terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ego sum Pastor Bonus

Ego sum Pastor Bonus 



No Evangelho de São João, Cristo apresenta-se, dizendo: “Eu sou o bom Pastor: o bom pastor dá a sua vida pelas suas ovelhas. O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê o lobo aproximar-se, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as arrebata e dispersa, porque ele é mercenário e não se importa com as ovelhas. Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas me conhecem, como o Pai me conhece e eu conheço o Pai” (Jo 10,11-14). Cristo tem consciência plena de seu papel de pastor diante das ovelhas e sabe que todos aqueles que estão interessados apenas em abusar e se aproveitar das ovelhas, explorando-as, não correspondem à vontade de Deus, que é o verdadeiro Pastor do povo. Por isso, já no Antigo Testamento, os profetas criticaram, duramente, o comportamento daqueles que pouco levaram em consideração o bem incondicional das ovelhas.
São palavras duras, mas verdadeiras, dirigidas aos pastores de Israel: “Pastores, assim diz o Senhor Iahweh: Ai dos pastores de Israel que apascentam a si mesmos! Não devem os pastores apascentar o seu rebanho? Vós vos alimentais com leite, vos vestis de lã e sacrificais as ovelhas mais gordas, mas não apascentais o rebanho! Não restaurastes o vigor das ovelhas abatidas, não curastes a que está doente, não tratastes a ferida da que sofreu fratura, não reconduzistes a desgarrada, não buscastes a perdida, mas dominastes sobre elas com dureza e violência. Por falta de pastor, elas dispersaram-se e acabaram por servir de presa para todos os animais do campo; e se dispersaram” (Ez 34,2-6). A voz do profeta expressa a própria censura divina com a mesma autoridade do Senhor. Um bafio terrível de corrupção também embotou o coração dos pastores de Israel. No contexto bíblico, a metáfora de relacionamento entre o pastor e as ovelhas, é profundamente rica e demonstra o nível de intimidade entre Deus e o seu povo, embora se reproduza de maneira limitada e imperfeita entre os líderes de Israel e os seus súditos. Daí a censura do profeta Ezequiel. Segundo o Comentário Bíblico Africano, que abre as portas da compreensão bíblica dentro dos circuitos culturais e religiosos de seu território, “no Antigo Oriente Médio era comum, governantes ou reis serem chamados de pastores. Hamurabi e seus sucessores assírios e babilônios ‘definiam o seu papel com uma série de títulos pastorais, e um provérbio babilônico dizia: ‘um povo sem rei (é como) um rebanho sem pastor’ (NICOT). Um provérbio luganda (Uganda) expressa a mensagem de Zacarias 13,7, ‘Fere o pastor, e as ovelhas ficarão dispersas, da seguinte maneira: ‘Quando o galo morre, há confusão entre as galinhas’”. Diante da infidelidade dos pastores de Israel, Deus mesmo se encarregará de cuidar de suas ovelhas. Na verdade, Deus é o pastor de Israel por excelência. Com efeito, “a ideia teológica do AT acerca do bom pastor que alimenta o seu rebanho com a verdade de Deus (Jr 3,15) adquire proeminência no NT (Jo 10,11)”.
