quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Traços da Teologia da luz

Traços da Teologia da Luz



No início do Advento e do novo ano litúrgico da Igreja de Cristo – Ele que é o caminho, a verdade e vida para o encontro definitivo com Deus – gostaria de refletir sobre alguns traços da “teologia da luz”. Na Sagrada Escritura, a concepção da claridade de Deus, que incide sobre a vida terrestre dos homens, é uma constante presença de cuidado e ternura, especialmente, quando os homens se sentem mergulhados nas trevas interiores por conta de sua infidelidade e do seu afastamento de Deus, que é a Luz por excelência. Na verdade, já nos albores da criação, Deus fez a luz, contrastando-a com a escuridão: “Deus disse: ‘haja luz’, e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz das trevas” (Gn 1,3). 

Comentando esse texto do livro do Gênesis, o pensamento de Santo Agostinho é muito complexo, e continua deixando-nos na escuridão da incompreensão de seu longo raciocínio, do qual cito apenas alguns questionamentos: “De que modo Deus disse: ‘Faça-se a luz’? No tempo ou na eternidade do Verbo [que é Cristo]? E se no tempo, certamente, de modo mutável; pois como é possível entender-se que Deus tenha dito isso a não ser por meio de uma criatura, visto que ele é imutável? E se Deus disse por uma criatura: ‘Faça-se a luz’, como a luz seria a primeira criatura se já existia uma criatura por meio da qual Deus disse: ‘Faça-se a luz’? Ou a luz não seria a primeira criatura, visto que já fora dito: ‘No princípio, Deus fez o céu e a terra, assim teria sido possível produzir-se a voz, por meio de uma criatura celeste de modo mutável e no tempo, pela qual Deus disse: ‘Faça-se a luz?”. Ou seja: o caudal de perguntas no texto de Santo Agostinho não nos leva a nenhum esclarecimento útil ao que pretendemos na brevidade desse discurso. 

Longe das elucubrações propostas pelo santo supracitado, mas, diante do mistério da salvação querida por Deus, luz e trevas são símbolos ou metáforas da graça e do pecado, da proximidade e do afastamento de Deus, da harmonia e do caos, do bem e do mal, da verdade e da mentira, do verdadeiro e do falso, do certo e do errado, enfim, de tantas outras categorias existenciais que envolvem a vida humana na penumbra do fascínio pelo paradoxo, pelo contraditório. Apenas no Antigo Testamento, o termo “luz” – em hebraico ’ôr – aparece 125 vezes nos mais variados contextos. Eis alguns exemplos: “Estendeu, pois, Moisés, a mão para o céu, e houve trevas espessas em toda a terra do Egito por três dias. Um não via o outro, e ninguém se levantou do seu lugar por três dias; porém, em toda parte onde habitavam os israelitas havia luz” (Ex 10,23-24); “Aquele governa os homens com justiça, governa como temor de Deus, é como a luz da manhã ao nascer do sol na manhã sem nuvens, que faz brilhar depois da chuva a grama da terra” (2Sm 23,3-4); “Esperei felicidade, veio-me a desgraça; esperei luz, veio-me a escuridão” (Jó 30,26); “Iahweh é minha luz e minha salvação: de quem eu terei medo?” (Sl 27,1); “Envia tua luz e tua verdade: eles me guiarão levando-me à tua montanha sagrada, às tuas Moradias” (Sl 43,3); “Tua palavra é lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho” (Sl 119,105); “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria” (Is 9,1); “Não terás mais o sol como luz do dia, nem o clarão da lua te iluminará, porque Iahweh será tua luz para sempre, e teu Deus será teu esplendor” (Is 60,19); “Não te alegres por minha causa, minha inimiga: se caí, levantar-me-ei; se habito nas trevas Iahweh é minha luz” (Mq 7,8). E tantos outros textos poderiam ser citados dentro dos limites do horizonte da “teologia da luz”, relacionada ao AT. De qualquer maneira, como vimos, em muitas circunstâncias literárias do livro sagrado, a luz identifica-se com o próprio Deus, que tira as criaturas da escuridão intensa das trevas que invade o seu universo interior. Há, na verdade, uma grande coincidência de significados profundamente teológicos nesse sentido. Deus é luz e nele não pode haver trevas. Por isso que a Bíblia afirma que para ele a noite é tão clara quanto o dia. 

