quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O Rei Herodes ficou alarmado

O Rei Herodes ficou alarmado 



A mansidão do menino nascido em Belém da Judeia não precisaria assustar ninguém. Ele é o rei da paz, que veio a este mundo, a fim de estabelecer o direito e a justiça entre os povos. O evangelho de São Mateus nota com surpreendente desembaraço: “O rei Herodes ficou alarmado e com ele toda Jerusalém!” (Mt 2,3). Mas, “alarmado” com que? Com o nascimento de um menino que não deveria causar muito alarde, embora tivesse sido anunciado desde os tempos antigos pelas profecias de Israel. Quem é esse menino que provoca tão violenta reação em Herodes, a ponto de, desconfiando ser destronado por ele, mandar matar crianças inocentes, com a intenção de que também o menino Jesus esteja entre eles? Maligna astúcia! Mal sabia Herodes que, antes de seu mandato assassino, o anjo do Senhor havia avisado a José para fugir com a criança e sua mãe para o Egito, permanecendo por algum tempo em terras estrangeiras.
Assim começa a estranha aventura de Deus entre os homens, com pequenos mártires e heróis que derramam seu sangue pelo menino de Belém. Portanto, ainda dentro do contexto natalino, a Igreja de Cristo celebra a festa dos Santos Inocentes, que, antes mesmo de falarem, proclamam Cristo. Comoventes são as palavras do bispo Quodvuldeus, do século V da era cristã: “Essas crianças morrem pelo Cristo, sem saberem, enquanto seus pais choram os mártires que morrem. Cristo faz suas legítimas testemunhas aqueles que ainda não falam. Eis como reina aquele que veio para reinar. Eis como já começa a conceder a liberdade aquele que veio para libertar, e a dar a salvação aquele que veio para salvar. [...] Ó imenso dom da graça! Que méritos tinham aquelas crianças para obterem tal vitória? Ainda não falam e já proclamam o Cristo. Não podem ainda mover os membros para a luta e já ostentam a palma da vitória”. É caso de reconhecermos o mistério da vida de Cristo, que faz brotar o testemunho em situações inesperadas, mesmo se constrangedora para os pais que veem seus filhos arrancados de seus braços e estrangulados impiedosamente por conta da covardia de um rei mundano. É, pois, assim, inclusive em conjunturas difíceis para os seus seguidores, que Deus arranca o louvor dos pequenos, como nos ensina o salmista: “Pela boca de crianças e bebês tu o firmaste, qual fortaleza, contra os teus adversários, para reprimir o inimigo e o vingador” (Sl 8,3).
De Herodes aos nossos dias, não é que muita coisa tenha mudado em relação à fúria dos inimigos de Cristo contra os cristãos, seus seguidores. Mas, a perseguição não intimida nenhum deles. Hodiernamente, os telejornais noticiam ataques a Igrejas cristãs na Nigéria, por fundamentalistas islâmicos. Fundamentalismo e fanatismo são duas características de atitudes desequilibradas, porque abrem as portas da selvageria e da barbárie à intolerância, como podemos ver se descortinamos o véu do tempo rasgado pelos séculos afora. Sempre nos impressionou a serenidade dos cristãos em tempos sublevados por tanta violência gratuita, sem razão aparente. Eles não revidam, embora sofram dentro da alma as angústias vividas por seu Mestre diante das injustiças que lhe foram perpetradas, mas assumem na própria carne as marcas de seu Senhor que disse: “Sereis traídos até por vosso pai e mãe, irmãos, parentes, amigos, e farão morrer pessoas do vosso meio, e sereis odiados de todos por causa de meu nome” (Lc 21,16-17); “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro, me odiou a mim. Se fôsseis do mundo, o mundo amaria o que é seu; mas, porque não sois do mundo, e minha escolha vos separou do mundo, o mundo, por isso, vos odeia. Lembrai-vos da palavra que vos disse: O servo não é maior de seu senhor. Se eles me perseguiram, também vos perseguirão; se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa” (Jo 15,18-20). Assim foi ao longo dos séculos e, ainda hoje, a história se repete na pele de muitas testemunhas vivas do amor ao Senhor. O fato é que onde morre um cristão por causa de Cristo, a semente de seu sangue derramado na terra faz brotar muitos outros. Como afirmara Constantino, o sangue dos mártires é semente de novos cristãos.
