segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Antropofagia social


Antropofagia Social 

 

Uma das coisas que mais me têm chamado a atenção na sociedade moderna é o progressivo tsunami de violência e delinquência que tem solapado, implacável e furiosamente, inúmeras vidas humanas, por conta da desumanização a que o homem chegou por meio de uma estonteante e irrefreável espiral de circunstâncias incontroláveis e surpreendentes. Trata-se, na verdade, do redemoinho feroz e insaciável do qual poucos conseguirão escapar ilesos, incólumes. 

No final do mês de maio, a estatística contou 352 assassinatos em Sergipe. Vivemos numa sociedade antropofágica, isto é, não comemos carnes humanas, comemos humanos. A fratricidade bárbara da sociedade moderna tem nos assustado muito, embora o aceitemos, passivamente, sem indignação ou capacidade reflexiva. Mas o pior de tudo, nessa conjuntura de morte e brutalidade, é que ninguém pode sentir-se totalmente seguro, pois a alta onda do horror que parece não nos atingir, vai acabar engolindo a todos, caso não tomemos nenhuma providência estratégica e sábia, a fim de conter a besta interior do homem que se desumaniza cada vez mais, sobretudo, por desconhecer ou desconsiderar características que são propriamente suas. O fato é que, no aceno de sua constituição enquanto pessoa – equivalente a ser humano – não podemos deixar de apontar os princípios de sua humanidade, que são radicalmente diferentes das leis vitais dos animais irracionais. Não por acaso, somos dotados de inteligência, liberdade e vontade. No entanto, o caos social em que nos encontramos mergulhados, parece desmentir, e até contradizer, a sublimidade de suas prerrogativas racionais. Evidentemente, o quadro antropológico atual não se refere apenas às novidades atrozes, no sentido das conjunturas em que o homem se torna o próprio “lobo do homem”, mas, ele planta suas raízes na originalidade, inclusive, do “homem bíblico”, que não pode ser desconsiderado no âmbito da compreensão mais profunda de seus dramas e de seus problemas. Por isso, não podemos deixar de recorrer à Sagrada Escritura que, de um modo ou de outro, também abre as portas da reflexão para o horizonte antropológico existencial humano hodierno. 

Criado “à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,24), isto é, participando da intimidade divina, a tal ponto chegou a perversidade do coração do homem, que, afastando-se do Criador, ele precipitou-se nos desvãos da degradação humana, da qual parece não conseguir levantar-se mais. Uma expressão da Bíblia traduz essa realidade dramática do agir humano: “Os desígnios do coração do homem são maus desde a sua infância” (Gn 8,21). Tal expressão aparece no contexto do momento em que Deus, arrependido do dilúvio, promete não mais destruir a terra por causa da maldade do homem, visto que ele sempre se comportou assim, desde a mais antiga aurora de sua existência. É, mais ou menos, como se Deus, desencantado com a obra-prima de suas criaturas, dissesse: “Não tem jeito mesmo!”. O desgosto divino abate-se sobre o âmago, as vísceras e as entranhas mais profundas do Criador. Nesse sentido, basta pensarmos, por exemplo, que a história da humanidade começou com uma guerra fratricida, em que um irmão matou o outro. Na verdade, esse longínquo horizonte da perspectiva relacional humana, colocou em choque todos os relacionamentos futuros, e, até hoje, o homem revolve-se dentro de si mesmo para superar as incongruências interiores de sua agressividade. Embora isso aconteça de modo inconsciente, em que o homem parece não sentir, vibrante dentro de seu ser, a real necessidade de mudança interior, o caminho de volta não será outro senão o da introspecção, não apenas psicológica, mas, especialmente, espiritual, ético, moral. De fato, dentro do recipiente de sua agitação interior, com toda a carga de sentimentos e sensações que o invadem na dimensão mais crucial de seus dilemas e frustrações, o ilusório mundo da felicidade plena evidencia-se na contraluz dos embates cotidianos da dura realidade que embrutece a sacralidade do homem. 

É, pois, nesse contexto de violência e constrangimento moral e físico que se originam os arroubos da sensibilidade humana que compõe os fios da trama maquiavélica e enganosa da traição de seus próprios sentimentos. Inveja, ciúme, violência e morte abrem a porta para o caos dos relacionamentos humanos. Tudo isso refere-se à violência que não pode ser passada em branco na constituição do “homem bíblico”, sob a suspeita da não “compreensão” legítima dos caracteres intrínsecos à própria importância do homem e da sua vida.