sábado, 1 de junho de 2013

O Son[h]o da Cruz


O Son[h]o da Cruz


 


Sempre me chamou a atenção a beleza de uma imagem que descansava na parede do apartamento de Dona Valdeci Guerra, no Bairro 13 de Julho, em Aracaju. Não era somente pela novidade da figura que eu contemplava, ali, quando a visitava. Era, sobretudo, pela expressão do cenário encantador que me fascinava. Esteticamente, talvez, não fosse mais bela do que tantas outras representações que encontramos por aí afora. Mas aquela possuía um toque especial pela grandeza da simbologia que parecia envolvê-la de luz no vislumbre da possibilidade de uma oportuna reflexão, como essa que nasce, agora, da contemplação repetitiva do gosto pela arte sacra mais figurativa do que abstrata.

Nunca tive coragem de pedir-lhe o objeto sacrossanto como recordação de sua amizade, embora os comentários, vez por outra, fossem indiscretos sobre o quanto gostava de perceber aquela visão misteriosa que projetava o olhar além do aparentemente perceptível. Um dia, enfim, ela intuiu o interesse que manifestava pela obra, e, então, ofertou-ma de presente. Contente e feliz, levei-a para casa onde posso vê-la, sempre, sem ter de esperar a próxima visita. Sei que meus leitores já estão curiosos, quiçá, tentando adivinhar do que se tratasse. Revelo-lhes, pois, o segredo escondido nas palavras sobreditas: travava-se da figura do menino Jesus dormindo sobre a cruz, com uma expressão tremenda de silêncio e quietude! Sobre o que estaria sonhando aquele menino, que nem sequer crescera e já estava repousando sobre o crudelíssimo instrumento de dor e de morte que o abraçaria na vida adulta? 



Comovente é pensar nas possibilidades dos acontecimentos terríveis, nos pesadelos de suas angústias, na atrocidade cruenta de seus futuros algozes. Estaria sonhando o sonho de Deus ou as dores não merecidas de nossa humanidade ingrata e rebelde diante de seu amor? Estaria ele com problemas tão graves e sérios que o levariam a dormir, cerrando os olhos da indiferença para cair no sono que adormece as dilacerações de nossa interioridade? Estaria ele com medo de enfrentar o drama histórico de sua vida na terra, que iniciara com os percalços da maldade desde sua infância, quando fora obrigado a fugir para não morrer pela fúria dos senhores do mundo, representados em Herodes? Que sonhos tens Tu, ó doce e belo menino, “o mais belo entre os filhos dos homens [?], a graça escorre dos teus lábios, porque Deus te abençoa para sempre!” (Sl 45,3). Estaria ele vendo, no fundo de sua consciência, os bilhões de crianças maltratadas pelos adultos, sem esperança de sobrevivência digna no submundo perverso da intolerância e da agressão física, verbal, sexual, de exploradores caninos? Tantas feridas escondidas no semblante sereno e maravilhoso daquele menino poderiam revelar o dilema da humanidade inteira, indiferente às necessidades dos pequenos, infelizes e sofredores do planeta Terra.

