domingo, 22 de janeiro de 2012

Ainda relembrando a África...

Ainda relembrando a África 

 

No dia primeiro de julho de 2005, o Núncio celebrou a missa em Porto Novo, a segunda cidade mais importante do Benin; é a capital política e administrativa, enquanto Cotonou é a capital econômica. Estávamos na catedral onde alguns alunos do Colégio Católico “Nossa Senhora de Lourdes” receberam o batismo e fazeram a Primeira Comunhão. No dia 2, sábado, a celebração da missa e administração dos Sacramentos da Primeira Comunhão e da Crisma aconteceram na Paróquia de São João Batista de Cotonou. Pela primeira vez, autorizado pelo Núncio, administrei o Sacramento da Crisma a muitos adolescentes. Eram mais de oitocentos, no total, e cujos nomes eram de difíceis pronúncias, também, porque não estavam escritos, como se esperava, no intento de facilitar e agilizar a celebração. O Núncio, com a sua acintosa ironia humorística, comentando o fato a um sacerdote, e indicando-me, disse: “Ele estava do meu lado, e ouvi muitos nomes que ele inventou”. 

No dia 3, deixamos o Benin e nos dirigimos ao Togo, outro pequeno país que tinha o mesmo Núncio Apostólico. Acordamos às 04h00, e às 05h00 já estávamos a caminho. Duas horas depois, chegamos à fronteira das duas nações. Precisei organizar o visto para o ingresso na estrangeira terra do Togo. O visto dura um mês e me possibilita a entrada na circunscrição territorial togolesa várias vezes. Pelas paisagens, pelas estradas – algumas sobre a terra nua – e também pela vegetação, talvez como expressão da territorialidade de toda a África, estas duas regiões lembravam muito o Brasil. Contudo, a coincidência da semelhança não acontece apenas no vislumbre agreste do cerrado ou das imensas planícies, toscas e rudes. A música, a dança, os coqueirais, as frutas, o cuscuz, um tanto diferenciado do nosso; o espírito galhardo, gentil e festivo do povo, caloroso e acolhedor, apesar da pobreza e das doenças, tudo me recordava imensos traços da miscigenação brasileira. Eu diria mais: o Brasil nasceu na África. Percorrendo terra adentro, depois de mais ou menos uma hora de viagem, chegamos à catedral de “Nossa Senhora da Trindade”, na diocese de Atakpamé, cujo bispo é Julien Kotato. Quatro jovens diáconos foram ordenados sacerdotes. A liturgia se arrastou por mais de quatro horas. A noite curta, o cansaço da viagem e a celebração demorada me massacraram. Procurei um lugar mais ao fundo do presbitério e me coloquei ali, meio escondido, dormindo para me esquecer do tempo, durante a primeira parte do rito da celebração, que se desenvolveu em francês e em “êbê”, a língua local, cuja palavra significa “escondido”. 

Terminada a missa, almoçamos e continuamos a viagem na direção de Lomé, a capital do Togo. No final da tarde, estávamos na Nunciatura Apostólica do Togo, situada no fundo do Seminário Maior “João Paulo II”. O edifício foi cedido à Nunciatura pela Arquidiocese. Hospedei-me no quarto do Papa João Paulo II – “Chambre du Pape Jean Paul II”. Na verdade, não é todo mundo que tem o privilégio e a responsabilidade de dormir no quarto onde dormiu um papa e, certamente, no mesmo leito! Deus me concedeu esta graça. Mais do que uma hospedagem, é-me um lugar de recolhimento e oração. Quase 20 anos depois de sua visita ao Togo, o que aconteceu em 1985, fui acolhido no mesmo quarto que o recebeu. Num livro da Nunciatura Apostólica do Benin, relatando o evento e mostrando muitas fotografias do ocorrido, li a seguinte frase: “No dia 10 de agosto de 1985, o Santo Padre deixou Lomé satisfeito de sua estada [...]”. Voltando ao Togo, uma segunda vez, novamente, permaneci no mesmo quarto. 

No dia 7, aconteceu em Cotonou a instalação da vice-província Africana da Congregação de Jesus e Maria, dos Eudistas, que contou com a participação de membros da Congregação vindos de Paris. O Núncio e nós estávamos presentes. No dia 15, houve a bênção da nova casa dos jesuítas, seguida pela celebração eucarística presidida pelo Arcebispo de Cotonou. 

Quanto à religiosidade do povo, eu diria que o cristianismo precisa ser purificado em sua concepção e prática mais despojadas da influência das religiões tradicionais, que nem cristãs são. Como no Brasil, ali também há um pouco de confusão religiosa de crendices e superstições que não permitem o estado puro do autêntico catolicismo. Como diz o rifão, na busca incerta de praticar e manifestar a sua fé, eles acabam acendendo “uma vela para Deus e outra vela para o cão”. Contudo, devemos reconhecer que o peso da história e o forte influxo da esmagadora força cultural contribuem para fomentar a conjuntura atual. Uma mentalidade não se muda com o passar de poucos dias. Precisa-se de anos, décadas, séculos, eras, que, embora acobertando “a mecha que ainda fumega”, constituem a luz da esperança acesa na atualização de uma sempre reacendida e renovada evangelização. 

Das curiosidades de Cotonou, posso falar da imensa quantidade de lambretas. Meu amigo pensou que estivesse havendo uma corrida, quando viu a “procissão” pela primeira vez. Realmente, penso que nem Münster, na Alemanha, ganha de Cotonou com a sua privilegiada quantidade de bicicletas que, sabemos, não são reflexos da pobreza da nação. Em Cotonou, os meios de transportes são escassos. Não existem ônibus coletivos como estamos tão habituados em nossos passeios pelas grandes cidades do resto do mundo. Para nos trasladar, precisamos usufruir do serviço dos mototáxis. É uma divertida aventura! Várias vezes, à noite, eu pude usufruir da aceleração da lambreta de um amigo congolês. Eles estão tão acostumados com o vai-e-vem que confiam demais uns nos outros e nem parecem olhar de lado, a fim de controlar o trânsito e a possibilidade de ultrapassagem. Fazendo uma ou outra visita, percorríamos os bairros pobres e escuros da capital beninense, de lambreta. Muitos candeeiros e velas acesas indicavam a falta de pavimentação e eletricidade em muitas ruas e casas. Nas ruas sem calçamento e cheias de buracos, cada um parece ter o seu pequeno negócio, a sua venda, o seu ganha-pão, reflexo de sua rotineira e costumeira preocupação pela sobrevivência. 

Deixei o Benin no dia 27 de julho de 2005, à noite, um mês depois de ter chegado. Desprovidos de detectores modernos para controle das bagagens e dos passageiros; sem tubos de conexão entre o saguão do aeroporto e o aeroplano, as bagagens de mãos são controladas com lanternas antes do ingresso do avião, que está com a escada de entrada cercada por grossas correntes. Assim, de modo muito curioso, a pobreza diverte-se com a sua própria criatividade. A pobreza é mãe da criatividade. Voltando de Cotonou em direção a Paris, a noite foi brevíssima. Assisti a dois filmes, um de ação e outro de comédia. E escutei um pouco de música, enquanto, de repente, o sol esplendoroso e fulgurante começou a se levantar e brilhar sobre a aparente serenidade da capital francesa, que despertava para mais um novo dia.