Eis a continuação do texto de Ezequiel: “Com efeito, assim diz o Senhor Iahweh: Certamente eu mesmo cuidarei do meu rebanho e dele me ocuparei. Como o pastor que cuida de seu rebanho, quando está no meio de suas ovelhas dispersas, assim cuidarei das minhas ovelhas e as recolherei de todos os lugares por onde se dispersaram em dia de nuvem e escuridão” (Ez 34,11-12). Seria interessante a leitura de todo o capítulo 34 do profeta Ezequiel. Mas, o fato é que ao longo da história da revelação bíblica de Deus ao seu povo, Ele sempre se mostrou próximo, não obstante todas as dificuldades por que Israel passou, muitas vezes, sentindo-se abandonado. Não podemos nos esquecer de que o profeta Ezequiel viveu a dura experiência do exílio na Babilônia sob a opressão de Nabucodonosor, que assediou Jerusalém no ano 598 a.C., e levou ao cativeiro a elite intelectual da cidade de Davi. Foi uma experiência duríssima para Israel que, na realidade conflituosa em que se encontrava, esperava a chegada do Messias prometido pela descendência de Davi. No entanto, Deus é sempre surpreendente em todas as suas iniciativas para salvar o seu povo de situações em limites radicais. E isso também vale para os tempos modernos, para todos os tempos, enquanto durar a existência da pobre vida humana sobre a terra. De fato, bem que as ovelhas perdidas do mundo moderno poderiam reencontrar o caminho que as reconduz ao Bom Pastor que é Cristo, ao contrário de aprovar projetos de leis, legitimando situações de comportamentos aberrantes, isto é, que vão contra os anseios de uma vida plena como a que Cristo quis e quer oferecer a todos! Bem que as ovelhas perdidas do mundo moderno poderiam rezar com o salmista que diz: “O Senhor é o meu pastor e nada me falta. [...] Sim, felicidade e amor me seguirão todos os dias da minha vida; minha morada é a casa de Iahweh por dias sem fim” (Sl 22,1.6). Mas, como isso seria possível se o Bom Pastor tem sido tão ridicularizado pelas bestas do apocalipse moderno que desconsideram a possibilidade de um Deus salvador perto de seu povo? Bem que as ovelhas perdidas do mundo moderno poderiam sentir-se acolhidas pelo Bom Pastor, cujo amor incondicional não é uma imposição – embora aberto ao sacrifício, como foi seu exemplo – mas, um convite sereno e livre ao refrigério de sua companhia segura, mesmo se pelos vales tenebrosos da sombra da morte, onde nenhum mal poderia atingi-las, pois seu bastão e seu cajado deixam-nas tranquilas (Sl 22,4).
O problema é que o homem, durante todos os momentos históricos da civilização, sempre teve dificuldade para entender e aceitar que ele não é senhor de si mesmo: nem de sua vida, nem de seus supostos bens materiais – a falsa segurança com que tenta apoiar o fugidio presente que se esvai na inexorabilidade incontrolável do trepidar definitivo do último momento – nem do suspiro inconsciente de suas artérias e vísceras, ou seja, de nada. A sua “desorientação ontológica” atirou-o fora da harmonia original com que Deus o criou, “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26), precipitando-o no desarranjo interior do distanciamento de Deus. Ferido pelo pecado, que poderia ser traduzido simplesmente pelo ato insubmisso da desobediência primitiva, Deus o ajudou a reconquistar o paraíso perdido pelo pela morte do Filho, o Bom Pastor de que estamos falando, a fim de que o homem pudesse refazer, ou melhor, ser refeito na integridade desfeita da profundidade mais radical de seu ser, de sua essência ontológica. Por isso que o Bom Pastor olha para todos os homens com piedade e amor, oferecendo-lhes o dom mais precioso de si mesmo, isto é, a sua própria vida, a vida em abundância, que brota da generosidade de sua entrega total: “O Bom Pastor dá a sua vida pelas suas ovelhas” (Jo 10,11).
No dia do Bom Pastor, no IV Domingo da Páscoa, a mensagem do Papa Bento XVI para o 48o Dia Mundial de Orações pelas Vocações, lembra-nos que: “A arte de promover e cuidar das vocações encontra um luminoso ponto de referência nas páginas do Evangelho, onde Jesus chama os seus discípulos para O seguir e educa-os com amor e solicitude. Objeto particular da nossa atenção é o modo como Jesus chamou os seus mais íntimos colaboradores a anunciar o Reino de Deus (cf. Lc 10, 9). Para começar, vê-se claramente que o primeiro ato foi a oração por eles: antes de os chamar, Jesus passou a noite sozinho, em oração, à escuta da vontade do Pai (cf. Lc 6, 12), numa elevação interior acima das coisas de todos os dias. A vocação dos discípulos nasce, precisamente, no diálogo íntimo de Jesus com o Pai. As vocações ao ministério sacerdotal e à vida consagrada são fruto, primariamente, de um contato constante com o Deus vivo e de uma oração insistente que se eleva ao ‘Dono da messe’ quer nas comunidades paroquiais, quer nas famílias cristãs, quer nos cenáculos vocacionais”. Nesse sentido, o Santo Padre exorta todas as comunidades cristãs ao incentivo vocacional, enquanto proposta de imitação de Cristo, Bom Pastor, pelos candidatos à participação no seu Sacerdócio ministerial. A intimidade com Ele é o primeiro passo seguro do amadurecimento vocacional e do sentido profundo da resposta que Ele espera de seus seguidores mais próximos.