quarta-feira, 19 de outubro de 2011

São Paulo: Plus vos diligens, minus diligar

                        Plus vos diligens, minus diligar 
                                                        
                                                           

São Paulo nunca mediu ou poupou esforços por conta da pregação do evangelho de Jesus Cristo, inclusive, assumindo com otimismo e boa vontade todas as consequências e os percalços implicados em sua missão apostólica e evangelizadora. Mesmo sabendo que nem sempre seria amado ou estimado no seu apostolado, depois de convertido ao Senhor Jesus (At 9), gastou e consumiu toda a sua vida, a fim de que ninguém, que pudesse ser atingido pela boa-nova do evangelho, se perdesse, de modo definitivo, por ignorância quanto ao amor de Deus pelo homem, porquanto foi esse amor que o levou a mandar o seu Filho para ser o Salvador eterno da nossa humanidade pecadora. Eis, pois, que São Paulo desabafa aos Coríntios: “Quanto a mim, de bom grado, despenderei, e me despenderei todo inteiro [gastar-me-ei plenamente], em vosso favor. Será que, dedicando-vos mais, serei por isto menos amado? [plus vos diligens minus diligar]” (2Cor 12,15).
Na bíblia de Jerusalém há uma variante na tradução que me parece oportuna à reflexão que proponho aqui, qual seja: “e me despenderei por vós, mesmo que, amando-vos mais, venha a ser menos amado”. O fato é que São Paulo encontrou muitas resistências por parte de seu auditório, de modo especial, quando devia apresentar o verdadeiro sentido da vida nova para os que abraçaram a fé. É o que encontramos, por exemplo, no seu questionamento aos gálatas: “Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou, a vós, ante cujos olhos foram delineados os traços de Jesus Cristo crucificado? Só isto quero saber de vós: foi pelas obras da Lei que recebestes o Espírito ou pela adesão à fé? Sois tão insensatos que, tendo começado com o espírito, agora acabareis na carne? Foi em vão que experimentastes tão grandes coisas? Se é que foi em vão! Aquele que vos concede o espírito e opera milagres entre vós o faz pelas obras da Lei ou pela adesão à fé? (Gl 3,1-5). No coração de São Paulo reina a serenidade quanto à exigência de sua missão e dos desafios impostos pela rejeição de muitos à vida nova proposta com por Cristo. No entanto, ele não se intimida nem deixa arrefecer o ardor de seu ímpeto missionário. Contra tudo e contra todos, em bom ou em mau tempo, ele sabe que vale mais agradar a Deus que aos homens. Assim, servo de Cristo, ele reconhece que, se quisesse agradar aos homens, ele não seria servo de Cristo (Gl 1,10).
Falando dos sofrimentos e das consolações de São Paulo em relação às comunidades, às quais ele escreve com zelo e entusiasmo, o Cardeal Maria Martini apresenta três grandes provações. E a primeira delas é o fato de que São Paulo sente-se rejeitado pelos de sua raça, pelos judeus, dos quais ele fala com o coração partido de dor e tristeza: “Tenho grande tristeza e dor incessante em meu coração. Quisera eu mesmo ser anátema, separado de Cristo, em favor de meus irmãos, de meus parentes segundo a carne, que são os israelitas, aos quais pertencem a adoção filial, a glória, as alianças, a legislação, o culto, as promessas, aos quais pertencem os patriarcas,  e dos quais descende Cristo, segundo a carne, que é, acima de tudo, Deus bendito pelos séculos! Amém (Rm 9,2-5). Na visão do Cardeal, São Paulo pensava que a primeira intenção de Cristo ao escolhê-lo para ser Apóstolo, fosse confiar-lhe a missão de falar aos seus irmãos de estirpe, como quando ele ia de cidade em cidade, visitando as sinagogas. Nesse sentido, sua missão faliu. Não produziu os frutos esperados. Outra prova era constituída pelos problemas internos às comunidades. Ele imaginava comunidades unidas, fraternas, concordes, plenas de entusiasmo, humanidade e abertura ao anúncio de Cristo. Pelo contrário, a experiência amarga expressa na primeira carta aos Coríntios, atinge seu cume na segunda Carta aos Coríntios em razão das múltiplas divisões. A terceira provação refere-se às dificuldades interiores, que vagueiam no fundo de seu espírito, e das quais ele fala de modo, às vezes, claro, às vezes, incompreensível. Todavia, ainda embalados pelo pensamento do Cardeal Martini, tendo presente o temperamento de São Paulo, podemos pensar sobre os altos e baixos de suas emoções, de momentos de empolgação que se alternavam entre a depressão, o cansaço, o enjoo de seu ministério e a fadiga constante. Ou seja, entrando na consciência do convertido que aderiu a Cristo, de modo incondicional, São Paulo sabe que, para viver mais plenamente os desafios de seu ministério, ele deve aceitar com mais prontidão de alma os sofrimentos que ele implica, mormente, quando as consolações espirituais parecem mais distantes do que os espinhos da missão.
