quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Desfazendo o Tempo!


Desfazendo o Tempo 


Sábado, dia primeiro de setembro, como diria Rubem Alves, desfarei quarenta e dois anos. Quem vive desfaz o tempo, até que o próprio tempo desfaça-o, de uma vez por todas. De fato, nascemos, crescemos e caminhamos em direção à morte. Três estágios da existência que não são coincidentes, mas consequentes. Cada um desses momentos chega depois do outro. 

Nasci, lá, no interior do município de Carira, em 1970. Orgulho-me disso. A certidão de nascimento registrou-me no dia primeiro do mês de setembro, uma terça-feira. Minha mãe diz que apareci no dia dez, que teria sido uma quinta-feira, retrocedendo no calendário permanente. O povoado Carreiro, do município de Carira, recebia no aconchego de uma casa pobre, simples e humilde, a presença de uma criança, sinal de esperança e manifestação de alegria no lar de Aristides Rodrigues dos Santos – conhecido por “Gileno Pedreiro” – e Helena Barbosa dos Santos. Meus pais acolhiam mais um filho. Minha mãe estava sozinha, e, depois, ficamos nós dois. A parteira chegou atrasada. Na roça, vivi até os sete anos de idade. Caminhei por estradas cheias de poeira, no verão, e, de lama, no inverno. Acompanhei o desafio da vida dura, quando meus pais já tinham cinco filhos vivos, pois três já haviam sido defeitos no tempo. Iniciei o contato com as letras. A educação começou cedo, antes dos seis anos de idade. Aos sete, já morávamos na cidade onde crescíamos cercado dos cuidados paternos e maternos. 

O horizonte de uma vida humana se descortinava no alvorecer de mais uma obra-prima do Pai-Criador. Na qualidade de crente e cristão, e, sobretudo, de sacerdote, não posso descartar a vontade divina sobre toda a minha existência. Somente Deus poderia permitir-me chegar aonde cheguei e ser quem sou, evidentemente, longe de pensar que tenha tido algum “fascínio” especial que me impulsionasse a pensar na minha “grandeza”, senão no contexto extraordinário da maravilha que é tudo o que Deus faz. Ele, sim, deve ser a motivação pela nossa grandeza, ao contrário do que conceberia o Imperador Nero Cláudio Cesar Germânico, do pedestal de sua suposta autossuficiência e arrogância. Ele que dizia: “Nem mesmo eu estou em condições de resistir ao fascínio da minha grandeza” (Eu, o deus Nero). Essa frase chamativa é a ironia estúpida de quem se via brilhante à sua própria consciência, quando, na verdade, não passava de um demente, de um tolo, quanto às intempéries inelutáveis da brevidade de uma vida, propriamente humana, escorrida na celeridade do tempo como a água furtiva que nasce da sua fonte e se precipita no redemoinho inexorável da efemeridade. 

Desfazendo o tempo, debruço-me sobre os porões de minha consciência para buscar, nos lampejos de reminiscências longínquas, a efervescência de lembranças que me permitam reconstituir a frágil estampa da cronologia que emoldurou a ladeira inolvidável dos anos passados. A vida, por si mesma, rebenta como um milagre florescido no sertão árido e seco, cuja coloração vai dando asas e credibilidade aos embates emergentes da existência. E o contraste verde-escuro das belas paisagens desabrocha dentro da alma como canteiros de esperança, como de esperança deve ser o destino desconhecido de cada novo ser, de cada nova flor vicejante na origem luminosa da nascente de sua aurora, de maneira que, muitos assaltos da nossa alma podem precipitar-nos no esconderijo do que poderíamos chamar “a inconsciência do tempo”. Mas, o que é o tempo? Não sei se, um dia, encontraremos uma resposta satisfatória a essa pergunta. Ao longo dos séculos, muitos se perguntaram sobre o que ele seria, sobre o seu significado e sobre a sua dimensão na realidade concreta da vida dos homens: existe, realmente, o tempo? Para adentramos no santuário do seu mistério, precisamos de tempo, ou melhor, temos necessidade do tempo. 

O que é essa categoria humana, que nos permite viver tantas experiências, tantas possibilidades de realizações na vivência concreta dos fatos, verdadeiros e reais, que constituem o antes e o depois da História dos homens? Na verdade, o depois chega à nossa consciência tendo passado, quase imperceptível, pelo crivo da nossa inconsciência, ou mais categoricamente, pelos escombros de nossa capacidade de consciência, enquanto plenitude da concepção de um fato que, só depois de ter acontecido, pode ser reelaborado na imagem da visibilidade momentânea de nossa fantasia, qual espécie de resgate da sucessão dos anos decorridos. Somos o que somos no tempo, enquanto possibilidade de realização tangível, captada pelo esvair-se dos fatos repentinos que morrem para deixar espaço a outros. Nasci criança, fui menino, adolescente e tornei-me adulto, homem, pois os acontecimentos não cessam senão no pós-limiar intenso e imediato do último suspiro. E é provável que nem sequer tenhamos tempo para dizer, no trepidar emocionante do derradeiro adeus: “Acta est fabulas!” – “A peça acaba de ser apresentada”, ou se quiserem uma tradução mais livre, “o espetáculo acabou” – como dissera Caio Júlio César Otaviano, o Imperador Augusto, ao despedir-se do cenário conturbadamente dramático de sua vida. O tempo passa rápido demais, e as lembranças da vida vão se perdendo no redemoinho voraz do esquecimento. 

Não sem razão, a Bíblia afirma, embora na concepção dos ímpios: “Breve e triste é a nossa vida, o remédio não está no fim do homem, não se conhece quem tenha voltado do Hades. Nós nascemos do acaso e logo passaremos como quem não existiu; fumo é o sopro do nosso nariz, e o pensamento centelha do coração que bate. Extinta ela, o corpo se tornará cinza e o espírito se dispersará como ar no inconsistente. Com o tempo, nosso tempo cairá no esquecimento e ninguém se lembrará de nossas obras; nossa vida passará como uma nuvem – sem traços – se dissipará como a neblina expulsa pelos raios do sol e, por seu calor, abatida. Nossa vida é a passagem de uma sombra, e nosso fim, irreversível; o selo lhe é aposto, não há retorno” (Sb 2,1-5). 

Até que o arco do nosso tempo se feche, definitivamente, fora dos ciclos solares e lunares, dos dias e das noites, o que mais, então, poderá ter-nos acontecido? Não sei! O próprio tempo no-lo dirá...