segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Carta Magna Divina

Carta Magna Divina 



Geralmente, costumamos dizer que a Bíblia é a “carta magna” que Deus escreveu à humanidade, a fim de poder orientar os caminhos espirituais na direção do encontro profundo com Ele. De fato, o homem foi criado à sua imagem e semelhança (Gn 1,26), participando de alguns privilégios e prerrogativas que fazem parte de sua própria natureza divina, tais como a liberdade, a inteligência e a vontade. No entanto, esse projeto original da benevolência divina foi contrariado pela rebeldia da desobediência humana. Assim, a obediência à Palavra de Deus é uma maneira pela qual o homem pode reconquistar a intimidade perdida no paraíso.
Na verdade, transcorridos tantos séculos diante do processo criacional divino, ainda hoje, mesmo que os homens não se reconheçam como criaturas, por canta de sua arrogância e petulância imbecil, Deus nunca deixou de ser o mesmo, nunca deixou de ser quem ele é, ou seja, o Criador bendito de tudo o que existe. De fato, a existência do Todo-poderoso independe da vontade de quem quer que seja. Uma constatação curiosa é o fato de que, não obstante todos os acintes de rebeldia do homem, insubordinado e com espírito de autossuficiência, os mandamentos divinos, contidos na Bíblia sempre são atuais e válidos para todos os seus filhos. Sim, mais do que criaturas divinas, nós somos filhos de Deus, por adoção, pelo fato de que Cristo Jesus é o seu Filho por excelência, o Unigênito. Por nossa vez, participamos da filiação divina por mediação de Cristo Jesus. Com efeito, “Ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por Jesus Cristo, conforme o beneplácito da sua vontade, para louvor e glória da sua graça com a qual ele nos agraciou no Amado. E é pelo sangue deste que temos a redenção, a remissão dos pecados, segundo a riqueza de sua graça, que ele derramou profusamente sobre nós, infundindo-nos toda sabedoria e inteligência, dando-nos a conhecer o mistério da sua vontade, conforme a decisão prévia que lhe aprouve tomar para levar o tempo à sua plenitude: a de em Cristo encabeçar todas as coisas, a s que estão nos céus e as que estão na terra” (Ef 1,5-10). Com muita perspicácia e intuição teológica, São Paulo coloca-nos dentro do profundo mistério com que fomos salvos em Cristo, o nosso bendito Salvador.
A salvação não nos é concedida por méritos próprios, por mais que nossa racionalidade consiga expressar-se pelo dom da dialética e do convencimento. Por exemplo, há teorias espíritas, segundo as quais a criatura humana, pelo expediente sucessivo de reencarnações, pode regenerar-se e chegar ou atingir a perfeição. Tal teoria contraria, radicalmente, a validade cristã da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, por quem podemos ser salvos. Não há reencarnação possível que possa conceder-nos o dom supremo da intimidade com Deus. Se assim o fosse, cairia por terra todo o mistério da história da salvação que culmina na Encarnação do Filho de Deus, homem entre os homens, mas, também, Deus mesmo concretizando a manifestação sublime de seu incondicional amor por todos nós. Tal verdade de fé foi transmitida pessoalmente pelo Filho de Deus, que sempre agiu em nome de seu Pai bendito. E o grande milagre da novidade de sua mensagem é o fato de sua ressurreição dos mortos. Profundo e inaudito mistério!. Quem o poderia elucidar plenamente senão pelo dom da fé e adesão à sua verdade histórico-salvífica? Pena que nossa petulância dialética ou científica pense não precisar de Cristo para chegar a Deus. E o retrato preto e branco dessa constatação está fortemente evidenciado pelo modo como Deus está desaparecendo do tecido social. Com Deus longe das universidades, detentoras do saber, sem nada poder criar, senão por inspiração no achado da Criação divina, o homem vai procurando, às apalpadelas, o rumo de sua desorientação sem o timoneiro seguro de seu destino.