Em muitos lugares da terra, os cristãos vivem como que mergulhados na escuridão de muitas dificuldades em face das perseguições. Mas, ancorados na certeza inabalável de suas convicções mais profundas, em nome de Cristo, perseveram no combate até o fim, de forma que a sua noite seja “penetrada de luz” e “atravessada de esperança”. Como, por exemplo, não pensar em São Paulo, que de dentro da escuridão do cárcere, privado da liberdade que desejaria usufruir para o bem da pregação do Evangelho de Cristo, tem sua interioridade iluminada pela persuasão íntima ao saber em quem acreditou (2Tm 1,12)? Como não pensar em São Cipriano que, diante da coragem diante do martírio, converteu um dos carrascos que morreu com ele, no hora do extremo suplício? Como não pensar em São Maurício, que segundo a lenda, zombou de seus litores, dizendo que a água estava fria, e eles se queimaram colocando a mão dentro? Como não pensar em Santo Inácio de Antioquia, que quis ser moído como trigo no dente das feras, para testemunhar aquele que era a “caridade incorruptível” de todo o seu desejo interior, espiritual? Portanto, a caravana dos fieis soldados de Cristo é interminável. Eles sabem muito bem qual é a parte de sofrimento que lhes cabe, e vivem-no com alegria e exultação interior, para escândalo de seus expectadores incrédulos e duvidosos. São apenas alguns exemplos vagos que me vêm à memória, mas que, da eloquência de seu testemunho, podemos perceber o alcance da radicalidade de sua fé, colocando seus passos com decisão firme nos próprios passos de Cristo.
Que ninguém se engane! Os hereges modernos estão por toda parte. Há pessoas que têm ódio da Igreja apenas ao ouvir a pronúncia de seu nome, como se ela fosse responsável pelas frustrações de sua vida, pelos insucessos de sua licenciosidade e corrompida vontade de autoafirmação. Outras se enfurecem quando se encontram com um padre ou com qualquer pessoa que não tenha vergonha de professar sua fé católica em meio aos pagãos contemporâneos. Às vezes, desprezo e indiferença são a paga de uma vida colocada generosamente nas mãos de Cristo. Cães ferozes rosnam, em sinal de ameaça, com a virtude dos piedosos.
Na verdade, o comportamento dos justos incomoda a consciência dos ímpios. E essa não é nenhuma nova constatação dos conturbados tempos difíceis em que nos encontramos. Há muito tempo, um santo já gritava: “Senhor, que século nos reservastes!”. O texto que lemos na Bíblia retrata a dimensão incompreensível do desafio de uma vida santa diante de Deus, quando o furacão do mundo tenta arrastar os crentes em outra direção. Trata-se de um texto provocativo, mas verdadeiro: “Cerquemos o justo, porque nos incomoda e se opõe às nossas ações, nos censura as faltas contra a Lei, nos acusa de faltas contra a nossa educação. Declara ter o conhecimento de Deus e se diz filho do Senhor; ele se tornou acusador de nossos pensamentos, basta vê-lo para nos importunarmos; sua vida se distingue da dos demais e seus caminhos são todos diferentes. Ele nos tem em conta de bastardos; de nossas vias se afasta, como se contaminassem. [...] Vejamos se suas palavras são verdadeiras, experimentemos o que será o seu fim. Pois se o justo é filho de Deus, ele o assistirá e o libertará das mãos de seus adversários. Experimentemo-lo pelo ultraje e pela tortura a fim de conhecer a sua serenidade e pôr à prova sua resignação. Condenemo-lo a uma morte vergonhosa, pois diz que há quem o visite” (Sb 2,12-20). Na seara do mundo, o contraste ente justos e injustos, piedosos e ímpios, trigo e joio, boa semente e erva daninha, tudo isso traduz a realidade de todos os tempos.
Tento Cristo, não apenas como inspiração a uma vida reta, mas, sobretudo, como o modelo irrecusável de piedade e obediência à vontade divina, sendo também exposto a todo tipo de perseguição e maldade humana, os cristão ainda têm muito a aprender da serenidade incondicional, sem despiques ou revanches, do próprio Mestre de Nazaré que, “quando injuriado, não revidava; ao sofrer, não ameaçava, antes, punha a sua causa nas mãos daquele que julga com justiça” (2Pd 2,23). Com efeito, diante dos Herodes modernos, nem sempre nossas reações são reflexos de sua experiência interior, porque totalmente relacionada ao seu íntimo diálogo com o Pai.