segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A morte como perspectiva de vida...

A Morte Como Perspectiva de Vida

 

 


Pensando no dia de Finados, gostaria de refletir com meus leitores sobre “a morte como perspectiva de vida”, o que não é um tema muito interessante, nem atrai a atenção de todos nem desperta a curiosidade dos que, na normalidade do quotidiano, amam a vida, amam viver, como, claro, eu também amo a vida e gosto de viver. Não foi para a vida que Deus nos criou? Certamente, sim. Contudo, convém lembrar que a morte faz parte da vida, ou, talvez, seja justamente o contrário: a vida faz parte da morte, a vida está na morte. A morte é a porta aberta para a verdadeira vida, pois a vida humana, efêmera, passageira, marcada pela contingência própria de tudo que repousa sobre a face da terra ou sobre a estampa colorida e móvel do universo, “é como a flor do campo, que, hoje, amanhece vicejante, mas, à tarde, é cortada e fica seca”, como reza o salmista. Como nos ensinou o grande santo, São Francisco de Assis, “é morrendo que se vive para a vida eterna”. Eis, pois, o que acontece na contramão da estrada da nossa existência: “Vamos à alegria pela tristeza, ao repouso pelo trabalho, à vida pela morte”.
Aos olhos angustiados e desesperados de quem não tem fé, a morte é o fim de tudo, é a conclusão dramática dos dias cinzentos e sem esperança de quem se debate na fatalidade de cada instante, de cada dia, mas, sobretudo, no esforço contínuo e sufocante para sobreviver ao “vale de lágrimas” da existência, como, amiúde, apresenta-se a vida dos homens no teatro do palco do mundo, que, mais cedo ou mais tarde, desabará. Quando contemplo a confusão hodierna do desespero nos conflitos em que vivem os homens na Terra, às vezes, imagino que a morte seria uma resposta válida a tanta inquietação, a tanta agitação sem sentido nos campos de guerra e na violência das cidades, na onda de terrorismo que invade a estabilidade dos que se sentem seguros. Por que as armas beligerantes? Por que o desrespeito à frágil dignidade humana de vidas indefesas? Por que as confusões da intolerância, disputas de todos os tipos e em todos os níveis? O que acontece com o poder e a arrogância dos poderosos quando eles morrem? São realmente diferentes os seres humanos, classificados como pobres e ricos, brancos e “de cores”, feios e belos? Qual o verdadeiro papel da morte nesse campo de batalha pela sobrevivência na esteira do universo? Penso que, embora pareça contraditório ou paradoxal, a morte é um princípio de igualdade entre as diferenças socioculturais e antropológicas, porque coloca, indistintamente, todos os seres humanos no mesmo pedestal. É como se a morte fosse um rolo compressor do qual ninguém poderá escapar. Ela não respeita vontade, nem classe social, nem boas intenções, nem riquezas, nem poder, nem mesmo gosta de olhar a face da vítima. Sua única exigência e condição é que ainda não tenha visitado o amigo de viagem. Mesmo por que o convite é repentino e inesperado, ainda se, é verdade, ela pode até maltratar um pouco o passageiro, mas ela não gosta de demoras. Quando decide partir, só ela dá conta do momento. Não deixa nem tempo para a arrumação da bagagem, que sempre vem confiada a outros. Depois, não precisamos de muita coisa para levar. Um cidadão de Aracaju, motorista de táxi, um dia, disse a Dom Luciano Duarte: “Dom Luciano, se eu fosse uma autoridade, eu mandaria colocar dois buracos nos caixões de defunto: um à direita e, outro, à esquerda, para que o morto fosse com as mãos do lado de fora, e todo mundo visse que ele não estaria levando nada”. Parece-me uma ideia razoável para os que são muito apegados aos bens materiais!
Caro leitor, parece um relato tétrico, macabro e trágico, não é? Porém, não tenho a intenção de assombrar nem apavorar ninguém. Gostaria apenas de enfatizar que, pelo menos na consciência dos cristãos, essa ideia fosse vista “com os olhos iluminados de esperança” na própria garantia que Cristo Crucificado nos transmitiu, sobretudo, com a sua Ressurreição. E, aqui, não me refiro mais à morte provocada, agressiva e precipitada pelos vários ramos da violência que abala a convivência humana, e da qual o próprio Cristo foi vítima. Aludo, simplesmente, à morte, enquanto morte, isto é, enquanto passagem para a verdadeira vida. Cristo assumiu a nossa condição humana em tudo, menos no pecado, e como tal, também morreu. Participou da nossa morte humana, “primícias dos que adormeceram” (1Cor 15,20). E, “se temos esperança em Cristo, somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens” (1Cor 15,18). Por conseguinte, se Cristo é o nosso modelo e exemplo, também devemos abraçar e aceitar a morte, “nossa irmã, a morte corporal”, como disse São Francisco de Assis. Desse modo, a nossa morte deverá ser iluminada pelo mistério da morte de Cristo, pois somente a esperança cristã poderá nos permitir, com serenidade, ver e encarar a morte como perspectiva de vida. Alguém já falou que, quando se nasce, já é muito tarde para morrer. O que significa isso? Significa que a nossa vida é “tão breve quanto um sonho fugaz”, como cantamos na igreja; que cada momento é precioso e deve ser bem vivido, pois a vela da existência, débil, exposta às lufadas impetuosas, pode apagar-se a qualquer instante. A vida não é nossa, como muitos pensam na estupidez de sua petulância, no descontrole de sua suposta autossuficiência. Sãos tolos os que dizem que podem fazer o que quiserem com a vida que imaginam sua, quando, concretamente, não podem, nem sequer, garantir a visibilidade de um outro nascer do sol no horizonte da duração de sua peregrinação pelos caminhos da terra!
Numa perspectiva filosófica, para usufruirmos da filosofia de Heidegger, “a morte é o último futuro de cada um de nós” e, assim, ele “fala da morte como um evento de liberdade”. Seguindo, ainda seu raciocínio, que também inspirou a posição de Karl Rahner, “eu não posso escolher não morrer”, mesmo porque “como um fenômeno humano, nós, seres humanos, estamos sempre no processo de morrer”. Contudo, “posso escolher como morrerei e como modelarei minha vida diante da morte”. E é justamente “a necessidade de escolha no confronto da morte que dá à vida sua seriedade”. São conceitos aparentemente muito simples, mas que, no bojo da reflexão filosófica, estendem suas complicações ou implicações muito além dos limites do imediatamente perceptível. Cada passo que damos é um avanço a mais na direção da outra margem, como quando caminhamos sobre uma ponte e, de repente, descobrimos que falta pouco para o final da travessia. “Morrer é o último ato humano”; “a morte é o horizonte dentro do qual vivemos a nossa vida na Terra”. Alguém já brincou dizendo, inclusive, que “a morte é o último médico de todas as doenças”. Estranha consolação! Quem já ouviu dizer que algum doente quis ser curado desse modo? Contudo, o mais importante de tudo isso é saber que, um dia, a morte também morrerá. No entanto, pelo momento, ela pode apenas ser carregada “morta” nos braços de um ator vivo de teatro ou de cinema, mas continuando ela mesma viva. De fato, a morte está viva, mais viva do que nunca, olhando e mirando a cada um de nós, presas de sua voraz insaciabilidade.