terça-feira, 8 de novembro de 2011

São Paulo: Vigilemus et sobrii simus

Vigilemus et sobrii Simus



De domingo a domingo, a Liturgia da Igreja de Cristo vai indicando-nos o caminho do fim, da conclusão dos projetos divinos sobre o homem e a humanidade. Às vezes, são textos dramáticos, catastróficos e apocalípticos, revelando a imediata surpresa na reviravolta dos últimos acontecimentos. Assim, desde os tempos do advento de Cristo no seio da nossa humanidade pecadora, todos os cristãos somos convidados à vigilância. De fato, o próprio Cristo já dizia aos seus ouvintes: “Vigiai, portanto, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor. Compreendei isso: se o dono da casa soubesse em que vigília viria o ladrão, vigiaria e não permitiria que sua casa fosse arrombada. Por isso, ficai preparados, porque o Filho do Homem virá numa hora que não pensais” (Mt 24,42-44); e, mesmo na hora grave da proximidade de sua paixão e morte, ele pedia aos apóstolos, representados por Pedro, Tiago e João: “Minha alma está triste até a morte. Permanecei aqui e vigiai comigo” (Mt 26,38); ou ainda: “Ficai acordados, portanto, orando em todo momento, para terdes a força de escapar de tudo o que deve acontecer e ficar de pé diante do Filho do Homem” (Lc 21,36). 

A vigilância é o estado de alerta que nos dispõe à prontidão dos eventos, sem medo do acolhimento à sua chegada. Trata-se de um tema muito recorrente na Sagrada Escritura. Também São Paulo faz suas recomendações sobre a vigilância: “Com orações e súplicas de toda sorte, orai em todo tempo, no Espírito, e para isso vigiai com toda perseverança e súplica por todos os santos” (Ef 6,18); “Perseverai na oração, vigilantes, com ação de graças [...]” (Cl 4,2); “Portanto, não durmamos, a exemplo dos outros; mas vigiemos e sejamos sóbrios [sed vigilemus et sobrii simus]; quem dorme, dorme de noite, quem se embriaga, embriaga-se de noite” (1Ts 5,6-7); enfim, o Apocalipse de São João exorta-nos, de igual maneira, com seu discurso parenético e auspicioso: “Eis que venho como um ladrão: feliz aquele que vigia e conserva suas vestes, para não andar nu e deixar que vejam a sua vergonha” (Ap 16,15). Na verdade, todas as exortações bíblicas relacionadas à atitude de quem vigia, têm o sabor da perseverança diante das vicissitudes difíceis de que sempre espera em Deus, ou melhor, de quem espera por Deus, que pode chegar a qualquer momento e surpreender-nos em negócios contraproducentes espiritualmente, de modo que nossa “vergonha” seja descoberta. 

O fato é que Cristo sabe da dificuldade que temos quanto à permanência cautelosa, prudente, precavida, atenta aos apelos circunstanciais de sua advertência. Vigiar com Cristo significa estar pronto para enfrentar com coragem e determinação os desafios da obediência aos seus mandamentos. Quem dorme desatento ou entorpecido pelas distrações do espírito não pode vigiar com Cristo. Daí a sua reclamação a Pedro: “Simão, dormes? Não foste capas de vigiar por uma hora? Vigiai e orai para não entrar em tentação: pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mc 14,37-38). No início dessa última frase, Cristo, mais uma vez, associa a vigilância à oração. Quem não reza, com insistência diante de Deus e de Cristo, não pode durar muito tempo na sua presença, pois a oração coloca-nos na atitude de sintonia com o Senhor, sobretudo, nos momentos difíceis da vida, quando percebemos o barco de nossa existência agitado e inseguro sobre as ondas impetuosas e inesperadas da inquietação interior, dos instantes de perigo e procelas que ameaçam afastar-nos dos caminhos do Senhor. São Paulo também insiste na situação espiritual que sincroniza vigilância e oração. 

