terça-feira, 16 de agosto de 2011

Credo, Domine!


Credo, Domine 



O Evangelho da Samaritana (Jo 4) e do cego de nascença (Jo 9) revelam-nos atitudes de conversão, depois do reconhecimento do Senhor, com a profissão de fé, duplamente, atestada em conjunturas diferentes. São dois encontros emocionantes e comprometedores. São duas dimensões distintas de uma mesma realidade da fé: a confissão de que Jesus é o Filho de Deus, o profeta que devia vir a esse mundo (Jo 7,40). Longe dos holofotes, Jesus não era uma vedete dos “shows business” da modernidade. Não se empolgava nem se interessava muito com o fanatismo histérico de seus fãs. A histeria, como sabemos, é uma “psicopatia cujos sintomas se baseiam em conversão, e caracterizada por falta de controle sobre atos e emoções, ansiedade, sentido mórbido de autoconsciência, exagero do efeito de impressões sensoriais, e por simulação de diversas doenças” (Dicionário Aurélio). Cristo andava fora desses circuitos exagerados de admiração e aplausos.
As circunstâncias que indicam o caminho do encontro com Jesus são surpreendentes e causam profunda alegria interior, mudança de vida, atos novos de comportamentos que manifestam o tom solene da abertura à ação divina. A dinâmica do Evangelho de São João, a “águia de Patmos”, assume contornos literários diferentes dos evangelhos sinóticos. Sua preocupação, finamente, teológica, abre as perspectivas do leitor ao coração da revelação progressiva de Cristo, fundamento do processo salvífico que lhe fora confiado pelo Pai. Os episódios a que estamos aludindo, o diálogo com a Samaritana e a cura polêmica do cego de nascença, coincidem na argumentação do ato de fé que, de maneira paulatina, Cristo vai provocando nos dois personagens. A Samaritana reconhece: “Sei que vem um Messias (que se chama Cristo). Quando ele vier, nos explicará tudo. Disse-lhe Jesus: ‘Sou eu que falo contigo’” (Jo 4,25). Depois, ela “correu à cidade, dizendo a todos: ‘Vinde ver um homem que me disse tudo que fiz. Não seria ele o Cristo?’ Eles saíram da cidade e foram ao seu encontro” (Jo 4,28). Segundo Angélico Poppi, quando, no início, Jesus oferece “água viva” à Samaritana, ele está pensando na revelação do plano soteriológico do Pai. Tal anúncio tem como efeito a efusão do Espírito Santo que consente uma compreensão mais penetrante e a assimilação progressiva do mistério de Jesus. Por conseguinte, esse conhecimento conduz o crente à participação da vida divina, que Cristo tem em comunhão com o Pai. Na verdade, Cristo comunica aos crentes a vida divina que ele tem junto do Pai.
Embora os samaritanos não se entendam com os judeus, eles se demonstram mais abertos à revelação de Cristo. Ou seja, enquanto Jesus havia sido constrangido a distanciar-se da Judeia incrédula, agora, é acolhido e reconhecido como Salvador por aqueles que eram desprezados como heréticos, à maneira dos pagãos. À fé inadequada de Nicodemos (Jo 3), contrapõe-se à disponibilidade da Samaritana, que se abre à revelação do Messias e se torna sua coerente e fiel testemunha. Jesus faz-se mendicante para dar à mulher a “água viva” que jorra para a vida eterna. Portanto, o conteúdo eminentemente cristológico da narração polariza-se em derredor dos dois temas dominantes do quarto evangelho: a revelação progressiva de Cristo e a resposta de fé por parte de seu auditório. Tanto a Samaritana quanto o cego de nascença são uma indicação de que diante de Cristo não podemos ficar indiferentes. Ou estamos com ele ou contra ele. Ou nos salvamos com ele ou nos perdemos sem ele. Diante da revelação amorosa do amor do Pai por meio do Filho, o Salvador do mundo, não existe meio termo nem uma terceira alternativa. São somente dois os caminhos de nossas decisões, identificadas com um “sim” ou um “não” ao seu chamado.
