segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Ecos de Aparecida


Ecos de Aparecida 



Quando esteve no Brasil, de 9 a 13 de maio de 2007, o Papa Bento XVI insistiu, repetidamente, a motivação maior de sua presença entre nós: “Venho para presidir, em Aparecida, a sessão de abertura da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho. Por uma providencial manifestação da bondade do Criador, este país deverá servir de berço para as propostas eclesiais que Deus queira, poderão dar um no o vigor e impulso missionário a este Continente”.
De lá para cá, toda a Igreja de um Continente tem se esforçado para colocar em prática doutrinal os frutos desta Conferência. Muitas dioceses e comunidades, não apenas lêem o documento, mas, sobretudo, tentam aprofundar o sentido eclesiológico e pastoral para um novo ardor missionário no anúncio da Boa-nova salvífica de Cristo. Como afirmara o próprio Papa, na sessão inaugural dos trabalhos da referida Conferência, “ante a nova encruzilhada, os fiéis esperam desta V Conferência uma renovação e revitalização de sua em fé em Cristo, nosso único Mestre e Salvador, que nos revelou a experiência única do Amor infinito de Deus Pai aos homens. Desta fonte, poderão surgir novos caminhos e projetos pastorais criativos, que infundam uma firme esperança para viver de maneira responsável e gozosa a fé e irradiá-la assim no próprio ambiente”. Desse modo, a riqueza inexaurivelmente doutrinal do Documento de Aparecida, iluminando o novo e complexo contexto do horizonte social, político, cultural e religioso em que vivemos, poderá abrir outras perspectivas de evangelização que tornem os cristãos mais conscientes e esmerados na exigência do testemunho.
O fio condutor que perpassa todas as páginas do documento e a sublimidade solene de seu conteúdo, é a dimensão comunitária e pessoal do ser, que se realiza na “projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo”. Portanto, essa é a mola mestra que deverá motivar, com renovada determinação e força de vontade, o empenho de cada um que descobriu, no âmbito da experiência pessoal da intimidade com Cristo, a necessidade do anúncio, pois, “quando cresce no cristão a consciência de pertencer a Cristo, em razão da alegria e gratuidade que produz, cresce também o ímpeto de comunicar a todos o dom desse encontro. A missão não se limita a um programa ou projeto, mas é compartilhar a experiência do acontecimento do encontro com Cristo, testemunhá-lo e anunciá-lo de pessoa a pessoa, de comunidade a comunidade e da Igreja a todos os confins do mundo (cf. At 1,8)”. Em outras palavras, quem não fez a experiência com Cristo, não terá nada a anunciar ou comunicar aos outros. Como falar com entusiasmo de algo que ainda não mexeu, radicalmente, com a nossa maneira de pensar e sentir Deus, em relação ao seu plano de amor e salvação para todos? Longe deste dado do envolvimento pessoal com Cristo, não apenas o testemunho se torna vazio, mas, de igual modo, ineficaz e sem frutos, na sacralidade da certeza inequívoca a ser comunicada aos demais.
No cenário de desafios e exagerado relativismo em que o indiferentismo religioso vive mergulhado, as reflexões de Aparecida chegaram num momento oportuno para vascolejar e revolver a passividade inoperante do nosso dever cristão. Não é em vão que o Documento reconhece “que em nossa Igreja existem numerosos católicos que expressam a sua fé e a sua pertença de forma esporádica, especialmente através da piedade a Jesus Cristo, a Virgem Maria e aos santos”. São os chamados, comumente, “cristãos de fronteira”, que ainda não descobriram o valor do aprofundamento de sua fé para uma participação mais plenamente viva na Igreja, qual imperativo irrenunciável da vivência do próprio batismo. À medida que tal “amadurecimento” for se fortalecendo, a Igreja ganhará sempre mais, em todas as dimensões de seu território de atualização pastoral de anúncio do Evangelho. Daí a necessidade do espírito de colegialidade ou comunhão que transpõe o individualismo e o desejo de praticar a religião segundo os ditames do próprio ego. Religião nenhuma é propriedade de uma pessoa. Na verdade, isso vai contra o princípio da coletividade salvífica de Deus que nos salva em comunidade, pois, “a vida em comunhão é essencial à vocação cristã. O discipulado e a missão sempre supõem a pertença a uma comunidade. Deus não quis salvar-nos isoladamente, mas formando um povo”. Assim, à luz da teologia soteriológica da comunidade, esse aspecto não deve ser esquecido pela vivência cristã. Com efeito, a Conferência não esqueceu de fomentar a participação litúrgica no culto dominical, pois, “a comunhão da Igreja se nutre como Pão da Palavra de Deus e com o Pão do Corpo de Cristo. A Eucaristia, participação de todos no mesmo Pão da Vida e no mesmo Cálice de Salvação, nos faz membros do mesmo Corpo (cf. 1Cor 10,17)”. Desse modo, cada um, na dimensão do exercício do ministério ou da vivência batismal que lhe é própria ou comum a todos, deve participar, concretamente, no esforço de resposta ao chamado universal à santidade. Sem dúvida, todo o envolvimento no mistério da missão da Igreja deve ser cristocêntrico, isto é, deve ter “como centro a pessoa de Jesus Cristo, nosso Salvador e plenitude de nossa humanidade, fonte de toda maturidade humana e cristã”. Na verdade, Cristo é a razão de ser de todo o empenho missionário da Igreja que, assistida pelo mesmo Espírito de Cristo, emprega todas as suas forças e energias para se tornar sempre mais fiel à interpelante vocação que lhe foi confiada pelo próprio Senhor e Mestre.