Realmente, as crianças não deveriam chorar a fome, a violência, o desprezo, a brutalidade assassina do aborto, nem o peso escravo o trabalho precoce por causa da sobrevivência material. As crianças não deveriam padecer o frio covarde da impaciência dos adultos pelos sentimentos incompreensíveis de sua pueril e natural incomunicabilidade. As crianças não deveriam ser traídas, na pureza de sua sensibilidade, pela malícia dos corações mal intencionados dos que deveriam protegê-las, defendendo-as das garras dos agressores. Como seria bom se todos nós pudéssemos aprender do ensinamento de Cristo, que disse: “Deixai as criancinhas virem a mim e não as impeçais, porque delas é o Reino de Deus. Em verdade vos digo, aquele que não receber o Reino de Deus como uma criancinha, não entrará nele!” (Lc 18,16-17). A impostação do pensamento de Cristo é uma resposta dura e incisiva quanto ao comportamento dos discípulos, que tentavam impedi-las de se aproximarem de Jesus, que acolhe a todos. E, no caso das “criancinhas”, elas são apresentadas como modelo despretensioso de quem se dispõe a abraçar o Reino trazido por Cristo, na sua Pessoa, pela sua pregação e anúncio da boa nova mandada por Deus. Todavia, quem são, de fato, as “criancinhas” dos lábios de Cristo? O aprofundamento exegético da palavra de Deus, contida na Bíblia Sagrada, aponta para todas as pessoas que, como elas, demonstram “disposição mais idônea para acolher o Reino de Deus”. Com efeito, segundo Angélico Poppi, as crianças não eram levadas muito em consideração por conta de sua incapacidade para compreender e observar a Lei [de Moisés], pois tinham necessidade de tudo e dependiam dos outros. No entanto, Jesus as abraça com amor e ternura, não por sentimentalismo romântico, mas porque vê nelas – como já foi dito – disposição mais idônea para acolher o Reino de Deus. Por isso que, na percepção de nosso autor, daí emerge mais claramente o fato de Cristo propô-las como modelo, não tanto pela inocência ou outras supostas virtudes, mas pela total dependência dos genitores, pela sua receptividade: eles não podem doar nada, mas podem apenas receber. É, pois, assim, com atitudes de verdadeira impotência, que o discípulo deve acolher o Reino de Deus, qual dom gratuito da bondade do Pai celeste. A grandeza da proposta de Jesus, de igual modo, deve levar os discípulos modernos ao reconhecimento humilde de que, depender de Deus, é colocar-se submisso à sua intenção de amor e gratuidade com que ele quer acolher todos os homens, qual crianças atiradas, num intenso ato de fé, no colo aconchegante do pai, que lhe dá segurança e proteção. 

 
 No texto original grego, São Lucas usa o termo neutro “paidíon”, que aparece 52 vezes no Novo Testamento, e significa, justamente, “menino”, “criança”. Na abordagem de A. Oepke, a abrangência de sua compreensão lexical, originalmente, está ligada ao vocábulo “paĩs”, derivada da forma primitiva “paFis”. Sobre vasos, havia a forma “paũs”, oriunda da raiz pōu, pau, pu (pouco, pequeno) [a partir da qual deu origem a outros termos latinos tais como: pauper, paucus, parvus, puer, pusus, pusillus e puella]. Quanto à palavra “paĩs”, geralmente refere-se ao gênero masculino, e quer dizer rapaz. Porém, relacionado à idade, faz alusão a menino, isto é, a um moço entre 7 e 14 anos, mas diferente de quem está abaixo dos 7 anos de idade, que coincide com o termo usado por Cristo [paidíon], e do jovem que se encontra na faixa etária entre 14 e 21 anos, designado, em grego, pela termo “meirákion”. No NT, o vocábulo paĩs, num significado mais abrangente, também quer dizer “filho”, e seu diminutivo é paidíon, destacando um menino abaixo dos 7 anos. De fato, o termo grego também indica a pessoa que possui a inteligência limita para as grandes abstrações. Trata-se, pois, de alguém que, segundo a psicologia moderna, ainda não atingiu o conhecido uso da razão. Já em outra concepção neotestamentária, o termo diz respeito ao modo afetivo com que o pai espiritual dirige-se aos que lhe foram confiados, a exemplo da maneira como Cristo Ressuscitado chama os seus discípulos (Jo 21,5). As crianças de hoje ainda precisam do mesmo trato que Jesus lhes oferece na narrativa do evangelho de São Lucas.  
 

Que o son[h]o do menino Jesus na cruz desperte nossa consciência às urgentes necessidades das crianças que ainda não conhecem o amor de Deus e nunca ouviram falar de Cristo. E são tantas assim no mundo, que não conheceram senão a bestialidade comportamental dos adultos, que lhe instigam ódio e constrangimento físico e moral, quando, não, arrancam-lhe o dom mais precioso que lhe foi concedido, no caso, a própria vida. Que ele desperte nossa sensibilidade ao sorriso límpido das crianças, à felicidade sublime de sua vida e à vulnerável fragilidade de sua dependência. Que as crianças possam encontrar em nós o apoio singular de nossa responsabilidade humana, em todos os estágios de seu transcurso existencial.