terça-feira, 15 de novembro de 2011

Apartai-vos de mim, malditos!!

Apartai-vos de mim, malditos! 



Na solenidade de “Jesus Cristo Rei do universo. Cristo, Senhor dos tempos e dos homens”, o Evangelho apresenta-nos o que acontecerá no final dos tempos, quando, como diz São Paulo, “todas as coisas estiverem submetidas a ele, então, o próprio Filho se submeterá àquele que lhe submeteu todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,28). De fato, Deus está no princípio e no fim de tudo. Ele é o A e o Z, o alfa e o Ômega. A palavra de São Paulo é uma das mais profundas quanto ao fato de que, tudo o que foi submetido a Cristo por Deus, o seu Pai bendito, no tempo escatológico, também ele se submeterá ao Pai. 

No último domingo do Tempo Comum da Liturgia da Igreja, todos os textos apontam para uma realidade futurista, escatológica, de final de cena do projeto criacional divino, mas, esse momento não acontecerá sem a devida incidência nas vicissitudes atuais da história do homem. Muito pelo contrário, o esforço da pregação da Igreja de Cristo é justamente no sentido de que, durante sua permanência na terra, os homens se preparem espiritualmente para o grande confronto final com as realidades de sua própria existência. Sabiamente, a Igreja, preparando-se para mais um novo ano litúrgico, que se inicia com o primeiro domingo do Advento, coloca no topo de suas celebrações litúrgicas Aquele que é o Senhor de tudo e de todos. Com efeito, como reconhece o Concílio Vaticano II, “a Liturgia é o cimo para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte donde emana toda a sua força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se tornaram filhos de Deus pela fé ou pelo batismo, se reúnam em assembleia, louvem a Deus na Igreja, participem no sacrifício e comam a Ceia do Senhor” (Sacrosanctum Concilium, n. 10). É, pois, na liturgia da Igreja que se realiza a plenitude do mistério da presença de Deus e de Cristo no seio da comunidade de fé. Todavia, a fé celebrada na Liturgia da Igreja deve estender-se pela vida afora do cristão, não apenas levando a todos as maravilhas realizadas no culto divino, mas, de igual modo, permitindo que o amor recebido pela ação litúrgica seja manifestado a todos os homens, especialmente, aos pobres e marginalizados por tantas barreiras do separatismo social que macula a sua dignidade. Dar pão a quem tem fome, vestir os nus, dar de beber aos sedentos, acolher os estrangeiros – tal e qual Israel também habitou em um país estrangeiro, no Egito – visitar os presos, entre tantas outras possibilidades de estender a mão ao próximo, tudo isso é exigido por Cristo se quisermos ouvir, diferentemente do “apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos”, o “vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo” (Mt 25,31-46). 
Levando em consideração essa palavra forte de Cristo, muitos santos deixaram-se levar e mover-se por suas motivações interiores mais profundas na direção dos irmãos mais necessitados, marginalizados e colocados de lado pela sociedade gananciosa e opulenta, que olha para os irmãos com indiferença. Testemunhos bonitos e recentes, temos nas Beatas Madre Tereza de Calcutá e a Irmã Dulce dos Pobres. Nelas, o testemunho do amor ao próximo é uma mistura inseparável de coragem e fé. Muitas dificuldades são interpostas no caminho do amor aos pobres, aos portadores de necessidades especiais, sejam eles com obstáculos permanentes ou circunstanciais. Conta-se que, certa vez, em 1982, Madre Tereza quis visitar o Líbano num momento em que se combatia duramente muitos “deficientes” – o conceito mudou tanto a esse respeito, que, para não correr o risco do preconceito, é melhor colocá-lo entre aspas, assim deixamos a interpretação ao leitor – em Beirute. Muitos não estavam de acordo com sua ida, por conta do grave perigo que ela poderia correr. No entanto, aos que a desaconselhava, ela mostrava-lhes uma vela diante da qual havia uma imagem de Nossa Senhora “Rainha da Paz”. E ela afirmava: “Em Beirute, acenderei e rezarei à Nossa Senhora, a fim de que o cessar fogo venha proclamado”. Desse modo, pontualmente, entre os dias 12 e 15 de agosto, festa da Assunção de Nossa Senhora ao céu, as milícias contrapostas declaram uma trégua, de maneira que Madre Tereza pode transportar mais de setenta doentes, todos mulçumanos, a um lugar de recuperação em Beirute. Com certeza, o segredo dos santos é a convicção de que eles não estão sozinhos no seu agir fraterno e missionário. Cristo mesmo os acompanha como confirmação constante de sua promessa: “Eis que eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). 

