domingo, 13 de novembro de 2011

Morrer antes de morrer...


Morrer antes de Morrer 



Caro leitor, você já parou para pensar como deveria ser o seu velório? Ou melhor, quem seriam as pessoas que deveriam aparecer lá para o último adeus? Que assunto estranho e bizarro, hein? Mas, caiamos na real: mais cedo ou mais tarde, o fatídico dia chegará para todos nós. Esse dia chegará para seus amigos mais próximos, para seus parentes, seu pai, sua mãe, seus irmãos e irmãs, enfim, chegará também para você, queira ou não queira. Sim, nossa beleza, nossa juventude, nossa feiúra, nossos aleijões, tudo o que somos e temos será engolido pelo bocado definitivo da morte. Como em relação a algumas amizades já perdidas na poeira do tempo, nosso coração desenganado deve serenar-se diante da ideia da morte. Então, não custaria a gente colocar a massa cinzenta para funcionar, fantasiando a visibilidade do que deveria ser o nosso “ciao” ao mundo. Que tal pensar como seria se a gente pudesse morrer antes de morrer, somente para descobrir as figuras indesejadas presentes às condolências derradeiras dadas aos nossos parentes no final do existir? 

Se a gente morresse antes de morrer, talvez, pudéssemos descobrir algumas pessoas distraídas que passaram a vida inteira tentando dizer que nos amavam, sem nunca ter tido a coragem de manifestá-lo por conta dos atropelos acidentais do querer bem. Sim, querer bem é muito complicado na terra dos vivos. Na terra dos mortos, não sei como seria a possibilidade de externar o belo sentimento da amizade. O fato é que a contramão dos sentimentos provoca acidentes inesperados e, às vezes, traumáticos. Para os adultos, não é possível a manifestação do amor como fazem as crianças na simplicidade amorosa de seu jeito inocente de ser. O amor das crianças é um amor despretensioso, desinteresseiro. No mundo da indiferença, é preciso que, vez por outra, saímos do circuito cansativo dos afetos sem expressão, sem vida, sem cumplicidade ou parceria. Quer ficar bom ou virar santo? Morra ou se mude! As pessoas distantes, talvez, não agradeçam ou o esqueçam mais depressa ainda, mas, você vai sentir-se melhor. Claro que no nosso universo imaginativo, a morte pode não ser real nem deva acontecer em algum lugar geográfico ou temporal, mas, na interioridade de cada um. Na verdade, ela pode estar presente na intenção de mudança, no desejo de transformação e abertura a novas maneiras de relacionamentos. Trata-se de atitudes de morte, de mudança. Não podemos fazer viagens maravilhosas no interior de nós mesmos? Então, podemos mudar-nos para bem longe da rotina cotidiana e enfadonha dos falsos amigos que não gostaríamos de reencontrá-los em nosso velório. O problema é que o morto não tem vontade. O melhor seria fazermos a lista dos presentes antes do empacotamento fúnebre. Mas, como isso seria possível? Realmente, ninguém se prepara para morrer como somos preparados para nascer, ou para sermos acolhidos ao nascimento. Aliás, Rubem Alves fala da “morienterapia”. Qual seria o seu conceito para esse vocábulo? Falando sobre “a morte e o morrer”, assim se expressa ele: “A ‘reverência pela vida’ exige que sejamos sábios para permitir que a morte cheque quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à abstetrícia: a morienterapia, o cuidado com os que estão morrendo. A obstetrícia é a especialidade que recebe a vida quando ela chega. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe das UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a Pietà de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe, o morrer deixa de causar medo”. Sua reflexão tenta trazer um pouco de alívio e suavidade à problemática suscitada pela necessidade do morrer com dignidade, mas, não sei até onde a sua “morienterapia” deixaria os moribundos serenos se a certeza da finitude próxima causa profunda angústia existencial, interior. Precisaríamos estar mais sonolentos do que acordados para viver com suspeita serenidade a terapia do morrer. Não por acaso, já disseram que o sono é o irmão da morte. Ademais, mesmo em situações limites da contingência humana, ninguém morre pensando que vai morrer, mas somos obrigados e constrangidos a aceitar o rito da passagem indesejada, e fazemo-lo sem querer e, totalmente, contrariados. 

