quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A Excelência da morte de Cristo

A excelência da morte de Cristo



A beleza ou excelência da morte de Cristo sobre a cruz, poderíamos dizer, brota do aspecto sublime de sua divindade não atingida pela morte humana. Como é belo podermos aprofundar e intuir mais intensamente os segredos da morte do Filho de Deus!. Como é belo compreendermos um pouco mais o sentido da cruz com que nos benzemos – ou nos persignamos – em tantos momentos da nossa vida!. A literatura cristã jamais se cansará de debruçar-se sobre o ícone do Crucificado!. Jamais esgotará a riqueza de seu mistério, de sua indecifrável beleza!. E sempre atrairá o olhar dos incrédulos aos encantos místicos de sua perenidade.
A humanidade de Cristo atravessada pelo sofrimento e pela dor está plena de imortalidade. Da imortalidade divina, que não veio ao mundo para acabar-se nas incongruências devastadoras do pecado. No dia catorze de setembro, a Igreja celebra a Exaltação da Cruz de Cristo para a qual devemos elevar os nossos olhares, a fim de vencermos as correntezas do mundo com Aquele que disse: “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem, eu venci o mundo” (Jo 16,33). Desse modo, com o olhar fixo em Jesus (Hb 12), podemos entender melhor o sentido do pensamento de Santo Agostinho: “Ninguém poderá atravessar o mar deste século [isto é, deste mundo] se não for carregado pela cruz de Cristo”. De fato, como diz o profeta Isaías, “eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si, as nossas dores que ele carregava” (Is 53, 4). Mesmo reconhecendo que “o Cristianismo não descobriu a cruz”, um autor moderno, Anselm Grün, considera o seguinte: “Independentemente da morte de Jesus na cruz, ela já é um sinal de salvação, um sinal que nos indica a verdadeira vida, que deseja nos mostrar como a vida humana pode dar certo. Em Israel, o ‘T’ é um sinal de salvação e proteção. Assim diz Ezequiel 9,4: ‘Javé falou com ele: ‘Percorra a cidade de Jerusalém e marque com um T a testa de todos os homens que estiverem se lamentando e gemendo por causa das abominações que se fazem no meio dela’. Quem está selado com o T, será preservado da aniquilação. Os cristãos primitivos referem-se a esse versículo para explicar por que marcam a testa com o sinal da cruz. O sinal da cruz que os cristãos desenham sobre suas testas, é um selo escatológico, um sinal de salvamento quando o mundo chega a seu fim, e um sinal de posse, propriedade, proteção e consagração. Quem se benze com a cruz pertence inteiramente a Cristo, consagra-se a ele e experimenta a partir dele proteção em todas as aflições desse tempo”.
Apesar da recusa dos sinais sagrados, a figura do crucifixo é de um valor fundamental para os cristãos, pelo fato de ter se tornado instrumento de salvação. Sobre a cruz, morreu Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Salvador da humanidade inteira, não somente dos cristãos, mas de todos os povos, raças e nações. Mais ainda: pelo fato de ele ser o salvador universal, seu gesto salvífico atravessa os séculos, de geração em geração, atingindo o último dos viventes, e, de igual maneira, retroage pelo tempo afora, chegando até Adão. É que o ato de Cristo sobre o altar da cruz não está preso às circunstâncias temporais do acontecimento em si. Todavia, ele se desdobra, misteriosamente, abarcando todo o arco da história da civilização humana. A ação de Cristo é um ato eterno. Por isso que dizemos que sua própria mãe também foi salva em previsão dos méritos de Cristo, o seu divino Filho. Então, ninguém precisa mais se esforçar para ser salvo? Calma, aí! Também não vamos exagerar. Nossa teologia não é protestante. Ela não nasce da concepção luterana, em que basta a graça – “sola gratia” – para que a pessoa seja salva. Foi Santo Agostinho quem asseverou: “Quem te criou sem ti, não te salva sem ti!”. Embora a graça de Cristo seja transbordante na gratuidade de seu amor, nós, por nossa vez, devemos dar nosso assentimento ao seu projeto salvador. Olhar e abraçar a cruz de Cristo significa entrar no mistério que envolve toda a nossa existência.