Ainda, do mesmo modo como os discípulos e os apóstolos permaneceram com Cristo para o aprendizado e a formação – “e constituiu doze, para que ficassem com ele, para enviá-los a pregar” (Mc 3,14) – em vista da futura missão apostólica, assim, a eficácia do mandato missionário para todo cristão manifesta, igualmente, suas exigências de aprofundamento doutrinal e pedagógico, de renovação e, tanto quanto possível, de mudança de estruturas que impedem ou limitam o alcance urgente do anúncio da Boa-nova de Cristo. Por isso, o Documento insiste na formação permanente dos “discípulos missionários”. E isso vale para todos, independentemente da especificidade do papel que cada um desempenha no conjunto das solicitações eclesiais ou dos imperativos do testemunho da vida da Igreja. Não sem razão, o horizonte do aspecto formativo abrange o espaço da família, a “Igreja Domestica” e “a primeira escola da fé”, o ambiente paroquial, “as pequenas comunidades de base”, “os movimentos eclesiais e novas comunidades”, “os seminários e casas de formação religiosa”. Tudo isso chegando, inclusive, ao alcance da Educação Católica, sem se deter no ciclo limitado do “reducionismo antropológico”. Quanto às “casas e [a] os centros de formação da Vida Religiosa são também espaços privilegiados de discipulado e formação dos discípulos missionários segundo o carisma o próprio instituto religioso”. Enfim, ninguém pode ficar de fora da dinâmica envolvente dos “princípios evangélicos”, a fim de que todos, indistintamente todos, possam ser conduzidos “ao encontro com Jesus Cristo vivo, filho do Pai, irmão e amigo, Mestre e Pastor misericordioso, esperança, caminho, verdade e vida, e dessa forma à vivência da aliança com Deus e com os homens”. Em síntese, vivendo bem com Deus, na abertura sincera ao seu projeto salvífico – e, sobretudo, permitindo que Cristo redentor invada com seu mistério todas as zonas do “inquieto coração” humano, indo aos porões mais recônditos da frágil humanidade sedenta do divino – por certo, o intento da pedagogia de Deus em querer salvar todos os homens, atingirá a sua realização em plenitude.
Num último olhar sobre o Documento de Aparecida, seria conveniente fazer alusão ao valor inegociável da vida humana e de sua sublime dignidade. Como acertadamente lembra o Documento, “todo ser humano existe pura e simplesmente pelo amor de Deus que o criou, e pelo amor de Deus que o conserva em cada instante. A criação do homem e da mulher à sua imagem e semelhança é um acontecimento divino de vida, e sua fonte é o amor fiel do Senhor”. Não importa a situação em que cada um viva – são tantas as misérias humanas, físicas, morais, espirituais, existenciais, etc., que conspurcam a sacralidade de sua dignidade.
Na verdade, todos somos iguais diante de Deus, que não faz acepção de pessoas, e tudo o que se refere à vida, na acepção mais plena de sua conjuntura existencial – o que envolve a concepção, o crescimento/desenvolvimento e a morte –, é direito sagrado, inviolável, de cada um. Por isto a Igreja olha para cada reflexo do “rosto humano de Deus” nos homens, especialmente, nos pobres e sofredores, com o desejo sincero de que, à luz de Cristo, todos tenham a vida em plenitude que o próprio Cristo prometeu.