O fato é que o amor verdadeiro, inspirado na própria caridade de Cristo por todos os homens, inclusive, por aqueles que se consideram autossuficientes e, portando, não necessitados do seu amor, não mede esforços, e se entrega generosamente à aventura e ao desafio da entrega de si mesmo. Sim, mais do que doar coisas, feliz e beato diante de Deus, é aquele que consegue doar-se a sim mesmo sua – sua vida, seu tempo, seus bens mais preciosos, sua generosidade – desgastando-se, no tempo e na história, em favor dos irmãos, pois foi isso o que Cristo fez por mim, por você, caro leitor, e por todos nós. Para Madre Tereza, ajudar os pobres era uma maneira de trazer luz aos que viviam na mais completa escuridão. Outro exemplo salutar e edificante de amor ao próximo, encontramos na Beata irmã Dulce dos Pobres, “o anjo bom da Bahia”. Muito justo o título que lhe deram por ocasião de sua beatificação, visto que nem todo mundo está disposto a fazer o que ela fez, recolhendo tantos irmãos pelas ruas da indigência e da miséria, para dar-lhes acolhimento, carinho, amor, dignidade. Eis, aí, o seu depoimento: “Muita gente acredita que não devemos dar aos pobres a mesma atenção que damos às outras pessoas. Para mim, o pobre, o doente, aquele que sofre, o abandonado, é a imagem de Cristo [...]. Se virmos o pobre com esses olhos, o seu exterior, o estar sujo, cheio de parasitas, com grandes chagas, não nos incomodará, pois na sua pessoa está presente o Cristo sofredor [...]. Cada um de nós não gostaria de ser bem recebido, de ser bem tratado? E o pobre não possui o direito de ser bem acolhido, de receber todas as atenções espirituais e materiais? [...] Fazemos muito por eles? Eu pergunto: é muito o que fazemos por Deus?”. 

Os santos são, assim, perdidos de amor por Deus e pelos irmãos, sem se amedrontar nem se acovardar diante das reações negativas e inesperadas dos inimigos que atravessam na encruzilhada do amor cristão, isto é, vivido por Cristo, porquanto “cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). O efeito contrário dessa verdade de Cristo também tem suas implicações na omissão flagrada e surpreendida na inoperância da vivência cristã. Ou seja, não é somente a pobreza espiritual de nossa humanidade que Cristo assume no seu rebaixamento a cada pessoa humana. Ele também se reveste da pobreza material que leva muitos de nossos irmãos a perderem as condições necessárias à superação de suas dificuldades, sobretudo, no que diz respeito à sua própria dignidade. Nunca na história humana, alguém ousou dizer que estaria nos presos, nos doentes, nos famintos, nos despidos de sua dignidade. Consequentemente, o desprezo aos necessitados, aos pobres, é o retrato vivo do vilipêndio ao mesmo Jesus. Assim, Cristo apresenta-nos uma palavra dura e muito radical: “Apartai-vos de mim, malditos!”. A lógica de Cristo é diferente da lógica humana, por isso precisamos estar mais atentos aos fundamentos do amor a Deus, que se expressa, de modo incisivo e radical, no amor ao próximo. Quem vive sem Deus não poderá nunca olhar o outro como próximo, muito menos como irmão. E esse é o sintoma mais contundente e grave que encontramos na sociedade moderna tão violenta e distante de Deus. 

O Papa Bento XVI tem razão quando, falando da “comunhão”, assevera: “A comunhão tem sempre e inseparavelmente uma conotação vertical e uma horizontal: comunhão com Deus e comunhão com os irmãos e irmãs. Essas duas dimensões encontram-se misteriosamente no dom eucarístico. ‘Onde se destrói a comunhão com Deus, que é comunhão com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo, destrói-se também a raiz e a fonte da comunhão entre nós. E onde a comunhão entre nós não for vivida também na comunhão com Deus-Trindade não é viva nem verdadeira’”. Numa palavra, os pequeninos de Cristo somos todos os homens que devemos amar-nos e acolher-nos reciprocamente, se quisermos participar da plenitude de seu reino nos céus. De fato, o amor fraterno e gratuito é o passaporte para o reino de Cristo no céu. Reflita, pois, com sinceridade, sobre suas atitudes cotidianas de amor em relação aos seus circundantes, e tente ser melhor com eles.