No Novo Testamento, o mesmo vocábulo “luz” – em grego phōs – aparece somente 73 vezes, em contextos diversificados, como por exemplo: “Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte” (Mt 5,14); “O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do dia: o que vos é dito aos ouvidos, proclamai-o sobre os telhados” (Mt 10,27); “Porque meus olhos viram tua salvação, que preparaste em face de todos os povos, luz para iluminar as nações, e glória de teu povo Israel” (Lc 2,30-32); “Por isso, vê bem se a luz que há em ti não é treva” (Lc 11,35); “O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a apreenderam. Houve um homem enviado por Deus. Seu nome era João. Este veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. Ele era a luz verdadeira que ilumina todo homem; ele vinha ao mundo” (Jo 1,4-9); “Este é o julgamento: a luz veio ao mundo mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas obras eram más. Pois quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus ” (Jo 3,19-21); “Ele [João] era a lâmpada que arde e ilumina e vós quisestes vos alegrar por um momento, com sua luz” (5,35); “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12); “Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo’ (Jo 9,5); “Por pouco tempo a luz está entre vós. Caminhai enquanto tendes luz, para que as trevas não vos apreendam: quem caminha nas trevas não sabe para onde vai! Enquanto tendes a luz, crede na luz, para vos tornardes filhos da luz” (Jo 12,35); “Eu te estabeleci como luz das nações, para que sejas portador de salvação até os confins da terra” (At 13,47); “A noite avançou e o dia se aproxima. Portanto, deixemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12); “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor: andai como filhos da luz, pois o fruto da luz consiste em toda bondade e justiça e verdade. Procurai discernir o que é agradável ao Senhor e não sejais praticantes das obras infrutuosas das trevas, antes denunciai-as, pois o que eles fazem em oculto até o dizê-lo é vergonhoso. Mas tudo o que é condenável é manifesto pela luz, pois é luz tudo o que é manifesto” (Ef 5,8-14); “Esta é a mensagem que ouvimos dele e vos anunciamos: Deus é luz e nele não há trevas” (1Jo 1,5); “Já não haverá noite: ninguém mais precisará da luz da lâmpada, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e eles reinarão pelos séculos dos séculos” (Ap 22,5). 

Certamente, cada expressão colhida no AT ou no NT, poderia encher muitas páginas de reflexão e sabedoria bíblicas, concernentes ao mistério da luz divina, no sentido de apanharmos a riqueza de sua conotação e aplicabilidade frutuosa de sua compreensão diante do agir humano. De fato, como afirmara Santo Agostinho, a noite é a mãe do pecado. Com efeito, trata-se de uma tradução perfeita do pensamento de Cristo que disse: “Quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus”. Tais palavras são verdades cruciais e perenes para a consciência humana, diante das quais o racionalismo moderno prefere fechar-se para não se comprometer com os riscos de seu reconhecimento, de sua aceitação. Por isso que nós elegemos o comodismo da indiferença à leitura e vivência da palavra de Deus. E o que é pior: às vezes, imaginamos que, por desconhecermos os preceitos divinos com consciência e livre vontade, estaremos isentos de acusações e culpabilidades. Daí o fato pelo qual damos tanta atenção às luzes mortas e apagadas que enfeitam nossas casas e cidades, esquecendo-nos da verdadeira luz, que deveria brilhar, intensamente, não na coloração opaca de nossos enfeites natalinos, mas, dentro de nosso próprio coração. 

Sim, Ele virá mais uma vez na celebração de seu Natal para sacudir as consciências adormecidas pelo torpor da indiferença, do comodismo, da insuficiência própria de sua distração e acuidade existencial.