No que concerne ao relato do cego de nascença (Jo 9), que causou tanta confusão por conta de um “milagre”, Angélico Poppi considera que o conteúdo teológico também está totalmente centrado sobre a pessoa de Jesus. Na realidade, mesmo que depois da realização do sinal ele desapareça da cena, as diversas reações dos atores, as controvérsias, os interrogatórios, tudo faz referimento ao taumaturgo. O mistério de sua pessoa determina uma discriminação entre os homens: um juízo de condenação para aqueles que não crêem na sua palavra e a iluminação da fé para aqueles que o acolhem. Conforme o binômio típico do caráter joanino ao dualismo luz e trevas faz contraponto o simbolismo entre iluminação e cegueira. Com efeito, Cristo mesmo se apresenta como a “luz do mundo” (v. 5). Ele foi enviado pelo Pai a fim de irradiar a luz da “verdade”. Enquanto é “dia”, isto é, enquanto dura a sua vida terrena, ele possui a missão de revelar a todos a verdade. Mas, à medida que o cego abre-se à luz da verdade, de maneira gradual, os fariseus se obstinam na sua cegueira, precipitando-se nas trevas mais densas da incredulidade. Entre aceitação e resistência, o Filho de Deus segue o caminho de sua missão na expectativa de encontrar uma resposta fiel por parte dos homens. Todavia, Ele tem consciência plena de que os homens sempre estarão vacilantes quando à intensidade de sua confiança e abandono total ao seu apelo.
Conforme a afirmação do Papa Bento XVI, “a Palavra divina ilumina a existência humana e leva as consciências a reverem em profundidade a própria vida, porque toda a história da humanidade está sob o juízo de Deus: ‘Quando o Filho do homem vier na sua glória, acompanhado por todos os seus anjos, sentar-Se-á, então, no seu trono de glória. Perante Ele, reunir-se-ão todas as nações’ (Mt 25,32-32). No nosso tempo, detemo-nos muitas vezes superficialmente no valor do instante que passa, como se fosse irrelevante para o futuro. Diversamente, o Evangelho recorda-nos que cada momento da nossa existência é importante e deve ser vivido intensamente, sabendo que cada um deverá prestar contas da própria vida”. Na consciência amadurecida do cego de nascença, Cristo é a Palavra divina por excelência. E ele deixa-se iluminar por ela, a ponto de ver, clareando dentro de si, o filete de luz que passa de sua cegueira física à plena luminosidade espiritual que lhe permite fazer, sem sombra de dúvidas, o reconhecimento da revelação do Filho de Deus diante de quem ele se encontra: ‘“Quem é, Senhor, para que eu nele creia?’ Jesus lhe disse: ‘Tu o vês, é quem fala contigo’. Exclamou ele: ‘Creio, Senhor’ [Credo, Domine]. E prostrou-se diante dele” (Jo 9,36-38). O cego o reconhece como “Filho do homem” e professa a sua fé no “Kýrios-Senhor”. De igual maneira, no final do século I, muitos judeus cristãos foram expulsos da sinagoga. Porém, ao contrário de se sentirem desencorajados, renovaram a sua fidelidade a Cristo Jesus, que no final dos tempos voltará para julgar o mundo, e a cada um de nós.
No arremate da reflexão aqui proposta, descobrimos que entre a Samaritana e o Cego de nascença, há um envolvimento pessoal com as sadias insinuações de Cristo, que tenta despertá-los, não apenas para uma atitude de fé profunda, mas, também para uma reorientação de sua vida, segundo o caminho de Deus, na intimidade com Ele. Somente os simples poderão chegar a tal reordenamento de sua vida sob a autoridade divina. Durante a travessia de nossa existência, qual estrangeiros que somos, forasteiros em “terras que não são nossas”, precisamos da luz da fé e da graça divina para nos abrirmos ao encontro com Cristo, não obstante os percalços inelutáveis de nossa hesitação e falta de firmeza para tomar a decisão certa e coerente com os apelos divinos.