quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A palavra de Deus não está algemada!

                Verbum Dei non est alligatum

                                                             

A riqueza da pregação de São Paulo sempre está associada à palavra de Deus, mesmo quando ele se encontra na prisão, totalmente impossibilitado de levar adiante o seu plano de pregação do evangelho. Depois de percorrer terras sem fim, anunciando a boa-nova de Cristo, incansavelmente sofrendo todo tipo de perseguição e ódio, também por parte dos de sua raça, São Paulo, prisioneiro de Cristo, escreveu esta pérola ao seu “filho amado” (2Tm 2,2), Timóteo: “Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado dentre os mortos, da descendência de Davi, segundo o meu Evangelho, pelo qual sofro, até às cadeias, como malfeitor. Mas a palavra de Deus não está algemada [sed verbum Dei non est alligatum]. É por isso que tudo suporto, por causa dos eleitos, a fim de que também eles obtenham a salvação que está em Cristo Jesus, com a glória eterna” (2Tm 2,8-9).
A consciência que São Paulo tem do dever da pregação do Evangelho a todos os povos, a fim de que todos cheguem ao conhecimento da verdade (2Tm 3,7), não permite que ele perca nenhuma oportunidade para cumprir o seu papel de evangelizador. Nem mesmo as algemas serão capazes de tolher-lhe a coragem de levar e espalhar aos quatro ventos a novidade de Cristo por quem ele consumiu a vida inteira, depois de sua conversão ou “reversão”, como diria o Cardeal Maria Martini. Sim, os profetas podem ser perseguidos, os cristãos, martirizados, mas, absolutamente, nada poderá tornar a palavra de Deus prisioneira da hipocrisia dos séculos, dos calabouços físicos que limitam a liberdade dos discípulos de Jesus. Contra toda covardia e perseguição, ela continuará sendo o canto livre de Deus que rebenta nos lábios, no coração e na vida dos verdadeiros seguidores de Cristo, inclusive, em momentos cruciais de aparente derrota e frustração. A palavra de Deus é vida na morte; superação na derrota; luz nas trevas; segurança no caminho; força na fraqueza; contentamento na tristeza; enfim, ela é o reverso inesperado diante dos obstáculos impostos à alegria que brota do amor a Cristo e da entrega incondicional da pregação de seu santo evangelho. Escrevendo a Timóteo, São Paulo vê bem clara a razão que motiva sua exortação ao amigo: “Lembra-te de Jesus Cristo!”. De fato, em meio às contrariedades sofridas por conta do motivo primeiro de sua fé, Cristo deve ser o centro de suas motivações mais profundas. Por isso que Cristo nunca deve ser perdido no alcance da visibilidade dos cristãos (Hb 12).
Cristo não é fruto de uma fantasia histórica ou de uma lenda criada para a consolação desesperada de um pequeno grupo de fiéis. Tampouco, ele permaneceu no túmulo exposto à corrupção de seu corpo. Quantas mentiras já foram espalhadas ao longo dos séculos para tentar destruir a fé inabalável dos cristãos! Quantos filmes já não foram apresentados, tentando ridicularizar a pureza da fé cristã católica! Celebrando a vida dos mártires de Cristo e a vitória dos santos, a Igreja, ainda hoje, e pelos tempos afora, proclama, com a mais alta eloquência e convicção, a certeza da ressurreição de Cristo, como afirma São Paulo. De que Jesus Cristo São Paulo fala a Timóteo? Sem dúvida, daquele que “ressuscitou dos mortos” para não mais morrer, embora ele seja da descendência de Davi, segundo a carne [sua humanidade]. Impossibilitado de seguir suas viagens por que prisioneiro, a criatividade paulina transborda de amor por Cristo em suas cartas, cuja motivação nada mais é do que fazer com que todos os “eleitos” participem da “glória eterna” de Jesus, que os lavou com seu sangue derramado na cruz. Tendo sido “alcançando por Cristo”, São Paulo não quer deixar fora da salvação nenhum daqueles aos quais possa chegar a boa-nova de Jesus, o único salvador de nossa humanidade. Impressiona-nos sua intrepidez, sua ousadia evangelizadora num mundo de recursos tão limitados, se comparado às portas que a modernidade escancarou às múltiplas formas e possibilidades de evangelização, como por meio da internet. Com que facilidade a palavra jogada no redemoinho da era cibernética contemporânea chega a tantos leitores, e a tantos outros interlocutores!. Mesmo se, talvez, refreada pelo pouco impacto da oratória desprovida da emoção do emissor, ela – a palavra – também tem sortido efeito em muitos corações. Quantos, por exemplo, tem acesso aos textos que escrevo sem nem sequer me conhecerem? Como todos não conhecemos São Paulo, mas, nem por isso, sua palavra fica sem eficácia no seio da humanidade sedenta de Deus.