Ninguém pode fugir da realidade da cruz que perpassa os conflitos do quotidiano. Segundo nosso autor, Anselm Grün – estudando São Justino – esse santo “vê a cruz realizada na forma do ser humano de braços abertos. A cruz é uma imagem para a união dos opostos e, justamente assim, uma imagem para o ser humano que, dentro de si, não é uniforme, inequívoco e coerente, mas cheio de contradições, porque reúne dentro de si espírito e matéria, anjo e animal, ser humano e Deus. Somente quando aceita a estrutura da cruz, o ser humano torna-se inteiramente ele mesmo. O elemento vertical, fincado na terra e estendido ao céu, é uma imagem do ser humano que está estendido entre céu e terra”. Até por meio dessa aparentemente simples constatação, o homem encontra-se preso à condição da cruz. Daí que: “Nos Padres da Igreja, as abordagens da vida a partir da cruz ocupam um grande espaço. Não adianta nada levar o sinal da cruz simplesmente consigo, quando não se está disposto a tomar e carregar a cruz todos os dias. Carregar a cruz significa para os cristãos antigos, por um lado, estar pronto para o martírio e, por outro, superar os perigos que brotam de seu próprio interior e aceitar os sofrimentos e as tristezas da existência [que são tantas]. Carregar a cruz significa, sobretudo, suportar paciente e persistentemente o que Deus permite ocorrer em nossas vidas: perseguições, sofrimentos, tristezas, feridas, humilhações, decepções” (Anselm Grün). Infelizmente, as dificuldades da vida não coincidem com a simplicidade das palavras. Cada um de nós deve reconhecer, sob o peso de suas experiências, a dramaticidade e a dureza dessas palavras. O Cardeal Van Thuan, Servo de Deus, depois de suportar tanto sofrimento por conta das perseguições, tendo sido afastado do pastoreio de sua Arquidiocese em Saigon, no Norte do Vietnã, reconheceu, com muita paciência e perseverança na vida bruta do cárcere, que a cruz é a primeira letra do alfabeto de Deus. Que alfabeto!.
Agora, reconsiderando a sublimidade da morte de Cristo, lembro-me de que, um dia, visitando a cidade de Riachuelo, com o Pe. Gilson Garcia de Melo, ele mostrou-me os olhos abertos de Cristo, presente na sacristia da Igreja matriz. Na ocasião, não eu tinha ideia do sentido de seus olhos abertos. Pensamos, inclusive, que fosse o retrato de Cristo agonizando antes de morrer, mas, não. Ele, mesmo com os olhos abertos, estava morto. O Filho de Deus experimentara, em toda a sua plenitude, todas as dilacerações que estraçalham o coração humano, apontando sua necessidade ou desejo de infinitude. No entanto, seus olhos abertos na cruz expressam o vislumbre de sua imortalidade. Retomemos o pensamento de nosso autor, Anselm Grün: “A partir do século VI, Cristo é frequentemente representado na cruz, vestido com uma túnica, por exemplo, no Códice Siríaco de Rábulas. Embora Cristo esteja morto, seus olhos estão abertos. Isso é um sinal de que sua divindade não foi atingida pela morte. A Igreja antiga compara Cristo a um leão. Diz-se do leão que seus olhos vigiam enquanto ele dorme em sua toca. Cristo é o leão místico. Para ele, o sono místico é a morte corporal na cruz. Mas, ao mesmo tempo, ele vigia com sua divindade”. Que mistério extraordinário!. Como não pensar na oração do salmista que reza: “Não dorme nem cochila aquele que é o vigia de Israel!”.
Por cima de nossas inquietações e angústias, tristezas e dilacerações, o Cristo da cruz vigia sobre cada instante da nossa vida. Assim, somos convidados a não perder a esperança, se nossos olhares distraídos e distantes não dão conta de vislumbrar o alcance de sua presença mística em cada segundo de nosso existir. Como tudo seria diferente na nossa vida, se não nos esquecêssemos disso!. Pena que as carências desregradas de nosso desejo de autossuficiência não se satisfaçam plenamente com a clareza dessa verdade!. De posse dessa constatação aflitiva, olhemos com humildade para o Senhor da Cruz, nosso eterno Salvador, aceitando a orientação de São João Crisóstomos, citado por Anselm Grün: “Não tenhamos vergonha de confessar nossa pertença ao Crucificado! Selemos confiantemente nossa fronte com o dedo, façamos o sinal da cruz sobre tudo, sobre o pão que comemos, sobre o copo que bebemos! Façamo-lo ao ir e vir, antes de dormir, aos deitar-nos e levantar-nos, ao caminhar e ao descansar. Esse meio de proteção é poderoso. É gratuito por causa dos pobres, por causa dos fracos não exige esforços. Pois a graça vem de Deus. A cruz é o distintivo dos crentes, o terror dos demônios. ‘Pois Cristo triunfou sobre eles pela cruz, expondo-os abertamente’ (Colossenses 2,15). Cada vez que veem a cruz, eles se lembram do Crucificado. Ele tem medo daquele que os esmagou, pisoteando as cabeças do dragão”. Aliados de Cristo crucificado, com certeza, nossa vitória é certa. Na verdade, não por acaso, os santos vivem uma dimensão diferente das realidades humanas, pois eles estão sempre mergulhados na própria vida e santidade de Cristo, o Redentor.