terça-feira, 20 de setembro de 2011

Lex Dei, lex hominis

Lex Dei, lex hominis 



Será que a lei de Deus é igual ou superior a lei dos homens? O que será que é mais fácil colocar em prática, a lei de Deus ou a lei dos homens? Quem tem mais autoridade para fazer valer e impor os seus mandamentos? Qual delas devemos seguir, obedecer? Lex Dei, hominis! É a lei de Deus a lei do homem?. Há pouco tempo uma criança de onze anos – onze anos, imaginem só? – saiu-me com esta consideração: “Padre, para o senhor que é entendido no assunto, eu acho que já está na hora de escreverem o mais novo testamento, porque os dois que estão, aí [o Antigo e o Novo Testamentos], já não estão servindo mais para nada!”. Sem esperar uma ideia desse tipo da cabeça de uma criança, minha reação imediata foi de sorrir, e de sorrir muito! Julguei não apenas criativa a colocação, mas, também, contundentemente provocativa. Passado o expediente da recreação, depois de tentar arranjar-me com alguns comentários oportunos à sua inquietação, comecei a pensar sobre o assunto com mais seriedade. Eis, pois, que a reflexão a seguir, é fruto da inteligência aguçada de um menino.
Não é que a lei de Deus, nem seus mandamentos, nem sua proposta de conduta para elevação espiritual e interior do homem, tenham perdido a sua validade para os conturbados dias de hoje. Aliás, uma coisa que sempre julguei muito curiosa é o fato de que os mandamentos divinos nunca se perderam no meio dos caminhos tortuosos que os homens escolheram seguir por conta própria, inclusive, quando eles não são capazes de assumir as consequências infelizes de suas falsas convicções. Há quem pense que há no coração da lei de Israel “dois pesos e duas medidas”, como se aqueles que se sentem mais perto de Deus, pudessem prevaricar, ao nível de suas satisfações egoístas, o santo mandamento divino. Será, por exemplo, que a lei é uma para o povo de Deus e outra para as autoridades constituídas, isto é, aquelas que estão revestidas de algum serviço ou ministério no meio do mesmo povo? O fato é que ninguém pode considerar-se isento de colocar em prática a palavra de Deus, por meio da qual, não apenas o homem descobre a vontade divina a seu respeito, mas, sobretudo, nela, ele pode encontrar a dimensão mais profunda de sua felicidade. Não por acaso, pegando o caso específico do povo de Israel, a quem Deus confiou o Decálogo por meio de Moisés, toda a sua vida deve ser orientada para o cumprimento da lei divina sob pena de ganhar ou perder a felicidade ou as bênçãos e tudo aquilo que delas decorrem. Portanto, dentro desse contexto de apelação divina, a lei é uma só, tanto para o povo quanto para aqueles que fazem as vezes de ponte ou mediação entre Deus e o povo, como é o caso dos sacerdotes do Antigo e do Novo Testamento.
Depois que Moisés recebeu os mandamentos divinos no monte Sinai, também conhecido como monte Horeb, onde ele passou quarenta dias e quarenta noites, para desespero do povo que ficou embaixo, no pé da montanha, a vida do povo escolhido não poderia mais ser levada pelo vento dos caprichos pessoais. Desse modo, o Decálogo contém todos os tesouros da vontade divina, destinados a felicidade do homem. Eis, pois, o que afirma o livro do Deuteronômio: “Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade. Se ouvires os mandamentos de Iahweh teu Deus que hoje te ordeno – amando a Iahweh teu Deus, andando em seus caminhos e observando seus mandamentos, seus estatutos e suas normas – viverás e te multiplicarás. Iahweh teu Deus te abençoará na terra que estás entrando a fim de tomares posse dela. Contudo, se o teu coração se desviar e não ouvires, e te deixares seduzir e te prostrares diante de outros deuses [retratos da idolatria e do afastamento do verdadeiro Deus, deixando-se arrastar por situações abomináveis e pecaminosas], e os servires, eu hoje vos declaro: é certo que perecereis. [...] Eu te propus a vida ou a morte, a benção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência. Amando a Iahweh teu Deus, obedecendo à sua voz e apegando-te a ele. Porque disto depende a tua vida e o prolongamento dos teus dias” (Dt 30,15-20). Embora o texto seja extenso, ele dá-nos a dimensão exata do quanto o mandamento do Senhor é importante para a devida orientação espiritual da vida de seu povo.
