quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Diante do Espelho

Diante do Espelho

 

 


Diante do espelho, todos os dias, estava uma senhora que se maquiava e se pintava. Sua filha, uma criança muito curiosa, perguntou-lhe certa ocasião: “Mãe, por que a senhora permanece, sempre, diante do espelho a se pintar?”. A mãe respondeu-lhe prontamente: “Para ficar mais bonita!!!”. Ao que a criança, incontinenti impôs outra questão, ainda mais contundente: “E por que não fica?”. Ainda bem que com a vida espiritual a situação é diferente em relação às exigências físicas e visíveis de quem nos vê, e nos contempla.
São Paulo, o grande Apóstolo de Jesus Cristo, judeu inteligente e extremamente radical no seguimento de seu Senhor e Mestre, apresenta-nos uma argumentação bastante oportuna e convincente para o que queremos enfatizar no desdobrar da reflexão a seguir: “Por isto não nos deixamos abater. Pelo contrário, embora em nós o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior se renova dia-a-dia. Pois nossas tribulações momentâneas são leves em relação ao peso da eterna glória que elas nos preparam até o excesso. Não olhamos para as coisas que se veem, mas para as que não se veem; pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno” (2Cor 4,16-18).
Apoiados por essa frase lapidar do Apóstolo, parar para recomeçar é o convite que faria a tantos quantos se sentem desanimados e até certo ponto desencorajados diante do caminho a seguir, em virtude, sobretudo, daquilo que, até hoje, foi se desencadeando e se descortinando diante do horizonte de sua própria vida, de sua própria existência. Pare, agora, e pense que é possível recomeçar, a despeito de tudo aquilo que parece ter sido perdido de suas boas intenções e das possibilidades concretas de realizações. Há um adágio que diz que o homem só cresce quando é capaz de superar a si mesmo. E quantos não são aqueles que, talvez, agora, estejam precisando disso, quer dizer, de superar a si mesmo?
Faça uma retrospectiva de sua contingência humana, de sua história, de seus dias passados até o momento presente, de suas virtudes e de seus limites, de suas carências e de suas possibilidades, de seus sucessos e de seus fracassos, de suas vontades e de suas reais necessidades, de suas quedas e de suas motivações para soerguimento, de seus afetos e de seus desgostos afetivos, enfim, de tantas outras situações propriamente suas, que só você conhece, que só você sabe, que apenas você viveu nos dias ocultos de sua vida de outrora e longe do espelho do momento presente que aponta para a possibilidade de retoques e motivações de renovação. Certamente, tal reflexão poderá trazer sementes não contraproducentes de realização e de autoestima, tão necessárias e urgentes para uma maior identificação de si mesmo. Refletir sobre isso poderá não ser tão fácil, mas lembre-se de que tudo depende de sua capacidade de autodeterminação, de sua lucidez ou de sua demência ao contemplar corajosamente os altos e baixos de si próprio. Depois, “nenhum explorador faz viagens tão longas como quem desce ao mais profundo do próprio coração” (J. Green). Veja os santos: a única diferença entre eles e nós está na determinação com que decidiram viver a radicalidade de sua vida. E, ao lado dessa determinação, vem a alegre e confortante presença d’Aquele que tudo sabe, que tudo conhece (Sl 139; Jó 7,17-20). Na verdade, é Ele quem vai conduzindo nossa história, quer queiramos ou não. “N’Ele nos movemos, existimos e somos”, disse São Paulo. Nada escapa ao raio de seu olhar e de sua capacidade onipresente de tudo saber, de tudo penetrar, de tudo escarafunchar, de modo tão íntimo e tão profundo que nem sequer podemos perceber ou sentir a insuspeitável leveza de sua presença: Deus, “mais íntimo a nós do que nós de nós mesmos” (Santo Agostinho). Assim, sem os ditames de uma consciência doentia, que se debate diante de suas próprias incongruências ou incoerências inelutáveis, marchamos infrenes e tranquilos para as águas mais profundas de nosso próprio autoconhecimento: “Conhece-te a ti mesmo!”.
