domingo, 22 de janeiro de 2012

Vinde e vereis

Vinde e Vereis 

 

A expressão “vinde e vereis” está inserida no contexto do chamado que Cristo fez aos seus primeiros discípulos. Eis a citação do evangelho de São João: “No dia seguinte, João se achava lá de novo, com dois de seus discípulos. Ao ver Jesus que passava, disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado de Deus’. Os dois discípulos ouviram-no falar e seguiram Jesus. Jesus voltando-se e, vendo que eles o seguiam disse-lhes: ‘Que procurais?’. Disseram-lhe: ‘Rabi (que traduzido significa Mestre), onde moras?’ Disse-lhes: vinde e vede [‘vinde e vereis’, conforme o original grego]. Então eles foram e viram onde morava, e permaneceram com ele aquele dia” (Jo 1,35-39).
A vocação verdadeira e autêntica diz respeito a um chamado sublime que Deus dirige aos homens. No caso específico dos discípulos de Cristo, acima referido, o chamado é direto, e desperta o interesse dos seguidores que, vendo Jesus passar indicado por João, vão atrás dele sem delongas. “Que procurais?” é uma pergunta retórica que, com frequência, está nos lábios de Cristo, quando ele se sente seguido ou talvez ameaçado, como vemos ainda no evangelho de São João nas conjunturas de sua prisão: “A quem procurais?” (Jo 18,4). O encontro com Cristo suscita muitas reações nas pessoas. Ele não era um pop star dos tempos modernos, mas atraía sobre si o fascínio das pessoas. Era um homem extraordinário em todas as dimensões do seu viver e do seu agir. Ele era Deus, se nos referimos ao tempo da graça em que ele apareceu entre nós. No entanto, sabemos que o verbo “ser” aplicado a Cristo e a Deus, que coincidem na mesma natureza divina, é conjugado sempre no presente eterno de sua perenidade. Deus é aquele que é independentemente dos atributos que lhe conferimos.
O convite de Cristo aos discípulos de João “vinde e vereis” tornou-se a grande possibilidade para Jesus abrir seu coração diante deles, durante o dia em que eles “permaneceram com ele”. Deve ter sido um dia inesquecível no coração e na mente daqueles homens rudes, pescadores do lago da Galileia, como André e Pedro. A vocação é uma “provocação” de Deus feita ao homem desejoso dele, mesmo que ele não o saiba de modo consciente. Deus dá um jeito de nos encontrar onde quer que estejamos. O Filho de Deus aproxima-se de nossa humanidade, a fim de reorientá-la na direção do encontro com a Divindade. Certamente, aquele primeiro contato com Cristo trouxe um efeito duradouro na vida de todos aqueles que se deixaram tocar pelo olhar penetrante de sua pessoa. Depois de sua morte e ressurreição, aquela amizade já havia se tornado forte demais para que eles pudessem voltar atrás. Assim, diante do Filho de Deus, de Jesus, que “passou pelo mundo fazendo o bem”, tudo agora ficou relativizado pela excelência da vida que ele queria proporcionar aos seus seguidores. Daí a disposição de todos ao martírio, enquanto selo sublime do testemunho radical do amor ao Mestre.
“Vinde e vereis” significa tal proximidade com Cristo, que, aprofundando a sensibilidade de seus sentimentos, não seja mais possível voltar-lhe as costas, de modo que a pessoa esteja disposta a correr todos os riscos da fidelidade, da verdade, da identidade com ele, pois “o discípulo não está acima de seu mestre, nem o servo acima de seu senhor” (Mt 10,24). Somente na intimidade com Cristo podemos descobrir o mistério do segredo da doação generosa, serena, especialmente, diante dos percalços do seguimento. Às veze, a verdade de Cristo parece muito dura para ser observada, vivida. No entanto, foi ele mesmo quem nos indicou a estrada a ser seguida. Ele mesmo se apresenta como o “Caminho”. Ou seja, na penumbra de nossas incertezas e dilemas quanto à insegurança das convicções mais profundas de nossa fé, deve aparecer o discernimento entre a mentira e a verdade de nossas buscas. Eis o que afirma o Papa Bento XVI: “A verdade pode doer, pode ferir [...]