Onde estaria, então, a tênue separação comportamental que pode levar alguém a intuir que há “dois pesos e duas medidas” quanto à exigência da prática dos mandamentos divinos? Essa divisão de águas comportamentais está dentro da consciência de cada um que pensa poder descartar os mandamentos divinos como se eles não fossem importantes para uma vida de santidade diante de Deus. Há aqueles que obedecem e aqueles que não obedecem. Há aqueles que fundam sua própria religião, criando seus próprios deuses e, consequentemente, inventam, de igual modo, seus mandamentos, suas concessões e regras de comportamento que nada têm a ver com a instituição religiosa do “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó”, isto é, o Deus que se deu a conhecer no Antigo Testamente e de modo pleno, no Novo, na pessoa do Filho, Jesus Cristo. Ele veio ao encontro do homem. O Beato João Paulo II já dizia que a grande diferença entre o Cristianismo e as outras religiões, era o fato de que, enquanto nas outras, o home vai à procura de Deus, no Cristianismo, Deus mesmo vem ao encontro da sua criatura, ele vem ao encontro do homem para manifestar-lhe o seu amor e a sua misericórdia. Por isso que o Deus de Israel, o Deus da Bíblia, educa o coração de seu povo, a fim de que ele lhe seja obediente e fiel, não obstante todas as dificuldades que a pobre criatura humana tem no sentido de corresponder a esse amor.
Como é possível que, depois de tantos séculos passados da escritura ou do registro da experiência do povo de Israel, na Bíblia, suas palavras ainda conservarem o mesmo frescor e vigor de há tanto tempo? Será que, realmente, a palavra da Bíblia não está ultrapassada e caduca, diante das conquistas científicas e tecnológicas da modernidade? O que a Bíblia poderia ainda dizer ao homem contemporâneo? Como pode essa mesma palavra ainda causar incômodo à consciência de tantos e servir de critérios para a distinção entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre a vontade de Deus e a vontade dos homens, tão incompatíveis com o seu desejo de autossuficiência e plenitude, longe da plenitude autêntica que é o próprio Deus? Vários rasgos da luminosidade bíblica comprovam que a vontade de Deus não mudou em relação aos homens. Manifestando seu amor eterno para com todas as suas criaturas, especialmente, para com o homem, ele desvela-se em cuidados de Pai, independentemente do que os homens pensem a seu respeito. Mudam-se os tempos e as possibilidades que favorecem ao homem progresso e civilidade mais requintada, mas, não mudam no interior do homem as dilacerações permanentes de seu desejo de infinitude, de sua sede eterna de Deus. As leis divinas são perenes, eternas, e não sofrem variação conforme soprarem os ventos da moda humana, passageira, circunstancial, totalmente, presa às conjunturas provocadas pelos métodos de libertinagem e arrogância, que somente precipitam o homem no abismo do descalabro moral e espiritual.
Precisamos ter uma consciência crítica e realista também diante das coisas de Deus, cujo pensamento não muda conforme as necessidades humanas ou segundo o exibicionismo de suas modas. Nem Jesus, o filho de Deus invalidou a lei do Antigo Testamento: “Não penseis que eu vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vi revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado” (Mt 5,17-18). Portanto, ele veio dar o sentido pleno àquilo que Deus, o seu Pai, sempre pensou e desejou como projeto de felicidade para todos e que, na expressão de São Paulo, reflete-se no sonho divino “que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus e mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus, que se deu em resgate por todos” (1Tm 2,4-6).
Enfim, o que estiver fora desse belo sonho divino de salvação, depois de todos os apelos de sua benevolência e misericórdia, não é mais responsabilidade de Deus. E, para terminar voltando ao desafio dialético de meu querido interlocutor, não será preciso escrever nenhum testamento mais novo, pois tudo já foi dito às claras. Quem tiver ouvidos, ouça.