Olhando atrás, como tem sido os meus dias passados? Onde parece ter acontecido algo que me levou para tão profunda “desorientação ontológica” de que parece não mais poder me reconduzir aos páramos serenos da identificação de mim mesmo? Até onde minha vida parecia “nos conformes”, e eu não me dei conta de que ela me arrastava, de modo inexorável, para o abismo da dormência inconsciente a que me deixei conduzir, quiçá, para provar do sabor amargo de uma vida que parece deteriorada e sem chance de reconstrução? Esse pode até ser o pensamento pressuroso e irrefletido de quem se encontra no marasmo, incontrolável e latejante, da inquietação de si mesmo. “Senhor, tu nos criaste para ti e o nosso coração estará inquieto enquanto não repousar em ti!” (Santo Agostinho). Mas não é verdade! – Refiro-me ao “pensamento pressuroso e irrefletido”. Todos podemos recomeçar. Todavia, a atitude do recomeço tem a ver com a boa vontade de cada um. Eu não posso pelo outro, o outro não pode por mim. Então, cada um deve ser senhor de suas próprias capacidades e de seus próprios atos. Isso não significa dizer que outros não possam nos ajudar. Tal asseveração seria o fechamento absurdo e ofegante de tantos caminhos de solidariedade entre os irmãos e a mais completa renutação ao que de mais humano podemos encontrar nos laços da fraternidade que podemos usufruir do relacionamento e da reciprocidade. Mesmo assim, esta é uma verdade que não contradiz o princípio escolástico que, mais contundentemente, caracteriza o ser das pessoas: la persone c’est la dernière solitude de l’être! – “A pessoa é a última solidão do ser”. Ou seja, em palavras mais simples, cada pessoa é a expressão de um abismo quase inatingível e impenetrável. Digo “quase inatingível e impenetrável” porque já vi alguém morrer por se encerrar, desgraçadamente, no mais profundo abismo do fechamento de si mesmo, no inacessível mundo da depressão do qual ninguém, repito, ninguém conseguiu chegar e estender-lhe a mão, como auxílio necessário, na hora mais trágica e grave de seu solitário isolamento. Eu diria que não se trata do tratamento médico, especificamente dito, como poderia parecer aos espíritos menos argutos e menos perspicazes à própria estrutura psicológica da natureza humana, mas trata-se de uma impreterível força de vontade e de uma determinação intrinsecamente pessoal, tão intrínseca ao caráter do indivíduo quanto à própria vontade de sobrevivência de quem se encontra mergulhado num profundo poço em derredor do qual não alcança absolutamente nada a que se apegar se não lhe vier, em socorro, a instintiva criatividade para sair, quase sozinho, da circunstância cansada e perturbadora em que se apercebe aperreado.
Quando se caminha à beira do abismo e se dá conta do fato, ainda que seja de um precipício fascinante e atraente, e não assombroso e trepidante, duas atitudes ou possibilidades poderiam se apresentar: uma centrípeta e outra, eu diria, centrífuga. Explico-me: trata-se de duas forças contrárias, antagônicas ou paradoxais. A primeira atrai o indivíduo para o centro do abismo, e a segunda faz uma digressão, desviando-o do meio do precipício. Assim, em meio à onda revolta do redemoinho da inevitável confusão, é preciso ter muita coragem, lucidez e convicção, bem fundamentadas, na vontade de sobrevivência inequívoca da situação limítrofe até o momento apresentada, norteando-se pela bússola da alegria e da esperança de que nem tudo está perdido. A perdição seria a ideia mefistofélica e nefasta de que não há mais jeito e que, por isso mesmo, devemos nos dar por vencidos e, desanimados, cruzar os braços esperando o pior acontecer. Mas não! Embora o homem seja esta mistura estranha de aceitação e recusa, de aprovação e desaprovação, de querer e não querer, de tagarelice e silêncio, de plenitude de vida e de morte, de encantos e desencantos, de arroubos de entusiasmo e de paralisias de frustração, vale a contemplação contínua e perene do encanto da renovação da vida, a cada amanhecer que surge em derredor de nós na solenidade intensa do milagre de cada instante. E dessa festa radiante da luz incandescente da vida que acompanha o nascimento de cada novo segundo, participa todo o nosso ser, reconciliado com o passado e pleno de confiança no otimismo do porvir, na trajetória desenfreada da existência, emoldurando, então, os acontecimentos da efêmera vida “que, um dia, enfim, descolorirá”, perdendo o brilho tosco e opaco do atual espelho, cuja imagem, não mais retocada nem reconstruída, projetar-nos-á no esplendor fulgurante da realidade, tal como ela é, desnuda e desvencilhada dos véus da matéria e das rugas do tempo que a eternidade fará ruir, instantaneamente, quando “toda a aparência do palco ilusório” da realidade das coisas do mundo visível desta terra desabar.