segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Quando as experiências humanas dificultam a visibilidade de Deus

Quando as experiências humanas dificultam a visibilidade de Deus 



A Bíblia diz que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 3,6). No entanto, transcorridos tantos séculos na esteira da história humana, nem sempre foi assim que o homem se comportou. Na verdade, muitas de suas fatídicas experiências distantes de Deus, no esforço contínuo, trágico e fracassado de autossuficiência e radical independência, fizeram com que a autêntica imagem de Deus fosse distorcida na visibilidade limitada e míope do homem.
Refazendo o percurso da história do povo de Israel, à luz da palavra de Deus, sabemos que a fidelidade do Deus da Aliança ao homem – ou melhor, às promessas feitas ao homem – é incondicional. Nunca Deus desistiu ou desistirá do homem, mesmo que ele tenha se arrependido de tê-lo criado (Gn 6,6). Contudo, a infinita misericórdia do Senhor Deus não dispensa o homem do esforço necessário para corresponder à sua graça. A Bíblia está cheia de exemplos notadamente fortes da revelação divina, solicitando a coerência da vida diante dele, não obstante todos os limites intrínsecos à rebeldia interior e ao jeito cômodo com que, vez por outra, o sonho da liberdade contradiz a essência de sua realidade mais profunda, isto é, de sua orientação para o bem e para a prática do bem, da busca e da aceitação da verdade. Quantas vezes, e de que maneira, Deus tentou advertir o povo de Israel do caminho errado de suas escolhas? Quantas vezes, Deus fez com que Israel fizesse a “memória histórica” de todos os acontecimentos que lhe dizem respeito, sobretudo, quando o Senhor ia diante deles, com mão forte e poderosa, a fim de livrá-lo de todas as ciladas colocadas propositalmente pelos inimigos? Mesmo assim, quantas vezes, o povo de Israel reclamou de seu Deus, na dinâmica dura, mas firme, das propostas da aliança que lhe fora oferecida? Quantas vezes, Deus ouviu o clamor de seu povo e foi libertá-lo de seus inimigos opressores?
O homem quando quebra o pé no buraco da estrada, não deve culpar somente a estrada, mas, talvez, sua distração durante a travessia do caminho. Na verdade, é a própria escuridão interior do homem quem limita sua visibilidade de Deus. Infelizmente, nossa infantilidade espiritual – se é que a possuímos de alguma maneira – quis fazer o retrato de Deus à imagem e semelhança de sua pequenez. Não poucas vezes, somos tentados a olhar para Deus como olhamos para nós mesmos. Tão mesquinha, medíocre e ridícula é a nossa percepção do Transcendente, que gostaríamos de aprisioná-lo nos esquemas retardados e dementes de nossas próprias atribuições. Todavia, Deus é sempre maior. O fato é que desclassificamos Deus e queremos colocar-nos no lugar dele. Pior ainda, “matamos Deus”, e queremos imaginar-nos vivos. Se Deus morrer na nossa vida, na nossa consciência, na nossa sociedade, na nossa história pessoal e coletiva, o homem – a humanidade – também morrerá. Se a luz divina apagar-se do palco da história humana, todos os outros personagens e atores ficarão no escuro e perderão o brilho, o vigor, a beleza, enfim, a própria vida. No entanto, o mais curioso é que a existência de Deus não depende de nossa vontade nem de nosso querer, nem do nosso agir. É justamente o contrário: nós precisamos dele. Ele simplesmente “É aquele que é” – “Eu sou aquele que sou!” – conforme a revelação bíblica a Moisés. Aceitando-o ou não, querendo-o ou não, em nada nossa arrogância diminuirá a essência de Deus, seu amor, sua glória, sua misericórdia e sua plena manifestação em Cristo.