Se na vida, as pessoas se indispõem por qualquer motivo, na morte, tudo poderia ser o fechamento de círculos temporais vencidos pela caducidade dos relacionamentos. Na indisposição recíproca, infelizmente, as pessoas carregam as mágoas pelos dias afora, pelos meses, pelos anos. Precisaríamos descobrir uma terapia eficaz para as mazelas do espírito, para as nódoas psicológicas da alma. O pior é que nem sempre conseguimos encontrar uma saída justa, favorável, à reaproximação das pessoas feridas, machucadas, ofendidas, injuriadas. Os antídotos da alma não são remédios encontrados na farmácia da esquina, e a criatividade da recomposição do estado de ânimo bate à porta da superação sem muita eficiência regenerativa. Para a psicologia, é importante que as pessoas se sintam amadas, acolhidas, sem discriminação nem preconceito. Por isso que a indiferença e o desprezo não aparente têm levado muitos à depressão, ao alheamento circunstancial de tudo que os envolve. 

Velório é festa de ninguém, ou de todo mundo que não é convidado. Qualquer curioso pode entrar sem ter sido convidado. Quando eu estive em Londres, onde passei alguns dias, contaram-me que na Inglaterra havia morrido uma senhora que tinha deixado toda a sua riqueza para a primeira pessoa que assinasse o livro de presença em seu velório. Por acaso, passou por lá um bêbado, que resolveu registrar-se no livro. Ele foi o primeiro a registrar o seu nome lá. Resultado, ganhou a fortuna da velha senhora que não tinha parentes. De fato, ela fora encontrada morta em sua habitação, sem que ninguém estivesse cuidando dela. É, na Inglaterra, defunto tem vontade. Se fosse no Brasil, com tanta gente corrupta, arrogante e estúpida, jurando inocência, e pensando não poder ser, jamais, abatida pelo redemoinho violento das denúncias, duvido que aquele “bebum” visse a cor da herança. Com certeza, dar-se-ia um jeito de esconder os haveres da morta com o embrulho corrompido do testamento. Todavia, os ingleses possuem o senso da honestidade, pelo menos, naquela época, em que a corrosão da unidade monetária ainda não tinha elevado o nível da pobreza em toda a Europa. 

Outro caso curioso, sobre o senso da honestidade dos ingleses, contou-me um amigo na mesma ocasião. O fato aconteceu com ele. Até parece piada, mas, não o é. Então, ele contou que, certa feita, ele fora buscar uma lata de refrigerante em uma daquelas máquinas que vomitam o recipiente com o líquido desejado, depois de depositadas algumas moedas ou cédulas. E a máquina inteligente também calcula o troco e oferece-o ao cliente. No caso desse amigo, a máquina ficou com tudo. Não entregou nem o refrigerante nem o troco. Por conseguinte, ele refletiu e pensou: “Que devo fazer, se fui roubado por esse latão?”. Não pensou mais duas vezes, e procurou a polícia. Era um direito seu, receber a bebida solicitada e pedir o troco. A polícia foi ao local, abriu a máquina enganadora, e não encontrou nenhum dinheiro colocado ali. Até hoje não sabemos que fim levou a referida pecúnia. No entanto, a polícia, não desconfiando do cidadão, perguntou, mais ou menos, qual teria sido a hora em que ele visitara a máquina. Imediatamente, foram ao terminal de câmeras, que registraram o momento, fizeram a devida observação, aproximando a imagem, e, tendo constatado a quantia que fora colocada na máquina, a polícia pegou uma nota, de igual valor, e entregou-a ao meu amigo. Para quem não sabe, Londres é uma das cidades mais vigiadas do mundo. Até pouco tempo, ela detinha mais de sessenta por cento de todas as câmeras do resto do mundo. Quando o brasileiro chegar a esse nível de honestidade, precisaremos trocar o nome da nação. No entanto, ao tempo em que isso não acontece, que país vergonhoso, o nosso. Quem rouba para comer vai preso, e os ladrões de colarinho branco ou colorido continuam soltos, levando a melhor. Porém, voltando ao propósito inicial do “morrer antes de morrer”, pelo menos, a morte é honesta com todos os mortais. Ela não trai nem engana ninguém. 

A verdade é que nenhum homem é capaz de viver plenamente a vida sem pensar na morte, ou melhor, sem vislumbrar o horizonte circundado e banhado da luz que o aparente pôr do sol tenta esconder-lhe sem o conseguir. Nem sei se deveríamos decidir o como morrer. Talvez, assim, na roça, sob o alpendre de uma casa velha no meio do mato, refesteladamente cômodos e lúcidos, numa cadeira de balanço, bem velhinhos, num final de tarde de primavera, com a chuva fina caindo entrecortada pela luminosidade dos raios do sol se pondo, enquanto fosse sentida uma brisa leve, mágica, tênue, empurrada pelo sopro frio da morte, depois do que, ela dar-nos-ia o abraço letal, mortífero... Silêncio! Epitáfio! Túmulo sombrio e emudecido pela bruma esperada do anoitecer definitivo da existência na terra.