A Bíblia pode ser a porta da esperança aberta, a fim de que possamos reorientar a vida, a sociedade, a violência absurda, que agride a dignidade humana nas incontroláveis espirais periféricas da convivência. A Bíblia não é uma palavra vazia, sem sentido. Pelo contrário, por meio da palavra é Deus mesmo quem se revela ao longo de uma trajetória envolvente e empolgante que marca, definitivamente, a história de um povo, o povo da Bíblia – o Povo do Antigo e do Novo Israel, presente na Igreja de Cristo. Tudo o que a Bíblia contém, inclusive, os fatos violentos e ininteligíveis, faz parte da experiência da revelação de Deus ao seu povo. Por isso que a compreensão da Bíblia não é de fácil acesso a todos, ela não é de “interpretação particular”. Cristo confiou à autoridade de sua Igreja o poder de ler e interpretar as Sagradas Escrituras. Eis o pensamento de São Pedro, escrito há quase dois mil anos, e, no entanto, tão válido quanto verdadeiro para todos os tempos, referindo-se à palavra profética: “Temos também por mais firme a palavra dos profetas, à qual fazeis bem em recorrer como uma luz que brilha em lugar escuro, até que raie o dia e surja a estrela d’alva em nossos corações. Antes de mais nada, sabei isto: que nenhuma profecia da Escritura resulta de interpretação particular, pois que a profecia jamais veio por vontade humana, mas os homens impelidos pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus” (2Pd 1,19-21).
Recentemente, isto é, há um ano – justamente no dia 30 de setembro do ano passado, memória de São Jerônimo (347-420) – o Santo Padre, o Papa Bento XVI, publicou um documento muito valioso e digno de leitura, sobre “a palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”. São Jerônimo teve a preocupação de traduzir a Bíblia para o latim, tornando, assim, o texto mais conhecido e próximo do povo. Quando fui a Israel, em 2003, eu tive o privilégio de concelebrar a santa missa na gruta onde São Jerônimo viveu durante 28 anos, realizando seus trabalhos de tradução de todos os livros da Bíblia em Belém, na Judeia. De fato, uma experiência singular, poder ver e sentir de perto o ambiente sagrado que despertou no coração de São Jerônimo o desejo de tornar mais conhecida a palavra de Deus. Cristo nasceu em Belém, como também Davi, o maior dos reis de Israel. E a Bíblia toda inteira está marcada pela sua presença, semeada em cada situação de sofrimento e esperança vivida pelo povo da Bíblia até que despontou, qual luz vindo do alto, o Salvador da humanidade, anunciado pelas Escrituras. Tanto que ficou famosa a frase de São Jerônimo: “Ignorar as [Sagradas] Escrituras é ignorar Cristo, porque aquele que não conhece as Escrituras não conhece o poder de Deus e a sua sabedoria”. Graças ao trabalho de São Jerônimo – e, mais tarde, também, de Lutero, preocupado em traduzir a bíblia para o povo alemão – espalhou-se no meio do povo de Deus o contato direto com a Bíblia. Uma tarefa especial feita na Igreja de Cristo, a qual São Jerônimo tanto amava.
Voltando ao documento do Papa Bento XVI, mesmo quando Deus parece silenciar, ele nada mais faz do que prolongar suas palavras no silêncio contemplativo de sua voz. Desse modo, a palavra de Deus parece não trazer todas as respostas de que precisamos para clarear nossas dúvidas. Falando da experiência do abandono de Cristo pelo Pai, o Romano Pontífice afirma: “Esta experiência de Jesus é sintomática da situação do homem que, depois de ter escutado e reconhecido a Palavra de Deus, deve confrontar-se também com o seu silêncio. É uma experiência vivida por muitos Santos e místicos, e que ainda hoje faz parte do caminho de muitos fiéis. O silêncio de Deus prolonga as suas palavras anteriores. Nesses momentos obscuros, Ele fala no mistério do seu silêncio. Portanto, na dinâmica da revelação cristã, o silêncio aparece como uma expressão importante da Palavra de Deus” (Verbum Domini, n. 21). Palavra e silêncio são duas faces da mesma revelação divina que permite deixar ao homem o fascínio pelo não totalmente compreensível. Deus é mesmo assim: quando se revela ainda se esconde no mistério profundo de seu ser.
Somente “por [meio de] Cristo, com Cristo e em Cristo”, poderemos ver a plenitude da revelação divina na Palavra Encarnada de sua humanidade. Aproveitemos, pois, o mês da Bíblia para conhecer mais o desígnio de Deus revelado na palavra, a fim de que Cristo, a Palavra obediente por excelência, ajude-nos também o dom precioso da obediência à Palavra divina.