São Paulo convida-nos a que sejamos “vigilantes e sóbrios”, enfatizando, de modo especial, o contraste de coerência e comportamento na concepção prática do antônimo desses termos, daquilo que lhes é contrário. Quem não vigia está distraído, e quem não é sóbrio está embriagado e, portanto, fora o estágio normal de sua consciência e razão. No original grego, o vocábulo “vigilante” tem sua etimologia no verbo grego “grēgoreō”, e significa “vigiar”. Ele aparece em todo o NT, pelo menos, 22 vezes, e é o mesmo usado por São Paulo, em 1Ts 5,6-7. Na pesquisa feita sobre o significado desse verbo grego, fomos orientados a procurar o verbo “egeirō”. Não é fácil a superação da curiosidade linguística dentro da ramificação da bela língua com que o NT foi escrito, mas não nos deixamos vencer pela demanda ou peleja da busca. Vamos, então, ao verbo “egeirō”, cujo significado extra-bíblico é “despertar do sono”. Mas, interessa-nos, particularmente, a sua acepção bíblica. No sentido lato, o verbo está ligado a “ressuscitar dos mortos”, tendo como paralelo hebraico o sentido de “pôr-se de pé”, “levantar-se”, “reerguer-se”. Toda essa gama de significação deve ser compreendida na extensão espiritual da ressurreição de Cristo, de que todos os cristãos somos convidados a participar. Ele que é o “Vivente” por excelência, aquele que está de pé diante do trono do Altíssimo. 

Outra expressão usada por São Paulo é que sejamos “sóbrios”, como quem não está sob o efeito de entorpecentes sólidos ou líquidos. Daí a complementação de sua frase: “Quem dorme, dorme de noite, quem se embriaga, embriaga-se de noite”. Na verdade, o sono do espírito é igual a uma espécie de “substância tóxica com ação analgésica e efeito psíquico tido como agradável pelo usuário, e a que o organismo se habitua, vindo a tolerar doses grandes, mas que provocam a necessidade de seu uso, o qual acarreta progressivas perturbações físicas e morais” (Dicionário Aurélio). Do ponto de vista espiritual, a lucidez exigida para uma vida sóbria diante de Deus é a consequência natural de quem vigia sobre si mesmo e suas ações. Como diz o rifão, o preço da liberdade é a eterna vigilância. E é justamente por sermos livres diante de Deus que precisamos vigiar, e vigiar sempre sobre a novidade dos acontecimentos da nossa fé, concernentes às nossas atitudes cristãs. Sobriedade e vigilância, dois lados da mesma moeda espiritual que nos coloca em sintonia com Deus e a nossa consciência livre diante dele. Em grego, o vocábulo para sóbrio advém do verbo “nēphō”, isto é, ser ou estar sóbrio, não ébrio, sob o domínio da razão e da lucidez. É assim que o cristão deve viver a sua fé, com todas as ilações intrínsecas à coerência de suas convicções mais profundas.
Segundo Bauernfeind, a sobriedade em sentido próprio, entre outras maneiras de compreensão, quer dizer não estar sob o efeito de vinho, ou seja, não embriagado, o que se opõe a qualquer tipo de obscurecimento mental. Numa concepção mais antiga, já Filão reconhecia no termo a exigência do homem reconhecer a soberania de Deus, empenhando todas as suas forças com sobriedade, o que também fazia parte da própria natureza divina. Mais ainda: Filão estende sua compreensão no sentido de afirmar que ser sóbrio significa reconhecer Deus como Deus e criador do universo e de tudo o que existe. Contrária a essa maneira de ver e perceber a reflexão teológica, está a embriaguez, enquanto o anuviar da mente humana deve-se, especialmente, no fato de o “eu do homem” colocar-se no lugar de Deus, preposterando, então, o relacionamento criador-criatura. Numa palavra, ainda dentro da concepção de Filão, a sobriedade relaciona-se ao voltar-se à conversão religiosa, ao seu fato em si, porquanto leva o crente a reconhecer o seu Senhor e Deus. Sim, com muita humildade, o cristão precisa de lucidez e transparência espiritual na adesão ao seu Deus. 

Por conseguinte, dentro da concepção litúrgica que orienta nossos passos ao encontro do Senhor que vem, os textos da Liturgia da Igreja no final do ano litúrgico, evidenciam a novidade de sua espera. Destarte, o cristão deve viver sóbrio na vigilância permanente, pois a hora da chegada do Filho do homem será inesperada, como a de um ladrão que chega repentino, sem avisar. Com efeito, a Liturgia da Igreja coloca seus passos nos de Cristo, orientando os cristãos ao destemor sereno na iminência do encontro com ele. Sem dúvida – consoante a exegese de Angélico Poppi – a espera pela vinda do Senhor não constitui para o crente motivo de ânsia ou medo. O essencial é, pois, sermos encontrados vigilantes, prontos e preparados para acolher o Salvador, sem permitir que as preocupações do mundo condicionem nossa abertura e acolhimento ao Senhor na súbita hora de sua chegada.