetivo: “(Hebr. perushim, ‘os separados’). No dealbar da era cristã, os Judeus repartiam-se em vários grupos político-religiosos: os Saduceus, os Essênios de Qumran [uma localidade situada ao norte ocidental do mar Morto], os Zelotas e os Fariseus (os mais numerosos). Organizados em pequenas fraternidades, os Fariseus congregam um grande número de escribas e de doutores da Lei. Põem a tônica no estudo da Tora e na estrita observância legal, e distinguem-se dos Saduceus pelo respeito à ‘Tora oral’ ao passo que estes apenas se atêm ao que está escrito ”. Ou seja, os Fariseus eram tão somente um dos grupos que floresceram na época de Cristo e que desapareceram depois, já com a destruição do segundo Templo, na década de setenta da era Cristã. Daí para frente não temos mais notícias deles.

Eis, pois alguns exemplos das censuras e maldições de Cristo contra o grupo dos escribas e fariseus: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque bloqueais o Reino dos Céus diante dos homens! Pois vós mesmos não entrais, nem deixais entrar os que querem. Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito, mas, quando o conseguis conquistá-lo, vós o tornais duas vezes mais dignos da geena do que vós [a “geena” era um dos vales de Jerusalém onde se queimava o lixo da cidade. Nos lábios de Jesus, a expressão refere-se a uma metáfora para o inferno]. [...] Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Importava praticar essas coisas, mas sem omitir aquelas. Condutores cegos que coais o mosquito e engolis o camelo. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois semelhantes a sepulcros caiados, que por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda podridão. Assim também vós: por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade” (Mt 23,13-32). Como podemos perceber, são palavras duríssimas de Jesus. No entanto, não podemos nos esquecer de que nem todos os fariseus eram assim, tão fingidos e sedentos dos aplausos humanos. Também havia fariseus tementes a Deus e fiéis observantes de sua lei. Entres estes, podemos citar o próprio Nicodemos, que diante de algumas questões acerca de Jesus se perguntava se a lei condenava alguém antes de ouvi-lo (Jo 7,50); José de Arimateia, que, sendo um homem temente a Deus e tendo se tornado discípulo de Jesus, fora pedir a Pilatos o corpo exânime de Cristo e o colocou no seu próprio túmulo talhado na rocha (Mt 27,57-61); Gamaliel, doutor da lei, respeitado por todo o povo (At 5,34), e também o mesmo São Paulo, que foi educado aos pés Gamaliel – em Jerusalém – na observância exata da lei de nossos pais, cheio de zelo por Deus (At 22,3).

O fato é que São João é o único evangelista a narrar o diálogo de Jesus com Nicodemos [colloquium cum Nicodemo (Jo 3,1-21)]. Tal constatação é feita pelo estudo de comparação da sinopse grega dos evangelhos. É uma evidência que salta aos olhos. O texto de São João começa assim: “Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um notável entre os judeus. À noite, ele veio encontrar Jesus e lhe disse: ‘Rabi, sabemos que vens da parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se não estiver com ele’” (Jo 3,1-2). Lá pelo meio da conversa, eis que Jesus se apressa em dizer-lhe da necessidade de “nascer de novo” (Jo 3,3), a fim de que se possa ver o “Reino de Deus”. Questionando a situação, Nicodemos interroga: “Como pode um homem nascer, sendo já velho?” (Jo 3,4). Um detalhe que não pode ser desconsiderado no contexto do relato é a situação temporal em que Nicodemos vai falar com Jesus: “à noite”. Na concepção dos exegetas, como Angélico Poppi, a “noite” simboliza as trevas do judaísmo oficial, que se opunha, abertamente, à luz emanada do Messias. Mas, também há outras compreensões para a abordagem realizada “à noite”, pois era, sobretudo, o momento mais oportuno em que os rabinos importantes de Israel se reuniam para estudar a Tora. Jesus é a Tora por excelência de quem Nicodemos se aproxima para se deter, de modo mais direto e livre, com ele. A noite também simboliza o poder das trevas , da traição, da covardia, do abandono, como irá acontecer mais tarde com Jesus, quando todos os seus amigos mais próximos deixá-lo-ão sozinho diante do Sinédrio. Santo Agostinho afirmava que a noite é a mãe do pecado. De fato, por baixo do véu de sua escuridão, os homens tentam esconder-se para velar, sob sete chaves, o segredo de todos os seus delitos, crimes e pecados.

A experiência da Quaresma, que culmina na Semana Santa que celebramos, poderia muito bem reconduzir o pensamento de nossa piedade para olhar com mais ternura e gratidão o Filho do Homem pendente da Cruz “como a serpente elevada no deserto”. Na verdade, o simbolismo profético enche de luminosidade e esperança a vida de todos os cristãos. Aparentemente banal, a comparação de Cristo revela-nos a grandeza de seu amor incondicional pela humanidade pecadora. Se o pecado nos morde e nos fere, mortalmente, a graça do Crucificado salva-nos da malignidade de suas consequências, oferecendo-nos a verdadeira vida. Por isso que não podemos nos colocar fora das censuras de Cristo aos fariseus, pois elas também devem fazer refletir nosso coração fechado ao seu amor e fazer calarem nossas presunções orgulhosas e detestáveis à visão de Cristo, que perscruta todas as consciências adormecidas na letargia do pecado. É do alto da cruz que ele vence o nosso pecado. É, pois, ali, que tem início a revelação perturbadora do plano salvífico do Pai, por meio do dom de seu Filho Unigênito, elevado na cruz pela salvação do mundo. De fato, a serpente elevada por Moisés na ponta de uma haste (Nm 21,8-9), era uma prefiguração profética da crucifixão do Filho do Homem. Quem olhava para a serpente de bronze era curado da mordida letal das víboras. Agora, quem olha com o olho da fé para o Crucificado, possuirá a vida eterna . Se antes era recuperada a saúde física, agora, recupera-se a saúde espiritual, cuja mais alta dignidade alcança e atinge a própria vida eterna, a vida plena, em abundância.

Que durante esses dias santos, contemplando o Crucificado, possamos correr “com perseverança para ao certame que nos é proposto, com os olhos fixos naquele que é o iniciador e consumador da nossa fé, Jesus, que, em vez da alegria que lhe foi proposta, sofreu a cruz, desprezando a vergonha, e se assentou à direita do trono de Deus” (Hb 12,1-2). Santa semana santa para todos! E que o Cristo ressuscitado nos eleve consigo à intimidade com Deus nos céus onde se encontra a plenitude de nossa humanidade transfigurada pelo resplendor do Ressuscitado.