No garimpo das banalidades modernamente hedonistas, ainda há espaço para a pregação do evangelho de Cristo. Enganam-se aqueles que pensam que o Cristianismo agoniza, às vascas da morte, pela indiferença do mundo materialista e autossuficiente, dissonante quanto às questões ligadas a Deus e à religião. Há muita gente medíocre e hipócrita, que tenta separar a fé da religião ou Cristo da Igreja, como se a fé se sustentasse por si mesma, fora do horizonte da vida da comunidade eclesial que Cristo fundou sob a liderança cronológica, mas, também espiritual, de Pedro!. Deus quis salvar-nos em comunidade, e a fé autêntica é vivida em comunhão com os irmãos. Portanto, separar a fé da religião significa esvaziar completamente o sentido daquilo que Deus mesmo, em pessoa, por meio do Filho, quis fazer ao “religar” a criatura perdida distante dele à sua própria intimidade originária. E, mesmo que a Igreja não se identifique com a plenitude do alcance do Reino de Deus entre nós (houve um tempo em que se afirmava a crítica irônica de que Cristo anunciou o reino e apareceu a Igreja!!), enquanto instituição terrena e temporal, caminheira em direção à comunidade do céu, ela é instrumento de salvação para todos, não obstante os pecados de seus filhos infiéis e traidores. Se, por um lado, o pecado limita a força e a transparência do testemunho cristão, por outro, em nada, é ferida a essência da salvação trazida por Cristo na operosidade intrínseca ao seu mistério salvífico, redentor. E é dessa certeza inquebrantável que se alimenta a energia interior que queima, de modo incessante e devorador, no coração de São Paulo.
Falando de Timóteo, a quem São Paulo escreveu, o Papa Bento XVI lembra-nos: “Timóteo é um nome grego que significa ‘que honra a Deus’. [...] aos olhos de Paulo gozava de grande consideração, apesar de Lucas não se deter em contar tudo o que se refere a ele. De fato, o apóstolo o encarregou de missões importantes e viu nele uma espécie de alter ego [outro eu] como se pode comprovar pelo grande elogio que lhe faz na Carta aos Filipenses: ‘ele é o único que sente como eu (isópsychon), e se preocupa sinceramente com os problemas de vocês’(2,20)”. Não apenas Timóteo é alguém da confiança de São Paulo, mas, ele vive com serenidade a sua fé, edificando outros irmãos, de modo a tornar-se importante mensageiro do Evangelho de Cristo. Assim, tanto para São Paulo quanto para Timóteo, a quintessência do pensamento incisivo da evangelização fundamenta-se no amor ao seu Senhor e, por conseguinte, na vontade de que ele seja conhecido por todos. Não importam as dificuldades objetivas ou subjetivas, ventiladas pelas artimanhas dos inimigos da Igreja, mas importa – isso sim – que ela floresça sempre mais no canteiro do mundo exalando “o bom odor de Cristo”, cujo papel deveria ser vivido com mais ânimo e disposição por todos os cristãos, sobretudo, pela pregação testemunhal do evangelho. De fato, São Paulo expressa o seu louvor, dizendo: “Graças sejam dadas a Deus, que por Cristo nos carrega sempre em seu triunfo e, por nós, expande em toda parte o perfume de seu conhecimento. Em verdade, somos para Deus o bom odor de Cristo, entre aqueles que se salvam e aqueles que se perdem; para uns, odor que da morte leva à morte; para outros, odor que da vida leva à vida. E quem estaria à altura de tal missão? Não somos como aqueles que falsificam a palavra de Deus; é antes, com sinceridade, como enviados de Deus, que falamos, na presença de Deus, em Cristo” (2Cor 2,14-17).
Do ambiente sombrio e brumoso da prisão envolvida pela penumbra, a claridade da intuição divina na mente de São Paulo venceu as barreiras da masmorra e se elevou pelos quadrantes da terra, chegando a lugares, longínquos e distantes, até então, inimagináveis. Ela chegou até nós e brilha qual luminosa esperança na justa inquietação de nosso intenso desejo de sincera conversão a Cristo, tanto permitindo que ele seja formado em nós quanto vencendo a teimosa caduquice do nosso velho homem interior.