segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Sabedoria para contar os dias


                              Sabedoria para contar os dias 
                                            
                                               

Segundo as sagradas escrituras, toda a vida do homem deve derramar-se, de maneira humilde, diante do olhar de Deus, na certeza de que, para o justo, tudo decorre em função de sua santa vontade. Embora a vida pareça breve em relação à velocidade com que correm os dias, não é a duração da existência que conta aos olhos de quem tem fé, mas a intensidade vivida em cada gota de segundos em que a vida é costurada, do início ao fim. Onde será que se encontra o segredo de uma existência longa? Vez por outra, sabemos das pessoas agraciadas com abundância e fartura de dias, como quem tem mais de cem anos. Na verdade não existe segredo. O segredo é simplesmente estar vivo para contar e fazer história.
Na concepção do homem bíblico piedoso, aberto às vicissitudes proporcionadas pelo temor do Senhor, a longevidade pode ser reflexo da obediência ao Senhor da vida, de quem todo bem promana. Daí brota a consciência da necessidade de aprender a contar os dias diante do Senhor, reconhecendo que da “fragilidade da vida humana provém a sabedoria, que é o temor do Senhor” (Pr 1,7ss), como se expressa o salmista,: “Fazes o mortal voltar ao pó, dizendo: ‘Voltai, filhos de Adão!’ Pois mil anos são aos teus olhos como o dia de ontem que passou uma vigília dentro da noite! Tu os inunda com sono, eles são como erva que brota de manhã: de manhã ela germina e brota, de tarde ela murcha e seca. Sim, somos consumidos, por tua ira, ficamos transtornados com o teu furor. [...] Nossos dias passam sob tua cólera, como um suspiro consumimos nossos anos. Setenta anos é o tempo da nossa vida, oitenta anos, se ela for vigorosa; e a maior parte é fadiga e mesquinhez, pois passam depressa e voamos. Quem conhece a tua ira, e temendo-te, conhece o teu furor? Ensina-nos a contar nossos dias para que tenhamos coração sábio. [...] Sacia-nos com teu amor pela manhã e, alegres, exultaremos nossos dias todos” (Sl 90,3-14).
Pela oração do salmista, podemos compreender que a existência de qualquer pessoa é muito preciosa aos olhos do Senhor, o Deus da vida. Não importa a duração do tempo vivido; não importam as experiências feitas nem as vitórias conquistadas. No entanto, vale a graça da vida, pautada pela sabedoria divina, alimentada e fortalecida pelos anos a fio, levando em consideração cada momento vivido como dom, como presente, como dádiva divina. Claro que noventa anos significam mais vida, mais tempo, mais experiências, mais vitórias e conquistas, e, consequentemente, também, mais gratidão e reconhecimento ao Senhor da vida pela gratuidade singela que o arco do tempo da graça possibilita experimentar até a continuidade, cujo fim cabe somente a Deus estabelecer e conhecê-lo profundamente. Ao seu tempo, ao seu modo, a qualquer momento, tudo será reassumido na sublimidade da vida em plenitude, que ultrapassa todos os sonhos, todos os desejos, todas as esperanças, toda a imediata felicidade momentânea, fugidia, pois não cabem na finitude temporal de nossas ambições.
O salmo 90 coloca-nos diante do dilema da situação cronológica. De fato: “O campo do tempo governa com rigor o poema. Em ordem descendente de duração podemos colocar: perpetuidade, geração, anos, dias, ontem, noite, vigília, manhã, tarde. Em direção ascendente, colocamos: a duração duma planta, a vida dum homem, a história humana, o tempo cósmico, a perpetuidade, Deus”. Nessa concepção temporal, contar os anos significa aceitar com resignação o limite posto pela caducidade da vida humana, esperando entesourar bom senso, sabedoria e prudência. Na verdade, uma vida coroada de anos, “vai dando a sua colheita amadurecida: o coração amadurecerá de sensatez. Já que não podemos contar os anos de Deus [pois seu tempo tem a dimensão da eternidade] nem estimar a veemência de sua ira [que somente dura um instante] fiquemos com esse