. É justamente porque a vida na mentira ou também simplesmente na opção de ignorar a verdade aparece frequentemente mais cômoda em relação à exigência do verdadeiro, que os homens se escandalizam com a verdade, querem eliminá-la, removê-la, tirá-la do caminho. Quem de nós poderia negar que às vezes a verdade o perturbou: a verdade sobre si próprio, a verdade sobre o que devemos fazer ou não fazer? Quem de nós pode afirmar nunca haver tentado pôr-se à frente da verdade ou, pelo menos, acomodar a verdade, para torná-la menos dolorosa? Paulo era inquieto porque era um homem da verdade; quem se dedica à verdade até o fundo e não quer utilizar nenhuma outra arma, nem prefixar-se outra tarefa, não necessariamente será morto, mas chegará de algum modo perto do martírio: tornar-se-á um sofredor”. Sábias palavras, Santo Padre! O “Vinde e vereis” de Cristo também escancara as portas da coragem humana para o sofrimento. Como diria Santa Tereza de Ávila: “Deus ama as almas intrépidas”; ou ainda: “A primeira coisa que o Senhor opera nos seus amigos quando se tornam fracos é infundir-lhes a coragem e tirar-lhes o medo do sofrimento”.
O “vinde e vereis” de Cristo também comporta a decisão firme de quem, muitas vezes, encontra-se hesitante e vacilante diante dos apelos do mundo hedonista e materialista que procura somente sua autossatisfação. Por isso que o seguimento de Cristo implica em muitas renúncias. O homem de fé, com muita frequência, parece estar condicionado pelos ditames de uma sociedade que não enxerga mais a Deus como Criador e Pai. Todavia, ele não deve deixar-se contaminar pela mentalidade do mundo. Daí a insistência de São Paulo, que sabe muito bem o quanto é difícil perseverar incólume, sem permitir ser arrastado para o abismo da prevaricação da lei divina, quando assevera aos romanos: “Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual. E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir o qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito” (Rm 12,1-2). Mas, como trabalhar o exercício da vontade divina, quando a nossa vontade deixa-se enfraquecer pela influenciação de tantos outros chamados que não são nem estão conforme a graça e o desejo divino? Como atender ao sentido primordial da vocação à santidade, dirigida a todos e a cada um, em conjunturas tão arreligiosas quanto, até mesmo, pagãs e desnorteadoras do reto agir da consciência? Como entender que a batalha travada no campo espiritual não deve estar distante das lutas cotidianas da vida no mundo? Talvez, sejam perguntas sem repostas seguras, mas, nem por isso, eliminam a inquietação do coração piedoso, que se esforça para corresponder aos impulsos da graça divina no garimpo interior das decisões amadurecidas pela exigência da fé.
Senhor Jesus Cristo, nós também queremos ser teus amigos, mas nem sempre nos damos conta da solicitude que nos pede assumir a nossa “parte de sofrimento como um bom soldado” de tua milícia; ajuda-nos, pois, a redescobrir o sagrado e perene valor de teu convite: “Vinde e vereis!”; ensina-nos a dimensão profunda de teu convite, que nos amina a correr os riscos da permanência contigo durante os dias cinzentos ou luminosos de nossa vida; durante os desafios dolorosos e martirizantes de nossa fé, do nosso amor por ti, da nossa adesão incondicional aos teus apelos de amizade sincera, reveladora das fontes eternas de tua misericórdia infinita. Senhor Jesus Cristo, companheiro sem fadiga de nossas aventuras humanas pelo exílio terrestre, indica-nos a direção, o “Caminho”; sacia-nos o coração da “Verdade” e da “Vida” que somente tu, e mais ninguém, podes favorecer-nos conhecer e experimentar em plenitude; vem encaminhar nossos extravios espirituais e aplainar os vales e montes sombrios que nos distanciam de Ti. Amém!