Aludindo à segunda Carta de São Paulo aos Coríntios, aonde fomos buscar e expressão que motivou a oportuna reflexão, o Cardeal Martini revela a ressonância das percepções que brotaram em seu universo intelectivo interior. E ele o descreve, também, em três situações pertinentes ao comportamento de São Paulo. Inicialmente, ele constata a “fortíssima confiança [de São Paulo] em seu próprio carisma”. Dentro dos limites dessa convicção profunda, tudo o que estiver em derredor de São Paulo pode ruir, mas, não, o seu carisma. Por conseguinte, lá onde exprime com a mais crua dureza os sofrimentos que ele está vivendo, de igual modo, emerge ainda, com força absoluta, a certeza inabalável do carisma que lhe foi confiado pelo Senhor Jesus Cristo. Desse modo, sua vocação e sua missão são entendidas como dons do Espírito Santo, a partir do qual, ele julga todo o resto, e seu carisma torna-se, mesmo nas provações, mais luminoso e autêntico. O segundo ponto considera o fato de que, não obstante a fortíssima confiança de São Paulo no carisma que recebeu, ele o vive em circunstâncias modestas, obscuras e, quando não, penosíssimas. De fato, trata-se de um apostolado que toca a poucas pessoas quanto ao rigor de suas exigências. Enquanto São Paulo pensava que se referisse, pelo menos, aos de sua raça, ao povo eleito, o empenho do apostolado tem a ver com pequenas comunidades que não fazem opinião pública. Portanto, foi em conjunturas de amarguras quotidianas que São Paulo provou a firmeza de seu caráter, de sua determinação, especialmente, diante de pessoas mesquinhas, inconstantes, traiçoeiras. São Paulo viu-se circundado por subterfúgios dos quais não conseguia distinguir bem os falsos dos verdadeiros apóstolos, vivendo num verdadeiro mistifório de doutrinas e propostas diferentes das de sua pregação. Num terceiro e último ponto de reflexão, o Cardeal Martini enfatiza a constatação de que tudo o que São Paulo viveu, ele o fez com um amor irredutível, invencível, em favor de sua comunidade. Seu coração transborda de amor pela comunidade, de tal modo, que ele tenta esconder os dissabores da pregação, demonstrando-se amável, qual pai carinhoso, terno, meigo.
Na leveza e transparência de seu raciocínio, o Cardeal Martini conclui trazendo uma exortação a todos nós, pois, há algo de extraordinário do amor de São Paulo, se pensamos como tão facilmente nós, quando não somos bem acolhidos ou vemos que o acolhimento de alguns não encontra reciprocidade no acolhimento de outros que permanecem frios e indiferentes, críticos, reservados, distantes, acabamos por nos fechar em nós mesmos. Sim – adverte o Cardeal – a segunda Carta de São Paulo aos Coríntios é uma medicina para o cristão em dificuldade; é um nutrimento, um reconstituinte, porque possui palavras cheias de força, e, para quem crê, veem do Espírito Santo. Com efeito, são palavras de uma atualidade impressionante, e devolvem-nos a confiança em nós mesmos, a fim de conservarmos uma visão grande nas situações pequenas e mesquinhas, no amor que nunca cessa de tornar a sentir e reapresentar-se às pessoas. Olhando e meditando sobre a herança espiritual deixada por São Paulo em suas cartas, somos quase intimados a rever a covardia com que ainda não fomos capazes de consumir toda a nossa vida pela pregação do evangelho.
As reservas que guardamos para nós mesmos em relação à missão confiada aos cristãos de hoje, acabam impondo limites à eficácia e a força da pregação do evangelho de Cristo. Que São Paulo inspire-nos mais coragem, mais determinação, mais intimidade com Cristo, pois tenho certeza de que nela está o segredo do envolvimento radical de uma pessoa à pregação da mensagem de Cristo.