cômputo proporcionado a nossas forças. [Desse modo,] iremos fazendo anos, os nossos, os que nos tocam; e essa será nossa realização: ‘morrer ao passo da idade espero; pois, trouxeram-me os dias; então, levem-me os dias’ (Quevedo, Si no temo)”. O tempo que nos permite viver, é o mesmo que nos devora inexoravelmente. Assim, a sabedoria do salmista quer ensinar-nos a grandeza de uma vida feliz, mesmo se cheia de ansiedade e angústias, que contrariam a felicidade plena dos anos vividos. Portanto, “já que não nos bastam os números [de anos contados], pesemos sua substância. O resultado é puro déficit: afanar-se em vão. Como se o puro afanar-se fosse o sentido da vida, já que não o é o resultado. Afanar-se [labutar, trabalhar, afadigar-se] para continuar vivendo e viver para afanar-se (Jó 5,6-7): Não nasce do barro a miséria, a fadiga não germina da terra; é o homem que nasce para a fadiga, como as chispas [isto é, o talento, o gênio, o fulgor, o lampejo rápido do brilho intelectivo] para alçar o voo. Quando eu chegar ao final e voltar-me para olhar atrás, parecer-me-á contemplar uma carreira que ganhei para perder: os anos correm velozes, eu voo”.
Somente diante do horizonte da visibilidade de Deus, é possível dar o justo peso aos anos de uma vida e à grandeza da transformação gerada no tempo que aponta para a eternidade. E os santos são os melhores testemunhos de como podemos aproveitar bem as oportunidades da vida como atitudes concretas para o louvor e a glória de Deus. E isso pode ser vivido plenamente na celebração da Eucaristia, por meio da qual unimos a gratidão pelos dons da vida que recebemos de Deus à ação de graças que Cristo oferece ao Pai em favor de todos os homens. De fato, se o tempo é uma dimensão da eternidade, ele se derrama no “agora” do ato salvífico de Cristo por meio da Eucaristia. Sim, o tempo da nossa existência pode ser medido dentro do evento da redenção instaurada, de modo definitivo, no altar da cruz, que deve ser o centro da esperança cristã, escancarada pela porta da fé na ressurreição de Cristo. Se a ampulheta do tempo é cruel com todos os viventes, Cristo realiza o milagre que subverte a sua lógica, devolvendo-nos a certeza da imensidão de seu amor, cristalizado na essência de sua própria humanidade, encarnada no tempo, mas plena de eternidade.
Como afirmou Santo Irineu, a glória de Deus é o homem vivo. Então, essa vida é fruto da graça de Cristo, que nos aproxima de Deus pelo dom precioso da filiação que herdamos de sua divindade. Essa é a verdadeira glória que agrada a Deus, isto é, a participação na filiação do seu Filho unigênito, o Filho por excelência. Logo, se a maior parta da vida vivemos na inconsciência do nosso ser, Cristo ajuda-nos a redescobrir o sentido da vida própria que se desgasta nos anos, mas, realiza a beleza do existir. Com efeito, a beleza do existir não esgota sua plenitude no envolvimento transitório do pó da terra que encobre nossa existência. Deus criou-nos para muito mais do que isso. Ele estabeleceu, na divindade do Filho, que veio armar sua tenda entre nós (Jo 1,14), a certeza definitiva da vida do céu. Da vida além do horizonte sombrio que parece impedir-nos a acessão aos páramos eternos de sua sabedoria criacional. Por isso que Cristo enfatiza a concepção do saber “perder a vida” a fim de consegui-la na realização plena de seu reino: “Pois aquele que quiser salvar a sua vida, a perderá, mas o que perde a sua vida por causa de mim, a encontrará” (Mt 16,25). A palavra de Cristo revela o desafio constante da deposição de nossa vida em suas mãos. Nele, a vida aparentemente perdida, é vida em plenitude. É a vida verdadeira, que somente ele pode garantir-nos sem que tenhamos medo de qualquer frustração, vergonha ou decepção. Para o crente, para o homem de fé, “perder a vida” significa mergulhar sua existência nas profundezas da amizade divina, na intimidade com Deus, cujo fundamento está longe que qualquer segurança mundana ou material, pois somente nele, nossa vida está plenamente segura de indestrutível imortalidade.