Como é que tentamos olhar para Deus? Criamos um “deus” à nossa imagem e semelhança, invertendo os papéis, e queremos que ele se pareça conosco. Deus não precisa de um aprendizado alfabético como acontece com nossa inteligência racional. “Um antes” e “um depois”, no sentido cronológico de nossas percepções, não fazem parte de sua apreensão das coisas. Deus está fora dos esquemas lógicos de nossa cognição. Entrementes, os absurdos vividos ao longo da história, sobretudo, quanto à degradação da dignidade humana, como aconteceu em determinados períodos obscuros da racionalidade demente do homem, às vezes, acusaram Deus de ter se esquecido da obra-prima de suas criaturas, o homem. A verdade é que, sempre em tempos de dificuldades de todo tipo, instalou-se dentro do coração humano a desconfiança no que concerne à própria existência divina. Desse modo, os grandes dramas da humanidade, de modo especial os relacionados a doenças incuráveis, fome, peste, e guerra, sem falar do sofrimento e da dor dos inocentes e injustiçados, não raras vezes, dificultaram a visibilidade de Deus na essência mais profunda e tangível, perceptível, de seu Ser, que é amor, bondade, misericórdia, verdade, justiça, entre outros atributos de sua transcendência. Com efeito, nenhuma tragédia temporal humana poderá apagar os rastros de sua infinita benemerência, pois ela não está condicionada aos limites inerentes às nossas estruturas psicológicas ou espirituais. Mesmo desesperado no fundo incontrolável de sua angústia, o homem pode clamar e gritar por Deus, sem encontrar a resposta desejada, como se Ele estivesse surdo, silencioso e mudo diante de suas lamentações. Mas, Ele estará lá no aparente deserto interior da surdez humana. Deus não ri nem debocha do homem carente de realização plena, que somente Ele pode concretizá-la na radicalidade mais premente de suas exigências. Mesmo em situações espirituais em que podemos experimentar o “nadir infernal” da baixeza humana, é possível que Deus escute a voz aflita de seus filhos.
Saindo da escuridão de si mesmo, o homem caminha, às apalpadelas, na direção da claridade divina. É que a verdade do homem sobre si mesmo, sua origem e seu destino último somente encontram sentido em Deus, não obstante todo o caos que o cerca. Por isso que, tento visitado o Campo de Concentração e Extermínio de Auschwitz, em maio de 2006, o Papa Bento XVI afirmara, com absoluta serenidade diante de Deus e dos homens, em sua audiência na Praça do Vaticano: “Diante do horror de Auschwitz, não existe outra resposta senão a cruz de Cristo: o Amor descido até o fundo do abismo do mal, a fim de salvar o homem na raiz, onde sua liberdade pode rebelar-se contra Deus. Que a humanidade hodierna não esqueça Auschwitz e as outras ‘fábricas de morte’ nas quais o regime nazista tentou eliminar Deus para tomar o seu lugar! Não ceda à tentação do ódio racial, que está na origem das piores formas de antissemitismo. Tornem os homens a reconhecer que Deus é Pai de todos e a todos nos chama em Cristo a construir juntos um mundo de justiça, de verdade e de paz”. As palavras do Sumo Pontífice querem recordar à humanidade inteira a necessidade de Deus, mesmo quando tudo parece dizer que ele não existe, por conta de sua aparente indiferença e silêncio em face às calamidades que desesperam os homens. A despeito de toda descrença e incredulidade, Deus ainda é a resposta segura às buscas humanas. Fora da linha do horizonte divino, o homem tende a desaparecer pela barbárie inconsequente de suas perversas arbitrariedades.
Por conseguinte, é justamente lá, onde Deus se demonstra ausente e fracassado, como na morte de seu divino Filho, que Ele se mostra o Salvador de todos. Os olhos humanos não conseguem ver além do caos senão por meio da fé. E a fé é esse rasgo de luz atravessando a escuridão da noite de nossas incertezas, atingindo a incompreensibilidade da solidão divina que age contra o bom senso de nossas esperanças, expectativas ou desejos. De fato, estranha à nossa pretensa racionalidade é o pensamento do teólogo Dietrich Bonhoeffer, mártir do nazismo, que escrevera: “Deus não nos salva em virtude de sua onipotência. Ele nos salva em virtude de sua impotência em Cristo Jesus, crucificado e morto”. É, pois, essa aparente contradição quem abre uma dimensão nova na perceptibilidade do crente, que, apesar de tudo, não permite que as sinistras experiências humanas obnubilem ou dificultem a visibilidade de Deus, que silencia por trás das desordens provocadas pela imbecilidade do próprio homem, teimoso e truculento, que procura atribuir a Deus a irresponsabilidade que deveria tombar sobre os seus próprios ombros em decorrência da sua maligna e satânica criatividade.